terça-feira, 20 de novembro de 2012

ENQUANTO COLHIA AMORA


-"A minha casa tinha fogão a carvão. Tinha dispensa, tinha cristaleira, arca no quarto dos meus pais, roupas guardadas com um cheirinho bom de naftalina. A minha casa tinha cadeiras na sala, seis! e uma mesa de centro segurando três bisquís; uma dançarina, um elefante e um gatinho. Ainda na sala, sobre uma escrivaninha tinha um rádio ABC de 12  faixas.a alegria de meu pai. A minha casa tinha terreiro bem varrido, tinha quintal, mas. mais que tudo isso, a minha casa tinha, felicidade. Gostaria de dizer isso num palco do
tamanho do mundo... Do lado direito da minha casa, tinha uma casa velha, e do lado esquerdo bons vizinhos, meus tios e padrinhos.
Meu tio Zezé..., irmão de meu pai. Carpinteiro, desbrav ador das florestas, onde buscava a parceria da natureza para fabricar cangalhas, cancelas e ainda madeira grossa que transformava em tábuas, serradas com serras gigantes. Dia de ferrar as rodas do carro de boi, fogueira acesa, aro de ferro bem escondido embaixo da lenha até ficar vermelho como brasa. Alicates gigantes dançam no manejo, as rodas que tio Zezé fez, só faz esperar, os menino pegam água no rio, depois que o aro encaixar na roda, vem os ajustes com as marretas e aí é só jogar água para esfriar. E tome-la água e o vai e vem dos meninos só para quando o aro não solta mais fumaça.
No fundo da casa do meu tio Zezé, ficava sua
carpintaria, na sua ausência, quando ia para o mato, eu, Tonho, e Dí, meu primo, ficávamos a malinar nas ferramentas, tentando fazer um brinquedo qualquer. Meu irmão era o mestre, fabricava carrinhos, locomotivas e até torre para perfuração de petróleo. Que belas recordações!
Numa noite de lua cheia, sentei ao lado do meu tio, na porta da sua casa quando ele descansava, pitando o seu cigarro de palha, Havia uma claridade prateada sem, interrupções, vinda de um céu sem nuvens, completamente azul.
.                                                                       •
—Sabe Jonas. Numa noite assim, me dá vontade
de sair caminhando pelo campo, andar, andar, e quando cansasse me atirar num banco de areia branca e descansar sem pressa, talvez até o amanhecer.

Foram muitas as conversas, bate- papos, eu e meu tio tínhamos uma relação muito forte, ou era assim naqueles tempos ?. tios e sobrinhos, primos , avós e netos. Pais e filhos nem se fala. enfim todos eram muitos preciosos, a família era absoluta. Meu tio, as vezes cantarolava uma música, que nunca esqueci. Também nunca ouvi em rádio, nem mais ninguém cantar. Eu ficava bem quieto enquanto a voz dele flutuava e entrava na minha alma.

.....Lago azul,
     Indiferente assim
     o meu amor não vem
     não tem pena de mim

     Por que não vem
     por não saber amar
     a lua enamorar
     minha paixão sem fim....


                                                        ------Minha tia Silvina socava no pilão o café torrado  com rapadura, peneirava, peneirava, ágil alimentava  ofogo com lenha de primeira que logo virava "tissão".   As labaredas lambiam a chaleira e a água fervia. O pó fresquinho vai para o coador, e o caboré, um tipo de  bule de barro, acolhe o café “donzelo”, como ela chamava. Era um prazer diferente, e todos em volta saboreavam, como se outro igual só na próxima torrada. Minha tia dizia, que o café da lata era gostoso, mas não como saído do pilão.
                                       0s pensamentos de Jonas dão um pulo, não saem do  Vale do Ararí, o dos seus 12 anos para os 16, vai
                           Ao encontro de Rosa, resolver de uma vez o seu romance, acabar de vez com os comentários.
                            Era inevitável, Seo Juca ficou sabendo de tudo e D. Regina com aquele seu jeito de não deixar coisa alguma virar problema ficou no meio, assumiu o comando da situação. Conversava com o marido na sala , quando pela janela viu Rosa passando rapidamente. Apressou-se para  o terreiro, deparando com Jonas encostando sua bicicleta no tronco do jenipapeiro. Ele não sabia onde tinha encontrado tanta coragem, facilitava sua vida o temperamento de Seo Juca que logo apareceu coçando a barba e com um sorriso amistoso e sem esperar por Jonas foi logo dizendo:
                                   ------Se tá querendo falar comigo, tamo empatado, eu também quero falar com você.

                                          Jonas se aproximou dos assentos de troncos de coqueiro, arrumados no chão varrido na sombra da jaqueira grande. 
                                   ------Germano pilheriou comigo no pé do balcão de Turíbio, levando na brincadeira esse negócio do seu namoro com Rosinha, falando que era para eu engordar porco, peru,  como se vocês já tivesse pra se casar. Não dei ouvido, já sei como é esse  povo. Vocês são duas crianças e não deviam já ta pensando nessas coisas, mas  já que se acertaram só vou recomendar...abrir os olhos de vocês. Primeiro: só pode se ver pelo dia, pela noite nem eu deixo Rosinha no meio da escuridão e nem você  é esse home todo, pra atravessar  pinguela no escuro, nem passar por baixo do pé de biriba malassombrado como ele é.
Jonas estava aliviado, nem precisou falar, pedir para namorar com Rosa, mas também não gostou nada de ser chamado de criança. Seo Juca só faltou dizer que ainda fedia a mijo, ou que tinha acabado de sair das fraldas. D. Regina só observava, e Juca foi mais adiante.
                                     ------Rosinha estuda de manhã e dia de farinhada ta ocupada o dia todo, é melhor regular esse namoro para os fim de semana. Vamo ver até onde vai essa brincadeira de vocês.

ENQUANTO COLHIA AMORA-14


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como manter segredo de um namoro de dois jovens de 16 anos. Isso são coisas que o coração não pergunta e nem responde, deixa acontecer, os desejos estão acima de qualquer situação, até mesmo de riscos. Afinal quem disse que as emoções são racionais ?
Rosa também pensava como seria o primeiro beijo
e como a timidez seria vencida, como se encorajar. Ele morava no centro e ela num pequeno lote, fora do povoado, afastado da estrada e na outra margem do rio, de modo que para chegar lá, tinha que atravessar uma pinguela, claro, para quem não estava disposto a molhar os pés nas
águas rasas do Mirauna.   Estudava no Colégio Rural, próximo da ponte, mais afastado ainda do povoado, de modo que o povoado Vale do Ararí regulava como uma cidadezinha, com uma única rua comprida, e vários becos. O seu comercio era formado pôr botecos, três armazéns, uma padaria, uma farmácia que era um orgulho, com farmacêutico formado e sempre vestido a rigor, de paletó e gravata, procurado ate pôr moradores da sede e de outros municípios. Era comum desembarcar na estação ferroviária pacientes  em busca de socorro. A fama de Seo Felipe era grande , funcionava como  médico de família., sempre muito gentil ia
aonde precisassem dos seus cuidados.  
Aos sábados funcionava uma pequena feira livre, que puxava os moradores dos arredores para as compras. Nesse dia o povoado se agitava. O seu ponto mais importante era a
estação ferroviária. Cada trem que passava era uma atração. Pessoas até se arrumavam para na plataforma observar o movimento de embarque e desembarque, e até mesmo os diferentes rostos dos passageiros embarcados nos vagões de primeira e segunda classe   que seguiam adiante. Sem energia elétrica, as noites sem lua , era um breu, o que fazia todo povoado ficar deserto logo cedo. Afora as casas dos
mais remediados, que eram iluminadas com candeeiro de camisa, as demais, a grande maioria saiam da escuridão nas chamas de candeekos de pavio de algodão, com sua luz mais fraca que a de uma vela de sebo.
' Cidadezinha cheia de graça... Tão pequenina que até causa dó! Com seus burricos a pastar na praça... Sua igrejinha de uma torre só...
(Mario Quintana)
Tudo dificultava o relacionamento dos dois jovens, que bem nem havia começado. Se pelo menos fosse tempo de novenas, Jonas haveria de dar um
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jeito de chegar perto de Rosa, e uma oportunidade de tocá-la poderia surgir. Bem, agora era melhor esperar a noite passar. Enfiou-se na cama, demorou a pegar no sono, envolto em pensamentos e preocupações com o segredo do seu namoro. Perdia tempo, pois Wilson, o garoto mensageiro, quando passava na curva do sitio de D. Zefinha, parou e leu o bilhete, e assim ficou sabendo, primeiro que Jonas da resposta de Rosa. Se fosse só o fato de ele ficar sabendo primeiro, menos mal, o problema e que ele contou e pediu segredo a Zequinha, Roberto, Tônico e Zé Linaldo. Todos amigos de baba e banhos no pocinho. Wilson não sabe quem foi o traidor. suspeitou de todos, e todos negaram enquanto a noticia se espalhava sutilmente, chegando rapidamente aos ouvidos de D. Regina, mãe de Rosa.
- Rosa !
------ Oi, mãe !
------ Um passarinho passou por aqui, pousou bem perto
da janela e me contou que você tá namorando, namorando com Jonas. O passarinho mentiu ou cantou verdade?
Que situação ! seja tivesse, se abraçado, se beijado,
trocado caricias, valeria a pena, mas não, o namoro estava no ponto de partida. E essa historia de passarinho, quem teria sido e como a noticia havia chegado ao conhecimento de alguém. Ou Jonas num momento de loucura, saiu gritando por ai: "Rosa! Eu te amo"! "Rosa f eu te amo"! Se achou pretensiosa, o sentimento verdadeiro só com o tempo se estabeleceria, mas sem beijos, corre-corre pega-pega, não da pra saber.
---- O gato comeu sua língua?
---- Não, mãe, na verdade Jonas pediu pra namorar
comigo, eu aceitei, dei a resposta num bilhete, bilhete?Wilson! Inxerido!
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----- Ficou maluca menina?
----- Não mãe, mas a senhora não precisa se
preocupar, não fiz nada de errado, aliás o Jonas depois da resposta ainda nem chegou perto de mim.

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—Eu sei, minha filha! Mas se prepare porque Jucá já deve ter encontrado com o passarinho, e deve tá sabendo e começando a imaginar coisas . Seu pai é de paz, mas sempre esse assunto de namoro é melindroso, e nem eu nem ele se preparou para esse momento, aliás, só agora eu to reparando como você cresceu, e te enxergando como uma mocinha, e como você tá bonita! Bom, minha  filha, eu só posso lhe pedir que tenha juízo, quanto a Jonas, é mesmo um bom menino, filho de boa gente.
Enquanto isso Jonas, estava em casa e foi seu
irmão quem lhe deu a noticia. Tonho foi questionado sobre o namoro dele, por Basílio, que ficou sabendo por Zequinha, um dos amigos de Wilson.
----- Seu Jucá, quer falar com você! -brincou Tonho.
------ Comigo ? falar o que?
------ Deixa de ser besta, tá quase todo mundo sabendo.
você tá namorando com Rosa !
         Eu só falei pra namorar, mas depois disso ainda não
encontrei com ela. acho até que vou desistir.
------- Deixa de ser covarde! Desistir por Medo d* pai dela!
Mas eu to briBcaado, m*m sei se de já sabe. bus se «ao sabe. mão vai demorar muito, as mennas d» beco tão espahaado banJabo a •oticta. e num lugar pequeaocoaM» eâe. ateeocbiebo seespoJba.
------ Sacana!
------ Quem'
------ Esse Wilson, com aquela cara de
Qualquer assunto, interessava aquela gente, de
modo que, um simples romance de dois jovens era motivo de conversa entre moços e velhos, e enquanto não aparecesse um fato novo. nos pés de balcão e nos degraus da igreja, Jonas e Rosa seriam tema para os disse-me-disse

* O trem do pensamento da partida, deixa para trás a estação "adolescência"   volta veloz e para na estação "agora".
Jonas está debruçado na janela do seu quarto na cidade grande, já faz mais de um mês longe das amoreiras, enfim do Recanto Verde. Pensou  em não ficar muito tempo, sentia uma falta enorme do ar puro, da natureza plena e de  se encontrar com Deus.  Jonas sempre achou que ali era o melhor lugar.
...saiam do concreto e vão parado mato, porque
lá vão encontrar muitas respostas. O que me entristece na vida urbana é que a pessoa, o jovem se afasta do sagrado, cai no consumo e não tem saída...
.... O asfalto, o concreto, isso impede o ser humano, bicho-
homem, de receber determinadas emanações que vem das arvores, cachoeiras, de mato e canto de passarinho. Então , o que acontece? Isso cria na pessoa um vazio, uma saudade que muitas veies ela não sabe do que é.... ".
"....O remédio*é pisar na terra, é plantar, cavalgar, nadar em cachoeira, ver opor do sol.. ".
É isso mesmo, a lembrança de cada detalhe avançava sobre Jonas, e sua vida na cidade comparada com a do campo era diferente como o dia e a noite, e essa realidade deixava nele uma saudade extranha, um grande vazio, algo como a fome, um vazio que a alimentação não conseguia preencher.
Jonas  tenta reagir, mas na verdade esta
acometido por uma saudade , quase um sofrimento,  que ninguém pode avaliar.


"é possível dosar uma enzima, radiografar e medir um coração, isolar um vírus ou uma bactéria, mas não se pode medir o grau de tristeza ou de
sofrimento de alguém " (Marco Aurélio Dias)

Do quarto para a sala , abre o jornal e encontra mais saudades , na coluna do velho Junot Silveira:
"Calço minhas alpercatas de couro cru e meto o pé nos
caminhos do mundo. No chão de terra, das tortuosas veredas, e na pedra, no cascalho e no barro das largas estradas. Prefiro palmilhar o chão duro e seco, ou de lama e de poças d'água viscosas, a cobrir o asfalto.. ".
"O alforje no ombro, o facão na cintura, apele seca,
o andar firme sem cansaço e sem pressa, é assim que eu me vou. Atravesso os rios sem precisar de pontes e de canoas. Banho-me nos açudes com as suas baronesas, os meninos nus, pegando passarinho com visgueira, as piabas beliscando as carnes da gente, as mulheres virando a cara para não verem os homens sem roupa a beira d'água.. ".
"Enfio as alpercatas de couro cru nos pés e busco
esses caminhos desolados do sertão. Da terra crua e do homem sofrido. Do bode e do lagarto que mata a fome de muita gente, dos ninhos dejoão-de-barro cuidadosamente construídos no alto das arvores. Por remédio terei a
erva-cidreira, o mastruz, a caatinga-de-porco. E melhor do que tudo, a reza da benzedeira com o seu ramo de vassourinha, tirando mau olhado e quebranto... "

Ainda sentado no sofá, Jonas embarca no trem para tempos bem parecidos, e surgem boas lembranças e então ele viaja conversando com ele mesmo:

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Jonas olha pela janela  e vê o trem do seu pensamento  passando por uma vegetação que abriga pássaros de todas as cores e de todos os cantos numa manhã cristalina e de muita alegria,  é o retorno  para sua infância.

10 anos sua idade,  era uma época especial,  final de ano, encerramento das provas, féria escolares à vista. Jonas aguardava ansioso o trem das  dez, aguardava mesmo por Veraldina, amiga da famílai escolhida para comprar em Lagoinha a capa do caderno de férias. Já imaginava as figuras coloridas de bichinhos e flores contornados com areia prateada. Mais quatro dias e teria o último de aula.
Tinha sonhos e metas, o problema era a realização, era experimentar as emoções disponíveis para sua idade. Sonhava  por exermplo viajar no trem   das sete para Salvador, passar toda férias lá, se não toda, até a saudade apertar. Era sempre assim, queria sair, mas quando saia sentia falta do quintal, do pocinho, do caminho dos araçás, aí, forçava o retorno, vinha de trem porque não podia voar.

Quando  completar 15 anos   Jonas   quer aprender a profissão de telegrafista, para isso tem que aprender  o código  “Morse” , seu pai já disse que vai pedir a Seo Calixto, chefe da  estação ferroviária para  aceitar  a participação dele no grupo que já freqüenta as aulas todas as manhãs na sala de telegráfo. Quem sabe mais tarde, seria Chefe de Estação. Achava bonito a farda caque com botões dourados, e o quepe com uma locomotiva bordada no emblema. A farda de gala então... toda branca onde os botões dourados apareciam mais e fazia do chefe uma figura destacada no meio daquele povo de vestimentas simples.

---------A ?  ponto e linha   B?  linha três pontos   C? linha ponto linha ponto...

              Jonas  decorando o código, todos os dias Seo Calixto verificava sua aprendizagem perguntando os sinais  correspondentes  de A a Z e de 1 a 10, não demorou muito e a aula então passou para o manipulador, aparelho que através de impulsos elétricos levava as mensagens para outras estações  ferroviárias. Jonas ali passou dois anos numa experiência  divertida, até se sentia mais um funcionário da Rede Ferroviária, pois participava de tudo, despachava mercadorias, vendia bilhetes e cumpria horário até noite   a dentro, esperando com a equipe  os trens noturnos que por ali passava exatamente à meia noite. Já se achava pronto para a função, só faltava idade. Sem ter mais o que  aprender, aos poucos foi se afastando, pela manhã estudava e pela tarde ia levando  aquela vida mansa, de dias intere3ssantes, nos banhos de rio, nos babas, nas reuniões no “pontilhão” grande, onde a conversa só era interrompida quando pelas mãos de D. Maria Santeira o sino da igreja badalava seis vezes, anunciando ao povoado a hora da Avé Maria.

                                 Jonas adorava sua vidinha no Vale, com 15 anos, seus sonhos comparados com sua rotina tinha sempre sua tolerância, sua paciência ou sua confiança do: “meu dia chegará”. Enquanto isso ainda era tempo de brincar se distrair. Tinha hábitos isolados, ninguém o acompanhava a passar uma tarde fora do povoado, na sombra de uma árvore, lendo e ouvindo músicas num radinho de pilhas, ou do quintal, passar horas a desenhar a paisagem das casinhas brancas no pé do morro, bem na mira da janela da cozinha da sua casa. Aos sábados sua vida
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mudava completamente, o movimento no povoado crescia, e o armazém do Seo Nelson ficava entupido de clientes  . Nesse dia trabalhavam o proprietário, sua esposa, uma filha e dois cacheiros, um deles era Tonho, seu irmão. Se  movimentavam no atendimento,mais ainda era pouco, então Jonas foi  convidado a trabalhar aos sábados. Recebia uns trocados que no domingo já havia acabado, consumido em pés de moleque, bolinhos e arroz doce. Às dez horas Seu Nelson lhe retirava do balcão, lhe entregava umas moedas e ele ia  aguardar o trem das dez para comprar um exemplar do jornal A TARDE, vendido no restaurante onde era atendido pôr um garçom, de gravata borboleta Como era vespertino, o jornal chegava ao Vale com a edição do dia anterior.
----- Restaurante dentro do trem! Que onda!
Tinha curiosidade, para saber como os pratos e copos se equilibravam com o balanço do trem. Sempre pensava nisso enquanto retornava para trás do balcão, quando acontecia de viajar, nunca ia ao restaurante.
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Na infância Jonas conviveu com o vai e vem dos trens, de passageiros e de carga, vagões curral levando da seca para o encharcado o gado magro, ou trazendo de volta depois da engorda, uma troca entre as regiões com climas diferentes. O curral de embarque e desembarque ficava bem pertinho da sua casa. Existiam as locomotivas movidas a óleo puxando os trens de passageiros. Após a locomotiva um vagão dividido em três compartimentos. O primeiro era dos Correios, a do meio era utilizado para acomodar pequenas mercadorias e que era chamado de bagageiro e a terceira era a sala do Chefe do Trem. Depois vinham dois ou três vagões de segunda classe com seus bancos de madeira, em seguida o restaurante e por fim as primeiras classes. Passaram naqueles tempos os trens de petróleo e marcou particularmente uma locomotiva de número 303, conduzida pelo maquinista Zé Penteado, um condutor veloz que gostava de imprimir velocidade e se identificar com o apito inconfudível que só os seus dedos na corda fina sabiam cadenciar. Quando de longe se ouvia o apito, tudo se afastava da beira da linha, bicho e gente, e ficavam observando, observando o tic-tac nos trilhos e encantados com a melodia do apito que ele conseguia fazer se espalhar pelos arredores.
O Vale do Arari tinha Agencia Postal e o pai de Jonas Seo José era quem administrava os serviços, postar e distribuir as correspondências, preparar os sacolões de lona,colocar lacres jogar nas costas e levar para estação ferroviária, esperar o trem, entregar uns e receber outros. Ibatuí, um povoado que ficava longe da via férrea, tinha Agencia Postal, as correspondências saiam e chegavam lá no lombo do cavalo de Seo Quintino, que cavalgava mata a dentro uniformizado de "estafeta "   a sua roupa caqui com o
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quepe lhe fazia parecer mais um policial. A agencia do Vale do Arari era quem intermediava os malotes de Ibatuí.
E o trem do pensamento começa a partir junto com o trem de ferro de verdade, deixando Jonas embrulhando açúcar, e medindo farinha, atendendo os fregueses , e ainda não tinha ganhado velocidade e começa a parar, no cenário romântico da estação "adolescência ".
Jonas tomou seu banho cedo, mergulhou feliz nas águas do Mirauna, deixando um ponto esbranquiçado pelas espumas de um sabonete "EucaloT', num ensaboamento exagerado, como se assim fixasse melhor o perfume no seu corpo. Os cuidados com sua aparência chamou a atenção de, Luizinha uma de suas irmãs, afinal era uma quarta-feira, não era feriado nem dia santo. Preferiu não dar explicações,  saindo deixando para traz o cheiro conhecido de um "Lancaster "a muito esquecido por trás de uma caixa de pó de arroz, num canto da penteadeira do seu quarto. Como não sabia pôr onde vinha a resposta de Rosa, optou pôr ficar no início da rua , sentado, solitário à sombra do pé de sucupira. O sol já se encaminhava para o entardecer, e no tempo de mais ou menos uma hora. apenas Seu Justino passou pôr ali, carregando uma garrafinha para encher de querosene, lá na praça da igreja, no armazém de Seu Manelito. Jonas continuou, pôr mais um tempo, e quando desiludido se preparava para ir para casa. um freio de bicicleta o fez continuar sentado, Wilson , um garoto vizinho de Rosa, vinha todas as tardes comprar pão, do que ela se aproveitou o fazendo seu mensageiro.
— Rosa mandou lhe entregar.
— Brigado, Wilson.
Não leu o bilhete ali, cuidou para que ficasse bem protegido no bolso da camisa, e disparou para casa. Respirou fundo, sentado nos degraus do final do corredor^abriu numa ansiedade desesperada.
Jonas..
\ . A minha resposta é sim.
Beijos,
Rosa.
f Agora Jonas estava numa alegria aberta, mas
alguma coisa o deixava confuso, como seria o primeiro encontro, e

ENQUANTO COLHIA AMORAS-7


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                                 -----  Rosa !

                                 -----  Oi Jonas ! O que esta fazendo aqui ?

                                -----   Estava lhe esperando.

                                         Ainda meio encabulado, com a língua meia presa, Jonas foi em frente.

                               -----  Rosa! Eu acho você uma menina legal, venho observando apesar das poucas vezes que você vem à rua. Na verdade, no São João eu já fiquei com inveja de Milton, ele foi seu par, na quadrilha da rua de baixo. Mas o que eu quero falar mesmo, é perguntar se você quer namorar comigo ?.
                                        Rosa deu uma risadinha nervosa, e suspirou, tinha vontade de ter um namorado, não um namorado qualquer, queria uma pessoa que não tivesse a reprovação de seu pai e Jonas era um bom menino, comportado, educado mesmo, embora nunca tivesse avaliado a possibilidade de ele vir a ser seu namorado, ou talvez pôr achar, que ele não reparava nela. E agora, Jonas estava à sua frente, querendo namorar, como dar a resposta ?,  a timidez foi mais forte, e ela então resolveu ganhar tempo, fugir daquele momento inesperado, e mandar a resposta num bilhete.
                                   
                                                                
*

 O trem parte, deixando Jonas na sua adolescência aguardando a decisão de Rosa, e num piscar de olhos, freia e para num dia de verão rigoroso, ano de 1989.

                                       Jonas olhou para o céu completamente azul, nem uma frepazinha de nuvem, o sol escaldante, a terra com sede, estorricada. Tonho e Paulo imitavam seu gesto. Ainda bem que o vento, hora abafado, outra refrescante passava pôr ali.


                            ----- Verão como esse, eu só ouvi contar! - comentou Tonho.

                           -----  Eu também !  -- concordou Paulo.  

Jonas  assentiu com a cabeça..

                                   De repente, o sino da igreja badala vezes seguida.

                            ----- Pôr que ?  -- Paulo pergunta para Zé  Germano, que passa beirando a cerca, procurando se proteger em tudo que é planta com copa acima da sua cabeça.

                            ----- D. Maria Santeira, enlouqueceu?

                          
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----- Não!  é o pessoal de Mangabeira, Curralzinho, Boa Moita, de tudo que e lugar, até de Serra Fria, que resolveram rezar em procissão, pedir clemência a Deus!, pedir pra chover!.

                                    Para aquele povo, a ciência  da metrologia assumia uma orientação materialista, portanto conversa de fenômeno não lhes interessava, e todo aquele sofrimento com a seca devia ser castigo pelos pecados do povo, então só restava rezar, pedir perdão a Deus.
                                    Jonas, Tonho e Paulo, eram diferentes daquela gente. Nasceram todos pôr ali, mas hoje eram pequenos proprietários rural sem compromisso com as condições do  tempo para sobreviverem. Jonas, aposentado, escolheu seu sitio para tirar sua vida da ociosidade, mas principalmente pelo amor à natureza, adora mexer com a terra, semear, colher, tem ali uma vida realmente feliz. Tonho, é seu irmão e também ama aquele pedaço de chão, como Jonas, cuida , semeia e colhe principalmente alegria. Paulo é cunhado dos dois, correu mundo e voltou,  e na parte que coube  a sua esposa, realizou um sonho de 35 anos. Vivia pôr ali, trabalhando na propriedade rio seu pai, plantando principalmente mandioca. Sonhava com um laranjal, então trabalhou duro, transformou as raízes em farinha e vendeu. Com o dinheiro comprou mudas de laranjeiras, plantou, mas nunca colheu, a má qualidade dos enxertos fez com que o pomar não prosperasse. Agora sim, tem um belo laranjal, só pôr prazer, a realização de um sonho. Mas aquele povo, sofria mesmo.

A procissão se aproxima, a imagem de São José vem no andor carregado pôr Dermeval, Cosminho, Zé Correia e Manoel de Ló. Acompanhando, roceiros e suas mulheres, que apesar do calor vinham com o véu sobre a cabeça entoando uma reza, meio triste, parecendo ter sido feita para aquela ocasião. Algumas crianças também seguiam, e de tão quietas pareciam entender a gravidade da situação. Quem não seguia a procissão, corria para as janelas, beira da estrada, demonstrando no rosto um sinal de profundo respeito.
—Vamos subir pela Barra e descer pela Baixa da
Bananeira ! — informou Dominguinhos, um dos organizadores. £ lá se foi a procissão, se arrastando, como diz a música, e junto com ela . uma grande esperança.
E a resposta de São José ?,   só noutra viagem,
o trem do tempo já segue ligeiro e só vai parar depois do túnel dos sonhos na estação "futuro"
*
O que pretende Jonas nesta viagem?. A
humanidade, passageiros do tempo, na estação "agora", não está bem. Pensa nos passos dados em falso, orientados exclusivamente pôr uma visão  materialista, sabe que  os fatos  passados só admitem reflexões,  não voltam a acontecer, e o futuro não se pode  entrever.

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Nos sábados de aleluia, os garotos e adolescentes amanheciam numa expectativa nervosa, era tradição, todos cresceram com o movimento do “romper da aleluia”. Às nove horas o sino da igreja, e o da estação ferroviária auxiliados pelas  sinetas começavam a tocar juntos, acompanhados pelos repiques dos martelos nos trilhos, as varetas nas latas e em tudo onde pudesse ser retirado algum tipo de som , por alguns minutos  dominavam a atenção do povoado, provocando uma emoção besta para uns, mas na verdade inesquecível para muitos. Depois era só esperar pela movimentação até a queima do traidor, quando as “bombas” nas entranhas do infeliz começavam a explodir, pela vibração do povo parecia  se tratar de uma execução real, mas não, era a fé , o amor em Cristo que fazia qualquer um querer ser o carrasco, o vingador do filho de Deus.                       
                                           No mês de setembro,Jonas nunca perdia o seu lugar na fila do caruru de D. Gilmara, seria exagero dizer que ele era feito para todo povoado,  mas que uma parcela importante dos seus habitantes pegavam a direção da rua de cima , isso pode se garantir. Quando o casal partia, fazia uma falta enorme a muita gente. Jonas sentiu muito a falta do “baleiro”, o seu grito já fazia parte da rotina do Vale do Ararí.

                                            Outro acontecimento importante na vida daquela garotada, era a presença do vendedor de “tabocas”. Um dia, quebrando o silêncio do povoado o toque de um triângulo  provocou um levantar de cabeças, de gente e de bichos, carneiros que pastavam do lado do curral de ferro, dois cachorros que dormiam nas cinzas onde há alguns dias Seu José queimou plantas secas de “fedegoso”, arrancadas porque fechavam o caminho da estação ferroviária.  D. Alzira que ‘’estendia” roupas, virou a cabeça,  Mauro que ia puxando seu cavalo para amarrar no poste arqueou as sobrancelhas, e os meninos pararam as brincadeiras. Pela entrada do povoado , vindo  pelo lado da casa de Seu Maneca do Jacú, uma figura desconhecida carregando um latão nas costas tocava um triângulo e gritava:

                                        ------Taboca aaa!!!

                                                 E assim por muito tempo, todas as sextas feiras ele aparecia, vinha de Barra do Alegrete , de trem até Taipóca  e de lá se introduzia pelo campo, passando por vilas, pelas moradias isoladas no meio da mata. Do Vale pegava o trem  “mochila” e voltava pra casa.
 O  vendedor de tabocas deve ter comentado o seu sucesso e assim  fez surgir às segundas feiras , vindo da mesma procedência, o vendedor de “quebra-queixos”, aquelas paragens parecia mesmo ser uma fonte de renda para os estranhos comerciantes ambulantes, e assim com uma tabuleiro de flandre na cabeça e um cavalete  pendurado no ombro e o apelo:

                                    -----Olha o “quebra-queixo” ! quem vai querer?! 
              
                                         O pensamento de Jonas futuca todos os cantos da sua infância, desembrulha fatos, ressuscita  personagens marcantes,  revive figuras relevantes, como por exemplo a de Seo Manoel do Ouro, joalheiro ambulante, carregando uma pasta surrada.  Foi na mão dele que sua mãe comprou seu primeiro relógio, poucos garotos da sua idade possuíam igual. Tonho preferiu
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uma corrente com uma medalha de Santo Antônio de porcelana contornada com um aro fino de ouro. Seo Manoel era uma figura que até merecia  virar nome de rua, com seu chapéu “panamá”  e um paletó cinza-azulado sem combinar com as calças, Seu  Manoel aparecia quando ninguém esperava, por um bom tempo até fixou residência no Vale, mas não ficava por ali, era um viajante perseguindo compradores.

                                        Outra época em que  os pensamentos de Jonas sempre desembarca é a junina.  Em meados de maio  a professora começava a organizar a quadrilha, era preciso tempo para que os alunos assimilassem as novidades, partes novas que Suleide conheceu em Lagoinha. A garotada começava a viver uma emoção que só terminaria depois do dia de São Pedro.

                                      ---Dino viajou pra buscar fogos.

                                    ----Será que ele chega hoje  no trem mochila?

                                           A ansiedade só terminava quando o vendedor de todos os anos desembarcava na plataforma. Só em olhar as caixas coloridas dos traques , adrianinos e pistolas, era uma alegria indescritível.


                                      ----Seu Dino, quanto custa uma caixa de adrianino de lágrimas?

                                      ----oito conto, mas não é  coisa pra sua idade não.


                                      ----Meu pai segura na minha mão, vou ver se ele compra.

                                            Na véspera de São João o  povoado exalava felicidade, as ruas e becos se enfeitavam de bandeirolas, como não havia energia elétrica a quadrilha era encenada  as quatro da tarde. Quando começava a escurecer  as fogueiras iam sendo acesas. Em pouco tempo o povoado se enxergava e se aquecia nas chamas daqueles feixes de madeira. A garotada ficava por perto esperando um “tição” pra começar a queimar os fogos. Os menores se conformavam com os traques de massa e os fósforos de cor.  Os foguetes de lágrimas espocavam e de quanto mais longe se observava maior a admiração. Lá pra dez horas as ruas e becos já exibiam bêbados caídos pelos passeios, nas gramas, misturados com cascas de laranjas e amendoins. Uma vez Lourinho quase caiu dentro da fogueira, foi salvo por um bêbado mais equilibrado que embora trocando as pernas saiu se orgulhando do seu feito.

                                     


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. Da estação infância Jonas desembarca na estação  “agora”,  está só no Recanto, sente falta de Rita, e as amoras colhidas são guardadas com cuidado e será a primeira coisa a ser exibida quando voltar para a cidade.   Quando sua esposa está no  sitio, a tarefa de colher amoras é dela, Jonas só não sabe, se ela também tem um trem viajando pelo tempo levando seus pensamentos.
                                                 A solidão produz uma angústia que aperta seu peito, então é melhor apitar, mandar o trem partir, mudar seus pensamentos.

                                 A viagem para na estação “adolescência” , exatamente quando o coração começa a se envolver, com a visão focada nas raras garotas, escondidas nos afazeres comum à vida daquele povo pobre.  O povoado  sempre  parecia deserto, com um silêncio  regular como uma máquina, cada dia  semelhante ao outro.
                                Como um detetive espreitando seu alvo, Jonas vislumbra uma figura surgir no início da rua. De banho tomado, penteado molhado, saia mais ou menos justa, passos elegantes sobre a passarela de cascalho vermelho. Rosa agora fazia jus ao nome, depois de trabalhar com a família o dia todo na casa de farinha. Ele embora filho do homem do correio, não ligava para as filhas do farmacêutico ou do dono da padaria. Não eram metidas, mas depois das férias pegavam o trem das quatro e iam para cidade grande, e ele ficava
ali, como também ficava Rosa. Mas... e se Rosa resolvesse um dia pegar o trem das quatro ?  seu coração acelerava só de pensar, e quase para, quando a viu subindo a plataforma de sacola na mão. Se aproximou e observou ela comprando uma passagem de segunda classe para Lagoinha. Como estava indo no trem das sete, torcia para que retornasse nos das dez, viagem rápida que muitos faziam para tratar de negócios, compras ou até mesmo fazer consulta com médico ou dentista. O trem partiu, e lá na curva do pontilhão grande apitou, um apito meio triste aos ouvidos de Jonas, agravando ainda mais aquele sentimento de falta. Rondando a estação ferroviária, ficou das sete às dez horas, esperando, e ali pensou em várias maneiras de se declarar a Rosa, e se condenava, se tivesse feito isso, saberia de tudo da sua vida, e quem sabe essa viagem nem acontecesse, ou teria ido junto. Pôr fim, o sino da estação badala uma vez, informando que o trem partiu de Mussuranga, e só vinte minutos separa a sua angústia da sua ainda pretendida amada.
                                  A “composição” parada, passageiros sobem, passageiros descem, mas entre os que descem  falta Rosa. Se desespera, enche os olhos de água, se apressa para que ninguém perceba e vai sentar na rampa do curral de ferro. Depois de meia hora sem saber no que pensar, levanta a cabeça, e vê uma miragem, Rosa, com a mesma roupa que partiu, e de sacola na mão, estava à sua frente, passando sem perceber o seu desespero. Loucura pura! Como se fosse de propósito, só para lhe agoniar ela havia saltado do trem do lado oposto à plataforma, apenas achou mais prático para seguir o seu caminho. Como não era miragem, se encheu de alegria e desespero e achou que só existia aquele momento, não podia deixar para amanhã. Pediu a  Arlindo, seu amigo, uma bicicleta emprestada, e pedalou forte ,tão forte que quase voa,  parou no tamarineiro,  lugar estratégico para aguardar Rosa e declarar sua paixão. Ela não imaginava tudo que estava acontecendo no coração de Jonas pôr sua culpa, e assim sendo, se aproximou tranqüilamente da fruteira frondosa, quando então se deu a interrupção dos seus passos.