terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A CPI que tinha (quase) tudo para não dar certo


Carlos Azevedo

Ela cumpriu seu papel e, com toda a certeza, não acabou em “pizza”

A CPI da Câmara dos Deputados sobre a crise no futebol tinha pouca chance de dar certo. A iniciativa do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) foi recebida com incredulidade. A disparidade de forças era imensa: de um lado, o deputado de um partido com sete parlamentares na bancada; de outro, o todo-poderoso Ricardo Teixeira, presidente da CBF, virtual “dono” do futebol brasileiro, montado nos milhões da CBF, que usa como se fossem seus; e mais o séquito de dirigentes de federações e de clubes, de empresários e jornalistas que “comem em suas mãos”. Sem esquecer a “bancada da bola”, formada por algumas dezenas de deputados federais e senadores que defendem a CBF no Congresso e em troca recebem ajuda financeira (ilegal, diga-se) para suas campanhas eleitorais.

Gargalhadas na Embaixada da CBF em Brasília
No início de 1999, quando Aldo Rebelo começou a colher assinaturas para a CPI para analisar a regularidade do contrato entre a CBF e a NIKE, houve sonoras gargalhadas na “Embaixada da CBF” em Brasília, na mansão alugada pela CBF e que custou 660 mil reais em despesas só em 2000. Ali, em partidas de futebol, festas concorridas, bem servidas de comidas, bebidas e outras atrações, parlamentares e cartolas confraternizavam e punham-se ao dispor do magnata da CBF. Desde 1998 era a sede da “bancada da bola”.
Para surpresa dos cartolas, Aldo conseguiu o número necessário de assinaturas. A reação foi imediata. Líderes dos grandes partidos pressionaram suas bancadas para retirar as assinaturas. A certa altura, a luta parecia inglória: a cada assinatura conquistada, duas eram retiradas. Mas Aldo conseguiu 206 (são necessárias 171) e seu pedido de abertura da CPI foi acolhido pela Mesa da Câmara.
Como havia conseguido? Algum cochilo da maioria parlamentar. Ricardo Teixeira continuou desdenhando: como uma CPI poderia investigar os negócios de duas empresas privadas? (ele achava que a CBF era uma empresa privada). Aos jornalistas dizia com arrogância que Aldo era um deputado desconhecido querendo aparecer. Mandou Zagallo e Wanderley Luxemburgo enviarem cartas ao Congresso dizendo que na seleção não sofriam ingerência da Nike e, portanto, a CPI era desnecessária.
Desencadeou-se uma campanha contra a CPI, de tal forma que Michel Temer, então presidente da Câmara, resolveu dá-la como extinta. Aldo avisou-o de que iria ao Supremo Federal porque Temer estava desrespeitando o artigo 5º da Constituição: depois de acolhida uma CPI não pode mais ser extinta, a não ser por decisão da própria CPI. Temer recuou.
Os cartolas pararam de rir. Então, a “bancada da bola” jogou pesado. CPIs adormecidas nos meandros da Câmara foram desencavadas e postas a funcionar. A CPI da CBF-Nike teve de amargar o oitavo lugar na fila.
Mas os escândalos no futebol se agravaram. Tanto que o Senado também decidiu abrir uma CPI para investigar os problemas do futebol. A competição entre as duas Casas do Congresso falou mais alto que o lobby da “bancada da bola”. A Câmara dos Deputados apressou-se em instalar sua CPI. Assim, por um golpe do acaso, em 17 de outubro de 2000, dezenove meses depois de requerida, a CPI da CBF-Nike, a CPI improvável, acabou afinal instalada.
Mas ninguém queria participar de uma CPI sem futuro. Os maiores partidos recusaram-se a assumir a sua presidência. Já que Aldo Rebelo havia sido o inspirador desse trambolho, ele que a assumisse. Nos meses seguintes, vários líderes haveriam de se arrepender muitas vezes dessa decisão. Aldo aceitou a presidência e Sílvio Torres, deputado do PSDB, foi indicado para relator. A “bancada da bola” correu para participar formando folgada maioria. E a CPI iniciou seus trabalhos sob a mais completa descrença de jornalistas, parlamentares e torcedores. “Não dura 15 dias”; “a cartolagem vai mandar e desmandar”, era o mínimo que se dizia.

Direção firme e flexibilidade política
Mas não foi assim. Na presidência, Aldo impediu que desviassem a CPI de rumo. Aproveitou a confusão inicial e contradições dentro da “bancada da bola”, como o ressentimento de Eurico Miranda contra Ricardo Teixeira, para obter vitórias fundamentais logo no início dos trabalhos. Evitava as manobras dilatórias: “temos que nos concentrar no alvo principal ”, dizia. Conseguiu a façanha de aprovar requerimentos pedindo a quebra do sigilo fiscal e bancário da CBF, de Ricardo Teixeira, da Traffic e de José Hawilla. A votação foi apertada, 14 a 11, nominal, e com muita discussão. A partir desse momento já ninguém ria na CBF e adjacências.
Em represália, a “bancada da bola” passou a bloquear a votação de outros requerimentos importantes, como o pedido de quebra de sigilo das empresas de Ricardo Teixeira. Mas a CPI já contava com o material básico. Faltava investigar. Uma pequena equipe de assessores concentrou-se nos alvos principais e empenhou-se durante alguns meses em rastrear as declarações de renda e as movimentações bancárias. Mas precisava de tempo para investigar. Sabendo disso, a “bancada da bola” movimentou-se para encerrar logo os trabalhos da CPI. Líderes de vários partidos foram convencidos e chegaram até a marcar data para seu fim, 31 de março. Entretanto, os resultados iam aparecendo: a investigação sobre passaportes falsos, feitas pelos deputados Jurandil Juarez (PMDB-AP) e Pedro Celso (PT-DF) repercutia internacionalmente. A denúncia da falsificação de identidade e de tráfico de jogadores menores de idade, feita pelo deputado Eduardo Campos (PSB-PE), mostrou o mundo cão dos subterrâneos do futebol, dos empresários e agentes exploradores. Outros deputados, como Dr. Rosinha (PT-PR), investigavam nos Estados e divulgavam novas informações. Esses fatos e as denúncias que a CPI ia fazendo à imprensa, as incansáveis negociações de Aldo e Sílvio Torres com os líderes, iam adiando o seu fim.

A batalha decisiva
Havia sobretudo uma pressão para que Ricardo Teixeira fosse logo ouvido pela CPI. Mas ela ainda não havia reunido todos as informações necessárias para interrogá-lo com eficiência. A CPI conseguiu afinal fazer uma diligência na contabilidade da CBF em sua sede no Rio de Janeiro. Foi possível montar um quadro das irregularidades cometidas na CBF e na grande maioria das 27 federações.
A batalha decisiva seria o depoimento de Ricardo Teixeira. Os deputados que estavam decididos a investigar, e que eram minoria na Comissão, prepararam-se seriamente para o depoimento de 10 de abril. Não subestimaram Ricardo Teixeira. E conseguiram surpreendê-lo. Teixeira não respondeu à maioria das perguntas, fugiu, dizia que não sabia, balbuciava, prometia respostas posteriores. Apresentou dados falsos, mentiu. Sem argumentos, a “bancada da bola” assistiu impotente à derrota do seu chefe.
Depois de um depoimento de nove horas ficou evidente a responsabilidade de Teixeira na má administração da CBF, no uso indevido de seus recursos, nas doações ilegais para políticos em campanha eleitoral, na cooptação e corrupção de dirigentes de federações, na desorganização do futebol brasileiro. E vieram a público preciosos indícios do nebuloso enriquecimento do presidente da CBF e de seus amigos e sócios, da evasão de divisas, da lavagem de dinheiro, da sonegação fiscal.
A uma hora da madrugada de 11 de abril de 2001 havia um fato novo: a CPI improvável, aquela que tinha tudo para não dar certo, vencera a batalha decisiva.

O relatório não foi aprovado, mas valeu
Derrotada, a “bancada da bola” anunciou que iria rejeitar o relatório que estava sendo elaborado sob a direção do deputado Sílvio Torres. Se queria intimidar o relator, foi inútil. Ao tomarem conhecimento do texto, os deputados que apoiavam Teixeira decidiram produzir “outro” relatório, ou melhor, retiraram do texto todas as denúncias e pedidos de indiciamento e produziram um “mostrengo”, um texto sem pé nem cabeça. Em suma, queriam emascular o documento, destruir o trabalho de oito meses. Cumpriam à risca as determinações de Ricardo Teixeira cujo objetivo era impedir de qualquer jeito sua incriminação e, de quebra, desacreditar a CPI. Contavam com folgada maioria e estavam certos de sua vitória. Depois de muitas horas de negociações com a maioria irredutível, Aldo Rebelo e os outros deputados que haviam se empenhado nas investigações, convenceram-se de que as gestões eram infrutíferas e concordaram entre si em tomar uma medida extrema: encerrar a CPI sem que o relatório fosse votado.
A “bancada da bola”, inconformada, armou uma pantomima anti-regimental e “votou” o simulacro de relatório. Inútil, não tinha esse poder. Por sua atitude, aliás, esses deputados viriam a ser depois advertidos pelo Corregedor da Câmara dos Deputados.
O relatório não foi aprovado. Mas a CPI não terminou sem relatório. Porque o texto produzido continuou sendo válido. Foi levado ao Ministério Público, à Receita Federal, Polícia Federal, ao Ministro do Esporte, e oferecido como subsídio à CPI do Futebol do Senado. O texto de mais de 800 páginas foi distribuído à imprensa e colocado à disposição do público no sítio da Câmara Federal. A CPI CBF-Nike havia cumprido seu papel.

Os frutos da CPI
A seguir, um resumo dos resultados da CPI:
Contrato CBF-Nike. A CPI investigou detalhadamente o contrato CBF-Nike e tornou evidente a supremacia da multinacional de material esportivo sobre a CBF e sua interferência indevida na seleção brasileira de futebol;
Parceria CBF-Empresas. A CPI escancarou os meandros das parcerias entre a CBF e empresas de marketing esportivo e agentes que enriquecem fabulosamente enquanto o futebol brasileiro mergulha na falência;
Corrupção das federações. Estudou em profundidade a caótica administração do futebol comandada pela CBF, as espúrias relações da entidade nacional com as federações estaduais, que levaram à deterioração da organização confederativa e à transformação das entidades em casas de negócio, sujeitas ao continuísmo, nepotismo e corrupção, à ausência de calendários e outros desmandos;
Administração ruinosa da CBF. A CPI trouxe a público as contas da CBF. O seu relatório mostrou à exaustão a administração ruinosa da entidade, cujos recursos são malbaratados em despesas duvidosas e não justificadas, em altos salários e remunerações indevidas; em doações políticas destinadas a sustentar influências no Parlamento, para desempenhar o papel de “bancada da bola”;
Empréstimos externos da CBF, evasão de divisas. A CPI produziu um estudo detalhado sobre empréstimos tomados pela CBF no Exterior, junto ao Delta Bank, a juros extorsivos e em condições altamente desfavoráveis. Comprovou que os juros eram incompatíveis com os que à época estavam sendo praticados no mercado financeiro, e que tais negócios resultaram em elevados prejuízos para a entidade, com indícios de evasão de divisas. A argumentação de que outras empresas brasileiras haviam tomado empréstimos com juros semelhantes foi desmentida pelas próprias empresas citadas por ele. E o Banco até hoje não conseguiu explicar essas operações suspeitas;
Remuneração ilegal da diretoria da CBF. A CPI demonstrou que as remunerações recebidas pela diretoria da CBF desde 1998 são ilegais porque estão em desacordo com o seu Estatuto de entidade de direito privado sem fins lucrativos. E encaminhou ao Ministério Público pedido de ação civil para que se promova a devolução desses recursos à CBF;
Ricardo Teixeira usa recursos da CBF para pagar sua contas com advogados. O relatório da CPI comprova que o senhor Ricardo Teixeira, presidente da CBF há três gestões, usa os recursos da entidade máxima do futebol como se fosse uma de suas empresas. Por exemplo, fez a CBF pagar despesas com sete escritórios de advocacia para defesa de seus interesses como pessoa física;
Empresas de Hélio Viana sonegam impostos. A CPI trouxe a público as incongruências da contabilidade do grupo de empresas pertencentes a Hélio Viana, sócio de Edson Arantes do Nascimento – Pelé – na Pelé Sports Marketing, em que a movimentação financeira de valores vultosos não é declarada à Receita Federal;
Passaportes falsos, tráfico de menores. O relatório apresenta os resultados das investigações e denúncias feitas pela CPI em plano internacional quanto às máfias de passaportes falsos de jogadores de futebol, de falsificação de identidade e tráfico de crianças, atletas menores de idade levados para serem explorados em outros países. A CPI fez recomendações à FIFA, às autoridades brasileiras, à CBF e apresentou proposta de mudança de legislação para prevenir esses crimes;
Indiciamentos. Em suas conclusões a CPI propôs o indiciamento de 31 pessoas (Ricardo Teixeira, 13 propostas de indiciamento; Hélio Viana, 5; Juan Figer, 5; e mais 19 indiciamentos de dirigentes de federações, agentes, empresários de futebol e outros intermediários).
Projeto de Lei. A CPI não se limitou a fazer denúncias e pedir os indiciamentos. Apresentou um acurado e abrangente projeto de lei, que já está tramitando na Câmara, que visa à criação do “Estatuto do Esporte”. É uma proposta completa de modernização da legislação sobre o Desporto Nacional, e inclui uma sugestão para a criação de um Ministério do Desporto, separado do setor de Turismo. Quem leu esse projeto – e infelizmente foram poucos até agora – avaliou que traz progressos importantes para a legislação desportiva.
Definitivamente, a CPI CBF-Nike não acabou em “pizza”.

Carlos Azevedo é jornalista.

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