É preciso pensar no caipira
como um homem que manteve
a herança portuguesa nas
suas antigas formas
A cultura caipira não é e nunca foi um reino separado, uma espécie de cultura primitiva
independente, como a dos índios. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil e
portanto, veio na maior parte de fora, sendo sob diversos aspectos sobrevivência do
modo de ser, pensar e agir do português antigo.
Quando um caipira diz "pregunta", "a mó que", "despois", "vassuncê", "tchão (chão)",
"dgente (gente)" não está estragando por ignorância a língua portuguesa; mas apenas
conservando antigos modos de falar que se transformaram na mãe-pátria e aqui.
Até o famoso "erre retroflexo", o "erre de Itur" ou "Tieter", que se pensou devido a
influência do índio, viu-se depois que pode ter vindo de certas regiões de Portugal.
Como veio o desafio, a fogueira de São João, o compadrio, a dança de São Gonçalo, a
Festa do Divino, a maioria das crendices, esconjuros, hábitos e concepções.
É preciso pensar no caipira como um homem que manteve a herança portuguesa nas suas
formas antigas. Mas é preciso também pensar na transformação que ele sofreu aqui, fazendo
do velho homem rural brasileiro o que ele é. "Tabareu", "matuto", "capiau", "caipira",
o que mais haja, ele é produto e ao mesmo tempo agente muito ativo de um grande processo
de diferenciação cultural própria. Na extensa gama dos tipos sertanejos brasileiros ,
poderia ser considerado "caipira" o rural tradicional do sudoeste e porções do oeste,
fruto de uma adaptação da herança fortemente misturada com a indígena, às condições físicas
e sociais do Novo-Mundo.
Nessa linha de formação social e cultural, o caipira se define como um homem rústico
de evolução muito lenta, tendo por fórmula de equilíbrio a fusão intensa da cultura
portuguêsa com a aborígene e conservando a fala, os usos, as técnicas, os cantos,
as lendas que a cultura da cidade ia destruindo, alterando essencialmente ou caricaturando
Em compensação, no quadro de sua cultura o caipira pode ser extraordinário. É capaz, por
exemplo, de sentir e conhecer a fundo o mundo natural, usando-o com uma sabedoria e
eficácia que nenhum de nós possui.
O nosso caipira, do ancestral português herdou com a língua e a religião a maioria dos
costumes e crenças; do ancestral índio herdou a familiaridade com o mato, o faro na caça,
a arte das ervas, o ritmo do bate-pé (que noutros lugares chama-se cateretê), a caudalosa
eloquência do cururu.
O cururu e a dança da Santa Cruz são dois exemplos muito bons de encontro de culturas.
Parece terem sido elaborados sob influência dos jesuítas, que aproveitaram as danças
indígenas e o gosto do Índio pelo discurso e o desafio para enxertar a doutrina cristã.
Nada mais caipira que o cururu e a dança de Santa Cruz, que só existem em áreas de forte
impregnação originária dos antigos piratininganos. E nada mais misturado de elementos
portugueses e indígenas como tanta coisa que observamos nas catiras, nas histórias, nas
técnicas do homem rural pobre e isolado de velha origem paulista. Na primeira metade do
século, o caipira ainda era espoliado e miserável na maioria dos casos, porque com a passar
do tempo e do progresso, quem permaneceu caipira foi a parte da velha população rural
sujeita às formas mais drásticas de expropriação econômica, confinada, e quase compelida
a ser o que fôra, quando a lei do mundo a levaria a querer uma vida mais aberta e farta,
teoricamente possível.
Foi então que o caipira se tornou cada vez mais espetáculo, assunto de curiosidade e
divertimento do homem da cidade, que, instalado na sua civilização e querendo ressaltar
este "previlégio", usava aquele irmão para provar como ele tinha prosperado.
A tarefa, portanto, é procurar o que há nele de autêntico. Autêntico, não tanto no sentido
do impossível do originalmente puro, porque em arte tudo está mudando sempre; mas no
sentido de buscar os produtos que representam o modo de ser e a técnica poético-musical
do caipira como ele foi e como ainda é, não como querem que ele seja.
Por Antônio Cândido
Ensaista e Crítico literário emérito
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