ENQUANTO COLHIA AMORAS
Encontraram D. Tidinha na janela com o olhar
perdido na direção do não sei o que, agora era ela que parecia variar, mas não,
estava era “mastigando” suas tristezas.
-Tida ! ou minha veia !
-Meu veio ! eu tô aqui ! se aquete ! vamo tomar um banho no rio, meu
véio ! vamo ?
A noite era escura, a lua minguante caminhava quase despercebida num céu
de muitas nuvens. Nestor nem parecia o viajante do espaço, estava com os pés no
chão. Pegou o sabonete, a toalha e um calção de “mescla”, se juntou à mulher e
foram andando pelo meio do pasto para beira do rio Mirauna. Banho a dois não
era comum, os afazeres distintos provocavam desencontros, de modo que quando
era possível, algo extraordinário estava acontecendo.
-A água tá quentinha Tida !
Tudo começou com um
ensaboamento um no outro, se amaram de tal forma que parte ou todo desabores se
foram com a correnteza do rio.
Um outro personagem de aparência muito triste e ao mesmo tempo curiosa,
pelo seu jeito de se comportar era Crispim. Era filho Dalí mas os mais velhos
se lembravam dele, depois de muitos anos fora retornou de repente se acomodando
na casa de uma tia no fim do beco. Costumava sentar na plataforma da estação
ferroviária com um caderno ficava horas
escrevendo e pensando.
Zé Neguinho ficava doido de
cachaça, nas suas crises sempre alguém queria lhe matar e foi assim que
impulsionado pelo “delirius tremis” atacou o próprio filho, viu nele um
inimigo, lhe desferindo golpes de foice num ataque enlouquecido, o pobre garoto
indefeso gritou, tão desesperado que acordou os vizinhos que de candeeiros nas
mãos assustaram aquela cabeça maluca, entraram pelos olhos esbugalhados de Zé e
o fizeram recuar, largar a foice.
-Podem me matar !!!
-Mariana de Toninho “acudiu” o garoto ensanguentado.
-Havia !! arguém vai acordar o
vereador !
Já tinha ido, Zeferino disparou
quando viu o garoto mole, arriado no canto da cozinha.
-Socorro !!!Seo Vitoriano !
-O que é que há home ?
-Zé Neguinho meteu a foice no ”fio”,
o bichinho tá se esvaindo em sangue !
-Miserável cachaceiro !
Quando a camionete avançava pela estrada um mundo de gente já vinha
carregando o menino enrolado num lençol, Vitoriano pisou no freio, jogaram o menino dentro e Mariana “pongou”
deixando pra trás um pé de sandália “japonesa”.
-Painho ! por que painho ? eu tenho tanta pena do sinhô e o sinhô qué mi
matar ! Dona Mariana meu sangue tá vazando todo, eu tô morrendo Do na Mariana
!!!!
-Carma ! carma meu “fio”, já tamo chegando no hospitá!
Cinco Rios é perto, né Dona Mariana ? eu vou me sarvá!
-Vai sim meu fio!
Lá no Vale deram água com açúcar a Zé e um chá de muitas folhas misturadas,
o homem começou a suar até adormecer e enquanto Dona Florinda rezava sacudindo
uns ramos de “São Gonçalinho” Zé começou a roncar, um ronco assustador diante
de pessoas curiosas e solidárias.
-O mardito ainda tá nele, num foi imbora não.
A nicotina absorvida do cigarro de fumo-de-corda faz gastura na garganta
e ele tem um acesso de tosse, ao se acalmar continua adormecido, mas com um
ronco mais suave.
-Agora Zé tá sozinho, vamo ajeitar o pescoço dele e deixar ele dormir,
peço a todos que me acompanhe num “Pai Nosso”.
No hospital, o prestigio do vereador abriu caminho e Cosme foi logo
atendido, o caso não era grave, foi só estancar o sangue e fazer uma sutura de
dois cortes, um no braço e outro no ombro. Mariana contou o acontecido a
enfermeira.
-Coitadinho !!!
-O pior é que se ele vorta pra casa assim, corre o risco do pai ficar azuado
de novo. É um menino sofredor, vive largado, se alimenta de fruta que arranja
aqui e acolá, ou quando arguem dá um pratinho de comida, quanta farta faz uma
mãe ! O vereador disse que vai ter uma conversa com o pai dele, e não vai botar
poliça no meio, mas se ele aprontar outra, ele lava as mão!
A enfermeira acabou se compadecendo tanto que acolheu o menino em sua
casa, prometeu ficar com ele até sua recuperação, cuidaria dos ferimentos em
casa, evitaria complicações que certamente aconteceriam na sua vida de menor
mais ou menos abandonado.
Cosme ficou bom, o sinal da
sua recuperação não foi no melhor estilo, o menino despareceu enquanto sua
protetora trabalhava, encontrou uns meninos vadios jogando bola de “gude”,
ficou espiando,meio revoltado com um gordinho que embolsava as bolinhas dos
adversários, tantas que seu bolso não suportavam mais nada e quando ficou sem
competidor ele então se transformou num desafiante.
-Não tenho gude nem dinheiro, tenho este boné que a tia me deu ontem, tá
novinho, troco ele por dez bolas, e vamos jogar!
-Dou seis, seu boné pode ser novo mas já foi na sua cabeça.
-Fechado !
O jogo começou e foi andando, entraram
em becos e quando se deram conta estavam bem afastados e o gordinho
derrotado.
-Esta sandália é novinha, troco por dez bolas !
-A sandália pode ser nova mas já foi nos seus pés, dou seis bolas !
-Fechado !
O jogo não continuou, um carroceiro amigo da enfermeira localizou os
viciados e então Cosme disparou de volta pra casa, mas não teve desculpas.
-Pegue suas coisas, vou lhe entregar a Mariana, ela que se resolva com
seu pai, já chega ! você já está bonzinho, aliás, bom até demais !
E Cosme voltou para o Vale, alguns quando o viram andando de um lado
para o outro soltavam um “descunjuro” e se benziam.
-Aquele menino é o cão Seo Jonas, traquino demais. Quando todo mundo
pensou que a enfermeira ia ficar com ele, oi ele ! perverso ! Vije Maria !!
cachorro, gato, qualquer bicho que passe na frente dele ele Judeia, dia desse
eu fui reclamar porque ele tava derrubando as manguinhas verde de Seo Tonho,
ele me mandou tomar no cú.
Gimba e quase todos que moravam por perto olhavam Cosme com
desconfiança, ninguém gostava dele. Um dia, quando trabalhava na horta, Jonas percebeu
o menino na beira da cerca observando.
-Seo Jonas !
-Oi Cosme !
O Sr, deixa eu lhe ajudar ?
Gimba chegou na hora.
- Deixa não Seo Jonas! Se ele
entra não vai mais sair, vai ficar aporriando o Sr. todo dia !
A descriminação era natural,no campo as pessoas confundem falta de
oportunidade com falta de vergonha. Criado sem mãe, sem carinho, tendo logo
cedo de se virar para comer. Cosme era danado na arte de pular cerca para
buscar alimento. Não se achava um ladrão diante de tanta fartura, mangas e
jambos apodrecendo no chão.
O Vale tinha seus filhos nobres, quase nunca apareciam, ma o
orgulho dos mais velhos mantinham seus nomes em evidências. Dr. Luiz e Dr.
Claudionor, engenheiros, Dr. Fernando e Dr. Cleber, médicos, Dr. Amaildo,
advogado, Tenente Sílvio, do exército brasileiro e até um senador da República,
Dr. Senador Dermeval Almeida, eleito por um estado vizinho, mas isso pouco
importava, o que era interessante era vê-lo nos jornais e ouvir sua voz no
rádio na “A voz do Brasil”.
Nestes tempos ouvia-se dizer que uma estrada ia cortar as terras do Vale
do Ararí, pista asfaltada e o progresso do Brasil passando por ali, diziam até
que o Vale ia virar cidade, sonhos que mexiam com a esperança daquele povo. A
estrada chegou, não passando raspando o povoado, mas a dois quilômetros, passou
rasgando o morro da Barra, terras pertencentes a Seo Zezé, tio de Jonas.
O Vale do Ararí, hoje tem energia elétrica, água encanada, Ginásio, e
só. Falta o passado, falta o trem apitando, a estação movimentada, é triste
vê-la degradada parecendo ter sido vítima de um bombardeio. Falta aquela
população de uma alegria inocente. Faltam as serenatas, as reuniões de amigos,
pois na verdade era assim que o Vale era, um povoado habitado por amigos.
As lembranças, as saudades são muitas e por certo continuarão na cabeça
de Jonas, muitas amoras ainda serão colhidas e muitas viagens acontecerão,
agora vamos considerar que por enquanto a safra acabou.
As melhores histórias jamais serão completamente escritas,
assim como os melhores momentos jamais retornarão do mesmo jeito que foram
vividos, por isso, quando estiver feliz viva intensamente ! pois o tempo
arrastará tudo e só ficarão as lembranças.
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