quinta-feira, 18 de outubro de 2007

ADOLESCENTES Pais inseguros, filhos sem limite


A tradicional rebeldia adolescente agora tem um complicador a mais: a conivência dos pais. A Faculdade de Saúde Pública implantou um Espaço de Reflexão para discutir e cuidar desses problemas

Yeda S. Santos

O adolescente precisa ser contra alguma coisa para construir sua personalidade. A tarefa mostrava-se mais fácil quando lutava por liberdade sexual. Hoje, o sexo liberado tirou importante aspecto da construção dessa independência. Por isso, os limites são imprescindíveis.

O Espaço para Reflexão de Pais de Adolescentes, promovido pelo Centro de Estudos do Crescimento e Desenvolvimento do Ser Humano do Departamento Materno Infantil da Faculdade de Saúde Pública da USP, oferece a oportunidade de os pais refletirem sobre como foi sua adolescência para daí extrair novos modelos de educar. São cerca de dez pais e mães de adolescentes, reunidos de 24 de outubro a 6 de dezembro, no Centro de Educação Permanente. "Não é um grupo terapêutico", avisa a psicóloga Sueli de Queiroz, uma das organizadoras.

O Espaço nasceu da constatação de que esses pais mostravam-se "perdidos" em relação a qual atitude tomar. "Chegam a pedir conselhos a coordenadores de escola, portanto precisam de apoio", acrescenta Sueli. Apoio não é exatamente o que o Espaço oferece, porém é o que vão buscar. "Querem receitas prontas de como educar os filhos," diz. Mulheres são mais numerosas, embora os homens estejam se agregando. O problema é tão sério, com tanta gente envolvida — diz a psicóloga —, que é considerado de saúde pública. Especulando sobre o assunto, Sueli acredita que, no futuro, os adolescentes de hoje criarão seus filhos com mais rigor.


Segundo a psicóloga Elaine Rabinovitch, coordenadora do Espaço, o atual modelo de núcleo familiar é muito tolerante em relação à sexualidade: "Tudo pode, está tudo bem", costumam repetir pais "bacaninhas, politicamente corretos", que querem ser sempre amigos dos filhos, simulando ter sua pouca idadee hábitos. Não oferecem restrições, são companheiros, o que acaba atrapalhando os adolescentes, pois estes "precisam da autoridade para poder lutar contra ela", diz. "Os pais não querem ser para os filhos o que seus pais foram para eles, mas não têm alternativas." Demonstram aversão ao autoritarismo, querem ser transparentes, apreciam o diálogo, buscam dar-lhes opção de uma relação mais aberta, diferente do que viveram.

Afirmam que seus pais tiveram "certezas", mas não conseguem encontrar o equilíbrio que permitiria torná-los menos inseguros. "Hoje os pais passam aos filhos inseguranças e incertezas que os seus também tiveram, porém discutiam-nas longe dos filhos e lhes davam o resultado dessas discussões." Criados com certezas, demonstram precisar delas, agora, para prosseguir. Mas as repudiam. Os grupos os auxiliam a encontrá-las, a partir da troca de experiências. Adolescentes, hoje, pedem limites, prossegue a psicóloga Sueli, especializada em distúrbios provocados por drogas e álcool. "Tais limites estão muito flexíveis, frouxos, em função da insegurança dos pais."

A troca de percepções resulta em crescimento, pois possibilita encontros capazes de permitir a todos se exporem. Ao final, concluem que sabem muitas coisas, e poderiam passá-las aos filhos, mas não o fazem por medo. Após concluírem o curso, porém, demonstram mais segurança quanto a tomar decisões.

Muito preço,

pouco valor

"As pessoas vivem a falta de clareza em relação a valores, pois tudo tem preço, nada tem valor", afirma Elaine Rabinovitch. Para ela, sem oposição, a pessoa vai para as drogas ou transfere conflitos da adolescência para o início da vida adulta.

O jovem quer provar o "proibido", vê-se atraído pelo desejo de transgredir antes de ter de reprimi-lo — uma exigência da vida adulta. De transgressões, os participantes do grupo falam com naturalidade. Afinal, pouco ou muito, todo mundo transgride. E, quando se fala em transgressão na adolescência, o uso de drogas logo se ressalta. Há jovens, porém, cujo contato com drogas "não os torna viciados", observa.

Apesar de as informações sobre drogas serem facilmente encontradas, considera-se que os adolescentes vão a elas para experimentar o prazer inicial: "Os problemas vêm com o tempo, embora possam verificar-se no primeiro uso, a alguém que tinha problemas cardíacos e não sabia", emenda Sueli.

Enquanto os pais se desesperam diante do uso de drogas, os filhos tratam o assunto com naturalidade. Os primeiros, em geral, esquecem-se de como foi, para eles, passar por essa fase, como eram punidos. O objetivo das reuniões é entender por que, para o jovem, tomar drogas significa, em parte, transgredir.

Vista de longe, a situação sugere que restou, para os pais usuários de drogas, "o abismo", a impressão de que "não deveriam ter experimentado". Conclusão que dificulta falar ao filho sobre isso, mas as psicólogas insistem: "A única saída é o diálogo".

A respeito de transgressão, pais ensinam filhos a transgredir, passando no sinal vermelho, justificando sua atitude com desculpas como "não tinha ninguém vendo". No futuro, a criança responderá que não usa drogas para sair do embaraço, mas usará tão logo se afaste do pai, pois "ninguém estará vendo".

"Drogas, hoje, são muito mais tabu do que foi o sexo na minha época", declara Sueli. Para ela, ninguém fala sobre drogas e revelações acerca de alcoolismo são raras: "Quase todos têm alguém com problemas de álcool ou drogas na família".

Se são proibidos de algo, o desejo dos jovens se fortalece. Caso contrário, poderão adquirir maus hábitos. "A democracia passa pelo não", pondera a psicóloga.

Para os organizadores do Espaço, esses pais enfrentam problemas de várias ordens — entre eles a influência do meio em que o adolescente vive. Elaine Rabinovitch pesquisou o ambiente consumista a que a sociedade moderna está subordinada, para concluir que pais não-consumistas dificilmente terão filhos iguais, já que o ambiente reforça o consumo. Ela compara tal atitude à do pai drogado, ao qual o filho imitará: "O modelo oferecido será assimilado, da mesma forma se ele for consumista", revela. O problema tem outros aspectos, e um deles define drogas. "Afegãos fumam haxixe diariamente e não se identificam como viciados, pois pesa, sobre sua atitude, o aspecto cultural."

Modos de convivência entre pessoas estão posicionando desencontros pela falta de tempo aliada à falta de paciência. "A volta à caretice é imprescindível", recomenda Elaine Rabinovitch.

Os laços primários de família estão se perdendo: crianças têm vinculos fortes com creches, escolas e, mais tarde, com o Exército, por exemplo. Nessa trajetória, visitam especialistas em educação, comportamento, dança, ginástica, enfim, tornando a família cada vez mais distante.

O mundo moderno traz novas formas de relacionamento, fator desencadeante da insegurança dos pais. Sueli exemplifica com famílias formadas por homossexuais (masculinos ou femininos); homens bem mais velhos do que suas esposas, formando famílias em que adolescentes convivem com bebês de pais diferentes e a mulher que trabalha fora e se sente culpada. Por entender que não oferece tempo de convivência razoável aos filhos, passa a contemplá-los com presentes e liberdades às vezes inadequadas ao seu grau de amadurecimento. "A mãe está pensando nela, perdoando-se, punindo-se."

No Espaço, os participantes têm oportunidade de falar sobre tudo isso: "Falamos pouco dos filhos; recuperamos a chance de os pais falarem de si mesmos como filhos, como pais". Alguns temas são trabalhados com mais atenção: autoritarismo, drogas, limites, sexualidade, consumismo: "Comenta-se sobre ser escravo dos filhos e, estes, escravos do consumo".

Tal dificuldade vem se instalando cada vez mais cedo. Atualmente, os pré-adolescentes — de 9 a 14 anos — necessitam de trabalho preventivo para estabelecer limites. Porém, quando os adultos se drogam, eles o fazem, em geral, para superar problemas individuais. "Trata-se da pessoa incapaz de enfrentar a realidade, mantendo desnível entre suas ambições e o que pensa de si própria", conclui Sueli.

Será que é vergonha?

Dia desses, um amigo me disse que seu sobrinho não permite que o pai ou a mãe o deixem à porta da escola. Fiquei estarrecido. Não acreditei e procurei aprofundar mais a conversa.


Não consegui imaginar esta situação: o carro parando uma quadra antes da escola, e o menino chegando sozinho, debaixo de chuva ou sol e, certamente, dizendo aos amigos que decidiu vir a pé. Explorei com ele o porquê dessa atitude e tentamos juntos chegar a algumas conclusões ou, pelo menos, considerações. Mas foi difícil.


Resumo agora as nossas reflexões. Partimos do princípio de que deveria haver algo errado com os pais para não poderem ser vistos.

Por outro lado, a companhia deles é muito bem aceita na hora de efetuar a compra daquele tênis da moda ou na hora de ir à escola em defesa do filho por causa de uma nota baixa ou uma prova mal corrigida.

Mas, se o celular do pequeno toca quando ele está em um passeio pelo shopping com os amigos e vê pelo identificador de chamadas que é sua mãe e atende, paga o maior “mico”.

No entanto, na hora de comprar a recarga para o telefone, a mãe não pode faltar e ainda é agradecida com um beijo.

E naquele trabalho escolar realizado em casa, em que alguns coleguinhas vieram a pé (desceram do carro a uma quadra da casa), chegaram jogando as mochilas e tirando os tênis, estacionando seus celulares sobre a mesa? Coitados dessa mãe ou desse pai se ousarem aparecer na sala.

Um dia antes, porém, a mãe fez uma deliciosa pizza e uma nega maluca para oferecer aos amigos do filho e agradá-los como se fossem seus filhos.

Diante dessas constatações (que espero que somente ocorram com o sobrinho de meu amigo), penso ser de extrema importância a reflexão sobre o papel desses pais tão impotentes diante de tantas exigências e, ao mesmo tempo, tão compreensivos diante de alguns fatos que beneficiam os filhos.

Se as crianças e jovens não tiverem claro qual é o papel dos pais em sua vida, vão agir assim mesmo. Essa é a visão que, momentaneamente, alguns têm: os pais são serviçais, que não podem falhar e devem suprir todas as necessidades (mesmo as desnecessárias), correndo o risco de serem excluídos se não se comportarem assim.

Acredito que é indispensável que os pais saibam enfrentar esse tipo de situação. Mostrar quem realmente tem a responsabilidade (na totalidade) sobre os filhos enquanto são menores, e que ou sua presença é importante em tudo ou em nada. Os pais não devem se intimidar em situação alguma, mostrando que, se já existe autonomia em algumas situações, há dependência em muitas outras, com o perigo de ela se efetivar em vários aspectos.

Certamente, a auto-afirmação dos filhos diante do grupo social ficará comprometida se houver a conivência dos pais em situações que venham banir a família desse meio, pois esta é importante no processo de formação da personalidade da criança. A família é seu primeiro grupo social e não pode ser substituída. Outras pessoas passam a compor esse grupo, porém, com valores diferentes, que também são importantes e que não excluem os que foram construídos no seio do convívio familiar.

Vale mostrar que, como pais, jamais a omissão se fará presente e que, por pior que seja a situação, vão enfrentá-la com a certeza de que nunca vão descer uma quadra antes.


ADOLESCÊNCIA. A DIFÍCIL FASE DE TRANSIÇÃO

Prof. Joseph Razouk Junior é

Gerente editorial do Centro de

Pesquisas Educacionais Positivo

Juventude estropiada

Adilson Luiz Gonçalves

“Juventude Transviada”, “Hippies”... Todos esses “movimentos” sempre tiveram um quê de protesto contra alguma coisa: repressão sócio-familiar, Guerra do Vietnã, etc. Ao menos tinham alguma razão de ser, embora todos tivessem um grande componente “fashion”, muito bem aproveitado pelos “marqueteiros”, que podiam ser, pessoalmente, conservadores, mas, sempre foram extremamente dinâmicos – e continuam a sê-lo - quando o assunto é lucrar com as fraquezas e deficiências dos outros, principalmente dos adolescentes.

Os hippies pregavam “paz e amor”, mas muitos de seus adeptos só queriam uma desculpa para não fazer absolutamente nada de convencional, fumar seu “baseado”, fazer sua “viagem lisérgica”, praticar “amor livre” e vender artesanato nas feirinhas ou esquinas, tocando flauta... Contra-cultura! Confesso que era até interessante vê-los pelas ruas, com suas calças desbotadas, batas coloridas, psicodélicas, cabelos compridos e desgrenhados, distribuindo flores para os mais velhos, rindo e dançando infantilmente; mas quantos não terminaram viciados em drogas ou tão – ou mais – conservadores e agarrados ao poder econômico, como o “establishment” que combatiam?

Generalizações são sempre perigosas, mas, é possível observar que, desde então, todos os “movimentos” jovens tiveram por objetivo alienar a juventude. Poucos, aliás, tiveram início em seu seio: Ela só foi “massa de manobra” de lances globais de marketing intimamente ligados ao mundo dos modismos e à estratégias de descaracterização cultural (teoria de conspiração?).

Mas, onde estão os hippies e transviados? Bem, muitos se transformaram em respeitáveis e conservadores membros da elite social. Ainda é possível ver alguns \"hell’s angels”, desfilando com suas Harley Davidson por aí, com bandanas na cabeça e roupas de couro, estilo “easy ridder”; mas, quase todos são empresários bem sucedidos, seguindo o caminho de seus pais, como na música de Belchior. Ainda ouvem CCR, mas com os olhos na Bolsa...

Mas, se olharmos de meados da década de 1970 para cá, perceberemos que houve uma mudança preocupante no foco desses “movimentos”: em vez de ideais de humanização para uma sociedade arcaica, o que se vê são propostas de sua degradação pessoal e coletiva! Em comum só têm os investidores no lado aparente de seus adeptos (roupas, maquiagens e acessórios).

É óbvio que tudo isso sempre tem a ver com questões sócio-econômicas e, quase sempre tem origem nos subúrbios do “Primeiro Mundo”, principalmente nos EUA e na Inglaterra. Assim foi como os “movimentos”: “punk”, “rap”, “góticos” etc. Nós, “terceiro-mundistas”, como bons “macaquitos”, fazemos questão de imitar tudo, mesmo que com alguns meses ou anos de atraso, provando que podemos ser “retardados” e colonizados de várias formas.

Mas qual é o limite entre o temporal (que faz estragos) e o duradouro (que os perpetua)?

Perdoem-me se estou sendo “careta”, mas creio estar na atitude dos pais perante os filhos! Digo isso porque, enquanto alguns pais prestam mais atenção em suas carreiras e vidas sociais, deixando que a “vida” os crie, outros são extremamente liberais: toleram tudo, permitem tudo, apóiam tudo, defendem tudo, mas, não medem nada! O resultado é que, hoje, proliferam “tribos” que só querem ser vistas, o que seria normal na adolescência; a diferença é que para serem “aceitos” nelas os jovens se mutilam: colocam argolas enormes nas orelhas, colocam “piercings” nos lugares mais improváveis e perigosos, gastam fortunas como roupas grotescas, tatuam o corpo todo (esquecendo que a moda muda), ficam até altas horas da madrugada em lugares públicos, falando alto e, por vezes, consumindo drogas... Agora existem os “emos”, que se acham mais sensíveis e, ocasionalmente, bissexuais. Onde estão os pais, em meio a tudo isso? Não vêem os filhos saírem de casa? Não vêem os filhos chegarem em casa?

Mas, não é só aí que a “coisa” fica, e “pega”: a adolescência é uma fase de transição, de confrontação, de auto-afirmação - o que é perfeitamente natural. Mas a esse processo natural de transgressão estão sendo incorporados valores distorcidos, alta agressividade e falta de educação como “estilo”: Também são “fashion”! Pedir licença? Por Favor? Agradecer? Nem pensar...

Sou pai e, portanto, ator e, potencialmente, “vítima” dessas circunstâncias. Tento cumprir minhas responsabilidades, e espero que outros também o façam! Mas, não posso negar que estou profundamente preocupado com o que o futuro nos reserva, pois muitos de nossos jovens aceitam, com a omissão ou conivência dos pais, entrar nessas “linhas de montagem” da alienação lucrativa que, em vez de “libertá-los”, vai torná-los cada vez mais escravos dela.

Não precisamos ser como nossos pais, mas, temos que ser pais!

Música X Violência

Muitos ainda se perguntam como dois jovens, com uma vida inteira pela frente, puderam cometer crime tão chocantes como os que se viram na escola de Littletown, no final do milênio. O debate nos EUA, assim como em todo o mundo, começou a suscitar várias hipóteses para tamanho desvio de comportamento.

Harris (18) e Klebold (17) faziam parte de uma gangue, a "Trenchcoat Mafia" (mafia do casaco), eram fãs de heavy metal e música industrial e se vestiam na moda gótica, assim como Marilyn Mason. Harris tinha um site satanista na internet que foi tirado do ar pela AOL, seu provedor, pelo contéudo muito forte - dentre eles um poema suicida, receitas de bombas caseiras, desenhos e uma versão personalizada do DOOM (jogo de computador extremamente violento). Seus assuntos preferidos: armas e morte.

Com a conivência dos pais, cada vez mais adolescentes se perdem no que se costumou chamar "liberdade", uma vez que tudo "é fase" e os pais não querem arcar com a responsabilidade e embaraço, perante a sociedade, de ter um adolescente "problemático".

Uma coisa é certa: a música influencia muito o comportamento dos jovens. Se pesquisarmos os crimes cometidos por adolescentes veremos que 99% deles gosta de rock e tem por divertimento filmes e jogos violentos. Basta ver aqui mesmo, no Brasil, os bailes funks no Rio de Janeiro, onde pelo menos uma pessoa é morta por baile, vítima da violência das gangues.

Em nossas escolas temos também uma situação caótica, com assassinatos, bombas caseiras e diretores escolares pedindo aos governos policiamento dentro de seus estabelecimentos por causa do tráfico de entorpecentes e da violência. Tudo isso onde teoricamente nossos filhos deveriam aprender ser educados. E nada pode se fazer contra os elementos que desvirtuam a mocidade. Estes não são somente os adolescentes problemáticos com família e situação complicadas. A conivência dos governos é enorme, com sua política de não censura, levando a TV e o rock como principais articuladores de formação juvenil. Os pais não entendem no final o que fizeram de errado ao assumir o conceito de liberalidade para educar.

Educar é corrigir com amor, para que possamos domar uma natureza decaída, e é isso que devemos passar para nossos filhos.Sem isso, criaremos monstros que não terão nem moral nem a graça de Deus, que é a coisa mais importante para todos nós.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A província da Bahia


Tasso Franco

(Transcrito do jornal Tribuna da Bahia)

A Bahia é uma província, desde o tempo da República Velha. Na Nova República, assim chamada pós-Tancre-do Neves (1984) e mesmo na era das ditas práticas republicanas, continua a velha província da Bahia. Exemplo mais sintomático desse ranço provinciano foi o epíteto criado pelo atual governo do Estado para definir o Centro Histórico de Salvador, conhecido assim há centúrias, para Centro Antigo, e o desmonte das atividades lúdicas, comerciais e culturais no Pelourinho.

Certo fez Dorival Caymmi, menestrel que colocou a província baiana no cenário da música nacional, o qual, se mandou da Bahia e foi embora sem dizer adeus. O governo do Estado na época de ACM ainda quis lhe dar uma casa em Salvador, mas ele recusou. Fez certo. Disse que a Bahia tinha virado um cocô depois da Rio/Bahia. Nunca mais veio em Salvador, salvo recentemente, quando recebeu uma homenagem no TCA e foi embora de novo sem visitar cenários que imortalizou.

Gilberto Gil também fez o mesmo. - A Bahia me deu, régua e compasso/ Quem sabe de mim sou eu/ Aquele abraço. Versou e se mandou também. Nos idos dos anos 1980, ainda tentou ser prefeito de Salvador, porém não conseguiu. Foi embora de malas e bagagens para o Rio de Janeiro e nos últimos cinco anos, eventualmente, vai a Brasília dirigir o Ministério da Cultura. Só vem a Bahia na época do Carnaval para ganhar um capilé a mais e/ou para assinar dois ou três convênios em sua área. Quando não, manda seu secretário geral, Juca Ferreira.

Aquele Gil que um dia lutou para recolocar o afoxé na posição que sempre mereceu, desfilando no rés-do-chão tocando agogô e cantando ajariô; aquele bravo e militante Gil da cultura do povo baiano, do povo de santo recentemente ridicularizado com uma tal de “Ebó-Arte”, desrespeito a preceito sagrado do candomblé patrocinado pelo poder estatal na capela do MAM, está aposentado. Paciência, ninguém é de ferro pra ficar o tempo todo dando murro em ponta de faca. Faz parte.

O “Ebó-Arte” patrocinado num dos templos das artes plásticas baianas, cenário de outros espetáculos e encenações teatrais e musicais, lançamentos de livros e outros, foi simplesmente ridículo, desproposital, como foram as brincadeiras de mau gosto com anãs e garrafas plásticas de Fanta. Não existiu na história dos últimos 50 anos de Bahia nada tão grotesco, tão absurdo, tão irracional, quanto o “Ebó-Arte”, não só pela agressão ao preceito básico do povo de santo; mas também a arte em si.

Além de Caymmi e Gil, voltando ao fio da meada, deixaram a Bahia depois dos efervescentes anos da contra-cultura e da Ufba de Edgard Santos, Caetano Veloso, Moraes Moreira, João Ubaldo Ribeiro, João Carlos Teixeira Gomes, Maria Bethânia, Sônia Cou-tinho, Antonio Torres, Glauber Rocha, Dias Gomes, Lázaro Ramos e tantos outros. Se não fosse a turma de Jorge Amado que aqui ficou, ainda com poucos representantes em vida, um ou dois Antonio Risério, um ou dois Fernando Conceição, adeus Bahia.

Quem é e quem faz a cultura baiana? A propósito, Antonio Risério escreveu recentemente em “Algumas Notas Baianas”, Revista Metrópole, que a Bahia vive “dias de radicalização do provincianis-mo e aprofundamento da mediocridade”. E acrescenta: “Em todos os seus níveis, planos, instâncias, dimensões, na administração pública, na produção artística”, pois, não há projetos para Salvador, nem para o Estado. Até o Domingueiras e o Chapéu de Palha (a observação é nossa), capitaneados pelo produtor Roberto Santana, dentro da proposta de modernização conservadora da era ACM foi riscado do mapa pela direção grupista da Secult.

A ameaça que se impôs a Fundação Casa de Jorge Amado, felizmente agora com a palavra do governador Wagner de que tudo está resolvido, é um desses atos típicos da província. Melhor seria, com todo respeito que se tem à dedicação e ao esforço de Miriam Fraga, levar o acervo do notável escritor brasileiro para a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde certamente teria um tratamento digno. Da maneira em que se encontra os prejuízos ao acervo serão inevitáveis.

Veja o seguinte: se o Estado brasileiro, tendo à frente um ministro de Cultura da Bahia, não consegue alocar R$3,5 milhões para se instalar um memorial a Jorge Amado, em sua Casa do Rio Vermelho, centro internacional da cultura literária nacional, pode-se advir o que acontecerá, em futuro próximo, à Fundação e ao projetado Memorial. Como disse João Ubaldo Ribeiro em recente entrevista, Jorge não foi uma personalidade qualquer para a Bahia e sim única.

Vejam outra historinha curiosa: tombaram a Igreja de Nossa Senhora da Vitória diante de uma briga judicial envolvendo a construção de um edifício de 36 andares na área da antiga Mansão Wildberger, como se a linha de ocupação do Corredor da Vitória estivesse virgem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra diante do valor patrimonial e artístico da igreja, um templo sem gabarito para tal, mas, o desejo provinciano de alta personalidade da cultura nacional, assim procedeu. Até o pároco do templo, Luis Simões, foi contra.

Como Dias Gomes já morreu e não tem mais condições de escrever o besteirol do provincianismo baiano, nem Glauber documentá-lo em cine, resta torcer para que as práticas republicanas em uso na Bahia nos dias atuais, sejam aperfeiçoadas e respeitem, quando nada, a memória do maior e mais traduzido escritor que este país já teve. Quanto ao Pelourinho, no embalo de desmonte em que se encontra, certamente voltará a ser palco dos velhos fantasmas que povoaram o local nos anos de 1970.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

NO AR, MAS UM VICE CAMPEÃO DE AUDIÊNCIA. TRANSCRITO DA REVISTA VEJA


A Record dobrou seu faturamento em três anos
e ultrapassou o SBT no segundo posto de audiência.
Seu dono, o bispo Edir Macedo, quer ir mais longe
- e tem os meios da Igreja Universal para isso

Nos últimos doze anos, Edir Macedo manteve-se longe dos holofotes. Líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da Rede Record, ele se devotou a suas atividades religiosas e empresariais da maneira mais discreta possível desde que foi atingido por dois escândalos, em 1995. Um deles foi o "chute na santa", a série de pontapés desferida em uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, pelo bispo Sérgio von Helde, num programa de sua emissora. O outro, a divulgação de um vídeo em que ensinava aos bispos de sua igreja, com palavras chulas, como arrecadar dinheiro dos fiéis. Mas agora Edir Macedo está de volta à cena. E com barulho. No próximo dia 15, lança uma biografia em que dá sua versão sobre as polêmicas que cercam sua vida. Há dez dias, ressurgiu no horário nobre da televisão para lançar o Record News, o primeiro canal inteiramente noticioso da TV aberta brasileira. Diante do presidente Lula e de autoridades como o governador de São Paulo, José Serra, ele não se limitou a celebrar o novo empreendimento.

Fez um discurso agressivo, referindo-se à líder de audiência do país, a Rede Globo, sem citá-la nominalmente: "Fomos injustiçados por muitos anos por um grupo de comunicação que tinha e mantém o monopólio da notícia no Brasil. Daí nosso desejo de dar fim a esse monopólio". Na semana passada, a Record voltou à carga – por meio de um editorial em seu principal noticiário, acusou a rival de ter feito gestões para impedir a inauguração da Record News. A saída do casulo e o ânimo de briga têm razão de ser. Além do novo canal de notícias, Macedo celebra feitos consideráveis da Rede Record, a jóia central de seu império de comunicações. Em agosto, a emissora tornou-se a segunda rede brasileira em ibope, superando o SBT em todas as faixas de horário. Além disso, de três anos para cá a Record dobrou seu faturamento publicitário – que já supera a marca de 1 bilhão de reais.

Quem olha os números de audiência nestas páginas constata que ainda existe uma enorme distância entre a Globo e suas competidoras. A Globo ostenta 21 pontos de ibope na média diária – o triplo da medição que a Record acaba de alcançar. Mas essa liderança mais do que confortável não evitou que a emissora carioca reagisse aos ataques de Macedo e da Record nos últimos dias. Ela respondeu no mesmo tom ao editorial do Jornal da Record, afirmando numa nota que agressões desse tipo eram de esperar vindas de "um grupo que lucra com a manipulação da fé religiosa". Trata-se de uma resposta que aponta as circunstâncias nebulosas que alavancaram a Record, mas não há dúvida de que por trás dela existe outro fato: o desafio imposto pelo canal do bispo Macedo é o mais duro que a Globo já enfrentou. O SBT nunca representou o mesmo tipo de ameaça: 10 pontos de audiência média sempre foram suficientes para que Silvio Santos mantivesse uma estrutura empresarial que lhe convinha. Não é assim com Edir Macedo. Ele é um homem muito mais ambicioso do que o dono do Baú da Felicidade – e a Record tem um papel central na realização de suas ambições. Ao mesmo tempo, a Igreja Universal oferece à Record recursos para prosperar: 300 milhões de reais por ano, por meio da compra de horários na programação. Esse dinheiro, proveniente do dízimo pago espontaneamente pelos fiéis da igreja, equivale a um terço de tudo o que a emissora arrecada no mercado publicitário. Trata-se de uma vantagem competitiva que nenhuma outra emissora desfruta.

Dizer que a Record só avança por causa do dinheiro da Universal é enxergar apenas uma parte do fenômeno. Sua arrancada deveu-se a uma mudança de filosofia ocorrida em 2004. A emissora já passara por duas fases. Da compra por Edir Macedo, em 1989, até o triste episódio do "chute na santa", o televangelismo dominou a programação. Na fase seguinte, a Record assumiu um perfil popularesco, em que o sensacionalismo do Cidade Alerta e do Programa do Ratinho era a grande atração. A guinada que agora começa a dar frutos foi desfechada há três anos. Por sugestão do então recém-contratado diretor comercial Walter Zagari, a rede optou por fazer uma operação muito comum nas televisões de todo o mundo. Decidiu-se "clonar" a programação da Globo e ter o famoso "padrão de qualidade" da emissora do Jardim Botânico como a meta a ser atingida.

A Record adotou um conceito de programação semelhante ao da concorrente. Investiu pesado na criação de um telejornal com o objetivo de emular o Jornal Nacional. A emissora do bispo despejou 300 milhões de reais na criação de uma indústria de novelas própria. Estava armado o bote. Antes que ele produzisse efeitos sensíveis no ibope, a Globo percebeu que havia uma ameaça nova no ar, algo que oferecia muito mais perigo do que o simpático mas pouco inventivo e acomodado SBT. Em três anos, a Record tirou sessenta jornalistas da Globo. Na área de teledramaturgia, a ousadia foi sinalizada pela compra dos antigos estúdios do humorista Renato Aragão, no Rio de Janeiro. A Record pagou 15 milhões de reais pelas instalações.

O RecNov, nome do complexo, simboliza essa fase exuberante da Record. Quando foi comprado, ele contava apenas com três galpões modestos. Hoje tem oito que, em tecnologia, pouco ficam a dever aos da Globo. O plano é dobrar esse número nos próximos anos. Os recursos técnicos de iluminação e de efeitos especiais de última geração logo começaram a aparecer na tela da Record. A atual novela das 10 da emissora, Caminhos do Coração, é onde isso aparece de forma mais clara. As cenas de ação e as crianças com superpoderes da trama são bastante convincentes. A Record inflacionou o mercado de técnicos e operadores de câmera. Muitos deles receberam ofertas salariais três vezes superiores ao que ganhavam na Globo. Atores, atrizes e diretores globais passaram a ser assediados com propostas financeiras tentadoras e a promessa de manutenção do padrão estético a que foram acostumados na emissora dos Marinho.

O acirramento da competição na televisão apenas raramente leva a melhorias na qualidade da programação. A atual investida da Record parece ser um desses raros casos. A emissora se propõe igualar e até superar, como dizem seus mais animados executivos, o padrão Globo de qualidade. Não só nas novelas. A mesma filosofia deve inspirar a área de variedades com aposta em programas populares, mas que não apelem para o grotesco. O objetivo é atrair um público qualificado, com poder de compra e que justifique cobrar caro pelos comerciais. O programa matinal Hoje em Dia mistura jornalismo e entretenimento e pode ser tomado como um exemplo dessa tentativa da Record. Decalcado de um formato da rede americana ABC, Good Morning America, o programa tem conseguido juntar diante da tela um porcentual de espectadores das classes A e B bastante expressivo para o horário. Nele se projetou a modelo Ana Hickmann, que tem batido em audiência os programas das loiras Ana Maria Braga e Xuxa – razão pela qual a Globo já estuda formas de revigorar o horário. Decidida a se profissionalizar, a Record não mexe uma palha atualmente sem fazer pesquisas de opinião. O Hoje em Dia foi feito sob medida para atender a um público adulto, em um horário em que Globo e SBT oferecem apenas opções para a criançada.

Faz parte do marketing da emissora emergente mostrar-se independente da Igreja Universal. O vínculo da Record com a Universal, no entanto, é indelével não apenas na origem e na coincidência de nomes com poder em ambas as instituições. Os cargos-chave são ocupados por bispos da Universal ou "obreiros", como são chamados os funcionários menos graduados. Um bispo cuida da tecnologia e outro coordena as vendas internacionais de novelas. Ofertam-se bolsas de estudo a funcionários ligados à igreja, para que estudem administração ou jornalismo e assim se credenciem a postos atualmente ocupados por leigos. A maioria dos seguranças e faxineiros também é da Universal. No topo dessa estrutura está um homem de confiança de Edir Macedo: o bispo Honorilton Gonçalves (leia abaixo a entrevista com ele).

O lado menos visível da guerra entre Record e Globo aflorou há dez dias, com o fogo cruzado deflagrado durante o lançamento da Record News. Nos últimos seis meses, o presidente Lula foi informado pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, sobre o andamento das negociações para a instalação do canal. Costa ficou em meio a duas demandas. De um lado, a Globo o fazia saber que a abertura da emissora feriria certos aspectos da legislação, em especial a proibição de que um mesmo grupo tenha dois canais abertos na mesma cidade – no caso, São Paulo. De outro, políticos ligados à Universal, como o senador Marcelo Crivella e o vice-presidente José Alencar, assediavam Costa com a informação de que existe uma saída jurídica para o impasse. Ao final, Costa sugeriu à Record que mudasse a composição societária da Rede Mulher, emissora que deu lugar à Record News. Mudança feita, o canal foi autorizado a operar.

A guerra subterrânea entre a Record e a Globo tem a programação da Igreja Universal nas madrugadas como ponto nevrálgico. O fato de a Record receber a injeção de cerca de 300 milhões de reais anuais da Igreja Universal a título de venda desse espaço é visto pela concorrente como uma vantagem indevida. A Universal paga 140.000 reais por hora em uma faixa de horário em que a Globo não arrecada mais do que 40.000 reais, mesmo obtendo uma audiência quatro vezes maior do que a concorrente. A título de comparação, a igreja de Edir Macedo paga apenas 55.000 reais por hora para a RedeTV! na compra de horário no começo da tarde naquela emissora. Não mais do que 5% do faturamento das TVs abertas vem do espaço comercial vendido durante a programação da madrugada. Chama a atenção do mercado o fato de na Record, ao contrário do que ocorre nas demais emissoras, a madrugada produzir 30% do faturamento. Mas se existe alguma ilegalidade na transferência de renda da igreja para a emissora ela ainda não foi argüida nos tribunais. A Receita Federal investiga atualmente cinco igrejas evangélicas, entre elas a Universal, pelo uso de dinheiro originário da fé (livre de tributos) sendo investido por seus líderes em empreendimentos temporais (tributáveis). A Receita não sabe ainda se há prejuízo para o Fisco na transação e trata a operação como uma "nova modalidade financeira" que deverá merecer, em breve, regras mais explícitas de funcionamento. Seja como for, uma concorrente turbinada por uma fonte generosa e garantida de recursos é uma novidade para a Globo. Os espectadores ficam na torcida para que da guerra resultem opções cada vez melhores no vídeo. A frase famosa de Newton Minow, presidente da NAB, a Associação Nacional de Emissoras dos Estados Unidos, dita em 1961, explica o porquê da torcida pela qualidade: "Quando a televisão é boa, nada é melhor do que ela. Quando ela é ruim, nada é pior".

A GLOBO TEM MEDO

Bispo licenciado da Igreja Universal, o carioca Honorilton Gonçalves, 47 anos, é vice-presidente da Record e responsável por sua parte artística. Mas o cargo não descreve com exatidão sua importância na emissora. Gonçalves é a voz de Edir Macedo na Record – aquele que implementa as idéias do bispo no campo da televisão. Temido pelos artistas, ele cultiva a fama de inacessível. Deu a seguinte entrevista a VEJA:

O SENHOR ACREDITA REALMENTE QUE UM DIA A RECORD PODE EMPARELHAR COM A GLOBO NO IBOPE?

Não vamos só emparelhar. Vamos passar a Globo. Esse dia não está longe. A Globo tem medo.

COMO O SENHOR AVALIA O MOMENTO ATUAL DO SBT?

Não estamos preocupados com o SBT. É um tema que a gente nem discute nas reuniões.

A RECORD PERTENCE AO LÍDER DA IGREJA UNIVERSAL, TEM BISPOS EM SEU COMANDO E BENEFICIA-SE DA LOCAÇÃO DE HORÁRIOS NA MADRUGADA PARA A IGREJA. MAS TEM SE ESFORÇADO PARA DESVINCULAR SUA IMAGEM DA IGREJA. POR QUÊ?

A Universal é um cliente como todos os demais. Nunca houve a identificação entre a igreja e a TV a que as pessoas se referem. Acredito que a sabedoria do senhor Edir Macedo em separar suas atividades de empresário das de líder religioso deixa muita gente irada, talvez até com certa frustração.

RECENTEMENTE, A RECORD ASSUMIU PUBLICAMENTE A POSIÇÃO PRÓ-ABORTO – QUE COINCIDE COM A VISÃO DA UNIVERSAL SOBRE O TEMA. POR QUE ADOTAR ESSA POSIÇÃO?

Foi uma orientação direta do senhor Edir Macedo, que nos pediu que conscientizássemos a sociedade da importância de a mulher poder decidir sobre o seu próprio destino.

O SENHOR CONFIRMA QUE A UNIVERSAL INJETA AO MENOS 300 MILHÕES DE REAIS POR ANO NA RECORD?

A Record não divulga o investimento dos seus clientes. Os valores da Universal são condizentes com as práticas de mercado. Por diversas vezes, a igreja procurou a Rede Globo e o SBT para colocar sua programação nas madrugadas dessas emissoras. Elas recusaram a proposta, dizendo que não faz parte de sua política de comercialização. Na Record não existe essa barreira.

AS NOVELAS SÃO, NO MOMENTO, AS MENINAS-DOS-OLHOS DA RECORD. VALE TANTO A PENA INVESTIR NELAS?

Por meio de pesquisas, descobrimos que não há nada como as novelas para atrair o público. E então decidimos fazer isso da melhor forma possível.

A RECORD ADOTOU A TÁTICA DE IMITAR O PADRÃO DE NOVELAS DA GLOBO. ATÉ QUE PONTO ELAS SÃO UMA REFERÊNCIA?

}Não são. Tentamos fazer novelas com a receita de que as pessoas gostam. Se a Globo também faz isso, talvez ela é que esteja imitando a gente.

ANTES DA RECORD, VÁRIAS EMISSORAS TENTARAM, EM VÃO, CRIAR INDÚSTRIAS PRÓPRIAS DE NOVELAS. POR QUE SE DEVE ACREDITAR QUE COM A RECORD SERÁ DIFERENTE?

Porque investimos em infra-estrutura. Nossa estratégia é de longo prazo. Estamos nos preparando com instalações, equipamentos e profissionais.

COMO O SENHOR AVALIA A PROGRAMAÇÃO EVANGÉLICA DAS MADRUGADAS DA RECORD?

Ela atende a seu propósito, que é mostrar que a Igreja Universal tem a mente aberta. Está preparada para discutir qualquer assunto: aborto, planejamento familiar, adoção de crianças por homossexuais.

EM QUE MEDIDA O BISPO EDIR MACEDO SE ENVOLVE NA ADMINISTRAÇÃO DA RECORD?

Todo dono espera resultado. É o que ele cobra.

Edir Macedo: a Universal já está em mais países que o McDonald's

A VERSÃO DO BISPO EDIR MACEDO

Com lançamento previsto para a segunda-feira 15, O Bispo – A História Revelada de Edir Macedo (Larousse; 275 páginas; 39,90 reais) ostenta a maior tiragem que já se viu no mercado editorial brasileiro. São 700.000 exemplares (metade dos quais, é verdade, será distribuída nos templos da Igreja Universal do Reino de Deus). A expectativa se justifica: a autobiografia marca o fim de um silêncio de doze anos. Traz a versão de Macedo para as polêmicas que cercam seu nome e a Universal, da política à guerra com a Globo. Escrita por dois funcionários de Edir Macedo – Douglas Tavolaro, diretor de jornalismo da Record, e a repórter Christina Lemos –, a obra oferece uma visão parcial dos fatos. O Edir Macedo que emerge das páginas é um homem obstinado e que se julga perseguido. A exceção é o episódio do "chute na santa". Edir faz mea-culpa pelo erro de um de seus pastores. Sobre outros assuntos, silêncio. Ele não responde às dúvidas que pairam a respeito de sua igreja e de seus negócios. Mas por meio do livro é possível conhecer um pouco mais sobre sua visão de mundo, além de obter informações sobre o império que Macedo construiu. A obra faz um inventário da Igreja Universal no Brasil – são 4.748 templos e 9.660 pastores, além de um complexo econômico que inclui construtoras, seguradoras, uma empresa de táxi aéreo, agências de turismo e consultorias. Mostra também a força conquistada pela Universal no exterior. Hoje, a igreja opera em 172 países (o McDonald's, a maior rede de fast-food do mundo, está em 118). Conforme se verá nestas páginas, O Bispo expõe a intimidade (e até a vida sexual) de Macedo – e também sua versão de episódios como a compra da Record.

SEXO E CASAMENTO

"O bispo não brinca quando o assunto é casamento. A união no altar é rigorosamente levada a sério dentro de sua instituição religiosa. Pastores somente crescem na hierarquia do grupo quando são bem casados. (...) Entre solteiros também há normas. Noivas de pastores passam por uma espécie de estágio ao conviver até doze meses com casais mais religiosos, mais experientes. (...) Para o bispo, sexo é uma dádiva. E pilar do casamento.

– Sexo não foi criado pelo diabo, mas por Deus. É o momento de aliviar as tensões – opina ele, dizendo-se radicalmente contra o celibato. – Quando faço sexo, vou para o altar mais forte."

ATROFIA NAS MÃOS

"O quarto filho da família Macedo Bezerra nasceu com deficiência na mão esquerda. Didi, como Edir era chamado pelos irmãos, tem uma pequena atrofia nos dedos. Seus indicadores são finos. Os polegares, um pouco maiores. Todos se movem pouco. Apenas os outros três dedos têm movimentos normais. O problema é hereditário. Sua avó, mãe de Henrique, tinha menos dedos em cada mão. Na infância, o defeito gerou complexos de inferioridade no menino Didi.

– Eu era o patinho feio da família. Tinha a sensação de que tudo o que eu fazia dava errado: era a pipa cortada, eram os balões que pegavam fogo. Às vezes me sentia um estorvo – lembra Edir Macedo. "

SUBMISSÃO DA MULHER

"Prevalece em nosso universo, sim. Mas não se trata de submissão imposta, é algo natural. O homem não é nada sem a mulher, e a mulher não é nada sem o homem. A mulher não deve se submeter à vontade do homem. O homem é que deve colocar-se como líder numa relação conjugal. Esse entendimento nasce à luz da Bíblia. O homem é a cabeça, e a mulher o corpo. Imagine um corpo sem cabeça ou vice-versa. Impossível existir relacionamento. Na direção da Igreja Universal, conhecemos exemplos desse tipo. Quando a mulher manda no marido, o pastor não cresce. Ela domina e não dá certo. No meu caso, quem manda dentro de casa é a Ester. Na igreja, sou eu. Um não pode ultrapassar o limite do outro. Em casa, eu só mando no meu escritório, e até lá ela mexe de vez em quando."

A PRIMEIRA VEZ

"Edir sempre foi muito namorador. A deficiência nas mãos nunca foi barreira para exercitar o papel de galanteador. Apesar da timidez, tinha conversa sedutora. Vaidoso com a aparência, dono de farta cabeleira, lisa e comprida, chegou à maioridade com muitas namoradas. Mas teve sua primeira relação sexual dois anos antes, aos 16, numa farra com colegas de escola no bairro do Catumbi.

– Foi antes do casamento, antes da minha conversão. Foi num bordel em frente ao colégio em que eu estudava à noite. "

CHUTE NA SANTA

"– Na hora soube que foi um erro... Nosso maior erro. (...) O Sérgio criou um problema na igreja. Atrasou nosso trabalho em dez anos. Ficamos parados no tempo por causa daquele chute. Atrapalhou a igreja, atrapalhou todos os nossos projetos. Nós estaríamos lá na frente, poderíamos ter ajudado muito mais gente se não fosse aquele ato impensado."

O ataque a Nossa Senhora: o maior erro

O DÍZIMO

"O que justifica a cobrança do dízimo?

Veja o exemplo da terra arrendada a um trabalhador: depois de cultivada, 50% do que dela se retira é do dono da terra, a outra metade é do arrendatário. Na igreja, os primeiros 10% são colocados na obra de Deus. Ele é o dono da terra, de nossa vida. Esse gesto é um sinal de consideração, de respeito e de fé. Não é um ato abstrato, teórico. É um compromisso que revela a fé prática. A de que Deus fica obrigado a esse compromisso com a pessoa que deu o dízimo, fica obrigado a cumprir a promessa que está na Bíblia: 'Trazei o dízimo e eu abrirei as janelas do céu.' Além disso, não impomos nada. Não cobramos o dízimo de ninguém. Apenas conscientizamos as pessoas dessa prática. É questão de colocar Deus em primeiro lugar na vida. (...) "

A BANCADA EVANGÉLICA

"A bancada evangélica hoje é respeitável, embora tenha diminuído nos últimos tempos. Tem representantes nas principais esferas do Poder Legislativo. São sete deputados federais, dezenove deputados estaduais, 91 vereadores e um senador da República integrantes da Universal. (...)

– Os políticos são para defender a causa do Evangelho. Para fazer frente a todos os movimentos de perseguição que enfrentamos. Edir Macedo assegura: apesar das especulações, nunca pensou em candidatar-se à Presidência da República.

– Mas, se eu fosse presidente, este país seria outro. Meu primeiro ato seria proibir o gasto de um centavo sem a minha autorização. Você iria ver este país mudar. Os corruptos iriam passar fome."

O PAPA BENTO XVI

"Exclusivamente um político. Mais nada. O que ele e o restante do clero fazem o tempo todo é apenas ditar regras, impor normas, em sua maioria contrárias à Bíblia. É só checar. São regras e mais regras, uma atrás da outra. Não pode fazer sexo, não pode usar camisinha, não pode planejar a família, a mulher não pode ter o direito de abortar, o segundo casamento é uma praga, sexo é somente para procriação, a Igreja Católica é a única verdadeira igreja de Cristo, os evangélicos são uma seita e por aí vai. Como ter uma opinião diferente?"

A COMPRA DA RECORD

"A transação era ousada. Entrou para a história como o maior negócio no setor de comunicações do país até então. As cifras assustaram especialistas do mercado. Não era comum uma empresa de rádio e televisão ser vendida por aquele valor no Brasil. No total, Edir Macedo assumiu uma dívida de 45 milhões de dólares ao adquirir a Record. Da quantia acertada, 14 milhões deveriam ser depositados logo no início. O restante, 31 milhões, seria pago à família Machado de Carvalho e a Silvio Santos ao longo de dois anos."

"A expressão do bispo Macedo muda ao recordar de uma manhã em seu escritório na Rádio Copacabana, centro do Rio de Janeiro. Sobre sua mesa, após horas de reuniões, os números da dívida da Record. O bispo pediu licença, trancou-se sozinho no banheiro e rezou.

– Coloquei minha cara no chão e chorei, chorei. (...)

Mas o inacreditável aconteceu meses depois, pontualmente no dia 15 de março de 1990, com o lançamento do Plano Collor. (...) As prestações do bispo Macedo, baseadas na cotação da moeda estrangeira, despencaram. As dívidas da compra da Record, antes exorbitantes, acabaram pagas com facilidade. Edir passou a zerar duas, até três prestações em um único mês. Antes de 1992, o bispo Macedo já quitara integralmente a dívida.

– Fui salvo pelo gongo. O Plano Collor só ajudou a mim no Brasil inteiro, mais ninguém. Sorte? Coincidência? Cada um acredite no que quiser. Eu tenho certeza que foi Deus. "

"Perguntamos se enfrentaria tudo novamente pela compra da Record.

– Não. Sinceramente, acho que não. Hoje eu não iria agüentar. Ninguém imagina o que passei, nem minha mulher sabe o que vivi.

Edir larga os talheres apoiados no prato, escorrega a mão direita pela cabeça e nos mira por cima dos óculos.

A resposta ganha tom de confissão:

– Quer saber a verdade? Se eu não cresse no meu Deus, teria dado um tiro na cabeça."

No ar, mais um vice-campeão. REVISTA VEJA


A Record dobrou seu faturamento em três anos
e ultrapassou o SBT no segundo posto de audiência.
Seu dono, o bispo Edir Macedo, quer ir mais longe
- e tem os meios da Igreja Universal para isso

Nos últimos doze anos, Edir Macedo manteve-se longe dos holofotes. Líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da Rede Record, ele se devotou a suas atividades religiosas e empresariais da maneira mais discreta possível desde que foi atingido por dois escândalos, em 1995. Um deles foi o "chute na santa", a série de pontapés desferida em uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, pelo bispo Sérgio von Helde, num programa de sua emissora. O outro, a divulgação de um vídeo em que ensinava aos bispos de sua igreja, com palavras chulas, como arrecadar dinheiro dos fiéis. Mas agora Edir Macedo está de volta à cena. E com barulho. No próximo dia 15, lança uma biografia em que dá sua versão sobre as polêmicas que cercam sua vida. Há dez dias, ressurgiu no horário nobre da televisão para lançar o Record News, o primeiro canal inteiramente noticioso da TV aberta brasileira. Diante do presidente Lula e de autoridades como o governador de São Paulo, José Serra, ele não se limitou a celebrar o novo empreendimento.

Fez um discurso agressivo, referindo-se à líder de audiência do país, a Rede Globo, sem citá-la nominalmente: "Fomos injustiçados por muitos anos por um grupo de comunicação que tinha e mantém o monopólio da notícia no Brasil. Daí nosso desejo de dar fim a esse monopólio". Na semana passada, a Record voltou à carga – por meio de um editorial em seu principal noticiário, acusou a rival de ter feito gestões para impedir a inauguração da Record News. A saída do casulo e o ânimo de briga têm razão de ser. Além do novo canal de notícias, Macedo celebra feitos consideráveis da Rede Record, a jóia central de seu império de comunicações. Em agosto, a emissora tornou-se a segunda rede brasileira em ibope, superando o SBT em todas as faixas de horário. Além disso, de três anos para cá a Record dobrou seu faturamento publicitário – que já supera a marca de 1 bilhão de reais.

Quem olha os números de audiência nestas páginas constata que ainda existe uma enorme distância entre a Globo e suas competidoras. A Globo ostenta 21 pontos de ibope na média diária – o triplo da medição que a Record acaba de alcançar. Mas essa liderança mais do que confortável não evitou que a emissora carioca reagisse aos ataques de Macedo e da Record nos últimos dias. Ela respondeu no mesmo tom ao editorial do Jornal da Record, afirmando numa nota que agressões desse tipo eram de esperar vindas de "um grupo que lucra com a manipulação da fé religiosa". Trata-se de uma resposta que aponta as circunstâncias nebulosas que alavancaram a Record, mas não há dúvida de que por trás dela existe outro fato: o desafio imposto pelo canal do bispo Macedo é o mais duro que a Globo já enfrentou. O SBT nunca representou o mesmo tipo de ameaça: 10 pontos de audiência média sempre foram suficientes para que Silvio Santos mantivesse uma estrutura empresarial que lhe convinha. Não é assim com Edir Macedo. Ele é um homem muito mais ambicioso do que o dono do Baú da Felicidade – e a Record tem um papel central na realização de suas ambições. Ao mesmo tempo, a Igreja Universal oferece à Record recursos para prosperar: 300 milhões de reais por ano, por meio da compra de horários na programação. Esse dinheiro, proveniente do dízimo pago espontaneamente pelos fiéis da igreja, equivale a um terço de tudo o que a emissora arrecada no mercado publicitário. Trata-se de uma vantagem competitiva que nenhuma outra emissora desfruta.

Dizer que a Record só avança por causa do dinheiro da Universal é enxergar apenas uma parte do fenômeno. Sua arrancada deveu-se a uma mudança de filosofia ocorrida em 2004. A emissora já passara por duas fases. Da compra por Edir Macedo, em 1989, até o triste episódio do "chute na santa", o televangelismo dominou a programação. Na fase seguinte, a Record assumiu um perfil popularesco, em que o sensacionalismo do Cidade Alerta e do Programa do Ratinho era a grande atração. A guinada que agora começa a dar frutos foi desfechada há três anos. Por sugestão do então recém-contratado diretor comercial Walter Zagari, a rede optou por fazer uma operação muito comum nas televisões de todo o mundo. Decidiu-se "clonar" a programação da Globo e ter o famoso "padrão de qualidade" da emissora do Jardim Botânico como a meta a ser atingida.

A Record adotou um conceito de programação semelhante ao da concorrente. Investiu pesado na criação de um telejornal com o objetivo de emular o Jornal Nacional. A emissora do bispo despejou 300 milhões de reais na criação de uma indústria de novelas própria. Estava armado o bote. Antes que ele produzisse efeitos sensíveis no ibope, a Globo percebeu que havia uma ameaça nova no ar, algo que oferecia muito mais perigo do que o simpático mas pouco inventivo e acomodado SBT. Em três anos, a Record tirou sessenta jornalistas da Globo. Na área de teledramaturgia, a ousadia foi sinalizada pela compra dos antigos estúdios do humorista Renato Aragão, no Rio de Janeiro. A Record pagou 15 milhões de reais pelas instalações.

O RecNov, nome do complexo, simboliza essa fase exuberante da Record. Quando foi comprado, ele contava apenas com três galpões modestos. Hoje tem oito que, em tecnologia, pouco ficam a dever aos da Globo. O plano é dobrar esse número nos próximos anos. Os recursos técnicos de iluminação e de efeitos especiais de última geração logo começaram a aparecer na tela da Record. A atual novela das 10 da emissora, Caminhos do Coração, é onde isso aparece de forma mais clara. As cenas de ação e as crianças com superpoderes da trama são bastante convincentes. A Record inflacionou o mercado de técnicos e operadores de câmera. Muitos deles receberam ofertas salariais três vezes superiores ao que ganhavam na Globo. Atores, atrizes e diretores globais passaram a ser assediados com propostas financeiras tentadoras e a promessa de manutenção do padrão estético a que foram acostumados na emissora dos Marinho.

O acirramento da competição na televisão apenas raramente leva a melhorias na qualidade da programação. A atual investida da Record parece ser um desses raros casos. A emissora se propõe igualar e até superar, como dizem seus mais animados executivos, o padrão Globo de qualidade. Não só nas novelas. A mesma filosofia deve inspirar a área de variedades com aposta em programas populares, mas que não apelem para o grotesco. O objetivo é atrair um público qualificado, com poder de compra e que justifique cobrar caro pelos comerciais. O programa matinal Hoje em Dia mistura jornalismo e entretenimento e pode ser tomado como um exemplo dessa tentativa da Record. Decalcado de um formato da rede americana ABC, Good Morning America, o programa tem conseguido juntar diante da tela um porcentual de espectadores das classes A e B bastante expressivo para o horário. Nele se projetou a modelo Ana Hickmann, que tem batido em audiência os programas das loiras Ana Maria Braga e Xuxa – razão pela qual a Globo já estuda formas de revigorar o horário. Decidida a se profissionalizar, a Record não mexe uma palha atualmente sem fazer pesquisas de opinião. O Hoje em Dia foi feito sob medida para atender a um público adulto, em um horário em que Globo e SBT oferecem apenas opções para a criançada.

Faz parte do marketing da emissora emergente mostrar-se independente da Igreja Universal. O vínculo da Record com a Universal, no entanto, é indelével não apenas na origem e na coincidência de nomes com poder em ambas as instituições. Os cargos-chave são ocupados por bispos da Universal ou "obreiros", como são chamados os funcionários menos graduados. Um bispo cuida da tecnologia e outro coordena as vendas internacionais de novelas. Ofertam-se bolsas de estudo a funcionários ligados à igreja, para que estudem administração ou jornalismo e assim se credenciem a postos atualmente ocupados por leigos. A maioria dos seguranças e faxineiros também é da Universal. No topo dessa estrutura está um homem de confiança de Edir Macedo: o bispo Honorilton Gonçalves (leia abaixo a entrevista com ele).

O lado menos visível da guerra entre Record e Globo aflorou há dez dias, com o fogo cruzado deflagrado durante o lançamento da Record News. Nos últimos seis meses, o presidente Lula foi informado pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, sobre o andamento das negociações para a instalação do canal. Costa ficou em meio a duas demandas. De um lado, a Globo o fazia saber que a abertura da emissora feriria certos aspectos da legislação, em especial a proibição de que um mesmo grupo tenha dois canais abertos na mesma cidade – no caso, São Paulo. De outro, políticos ligados à Universal, como o senador Marcelo Crivella e o vice-presidente José Alencar, assediavam Costa com a informação de que existe uma saída jurídica para o impasse. Ao final, Costa sugeriu à Record que mudasse a composição societária da Rede Mulher, emissora que deu lugar à Record News. Mudança feita, o canal foi autorizado a operar.

A guerra subterrânea entre a Record e a Globo tem a programação da Igreja Universal nas madrugadas como ponto nevrálgico. O fato de a Record receber a injeção de cerca de 300 milhões de reais anuais da Igreja Universal a título de venda desse espaço é visto pela concorrente como uma vantagem indevida. A Universal paga 140.000 reais por hora em uma faixa de horário em que a Globo não arrecada mais do que 40.000 reais, mesmo obtendo uma audiência quatro vezes maior do que a concorrente. A título de comparação, a igreja de Edir Macedo paga apenas 55.000 reais por hora para a RedeTV! na compra de horário no começo da tarde naquela emissora. Não mais do que 5% do faturamento das TVs abertas vem do espaço comercial vendido durante a programação da madrugada. Chama a atenção do mercado o fato de na Record, ao contrário do que ocorre nas demais emissoras, a madrugada produzir 30% do faturamento. Mas se existe alguma ilegalidade na transferência de renda da igreja para a emissora ela ainda não foi argüida nos tribunais. A Receita Federal investiga atualmente cinco igrejas evangélicas, entre elas a Universal, pelo uso de dinheiro originário da fé (livre de tributos) sendo investido por seus líderes em empreendimentos temporais (tributáveis). A Receita não sabe ainda se há prejuízo para o Fisco na transação e trata a operação como uma "nova modalidade financeira" que deverá merecer, em breve, regras mais explícitas de funcionamento. Seja como for, uma concorrente turbinada por uma fonte generosa e garantida de recursos é uma novidade para a Globo. Os espectadores ficam na torcida para que da guerra resultem opções cada vez melhores no vídeo. A frase famosa de Newton Minow, presidente da NAB, a Associação Nacional de Emissoras dos Estados Unidos, dita em 1961, explica o porquê da torcida pela qualidade: "Quando a televisão é boa, nada é melhor do que ela. Quando ela é ruim, nada é pior".

A GLOBO TEM MEDO

Bispo licenciado da Igreja Universal, o carioca Honorilton Gonçalves, 47 anos, é vice-presidente da Record e responsável por sua parte artística. Mas o cargo não descreve com exatidão sua importância na emissora. Gonçalves é a voz de Edir Macedo na Record – aquele que implementa as idéias do bispo no campo da televisão. Temido pelos artistas, ele cultiva a fama de inacessível. Deu a seguinte entrevista a VEJA:

O SENHOR ACREDITA REALMENTE QUE UM DIA A RECORD PODE EMPARELHAR COM A GLOBO NO IBOPE?

Não vamos só emparelhar. Vamos passar a Globo. Esse dia não está longe. A Globo tem medo.

COMO O SENHOR AVALIA O MOMENTO ATUAL DO SBT?

Não estamos preocupados com o SBT. É um tema que a gente nem discute nas reuniões.

A RECORD PERTENCE AO LÍDER DA IGREJA UNIVERSAL, TEM BISPOS EM SEU COMANDO E BENEFICIA-SE DA LOCAÇÃO DE HORÁRIOS NA MADRUGADA PARA A IGREJA. MAS TEM SE ESFORÇADO PARA DESVINCULAR SUA IMAGEM DA IGREJA. POR QUÊ?

A Universal é um cliente como todos os demais. Nunca houve a identificação entre a igreja e a TV a que as pessoas se referem. Acredito que a sabedoria do senhor Edir Macedo em separar suas atividades de empresário das de líder religioso deixa muita gente irada, talvez até com certa frustração.

RECENTEMENTE, A RECORD ASSUMIU PUBLICAMENTE A POSIÇÃO PRÓ-ABORTO – QUE COINCIDE COM A VISÃO DA UNIVERSAL SOBRE O TEMA. POR QUE ADOTAR ESSA POSIÇÃO?

Foi uma orientação direta do senhor Edir Macedo, que nos pediu que conscientizássemos a sociedade da importância de a mulher poder decidir sobre o seu próprio destino.

O SENHOR CONFIRMA QUE A UNIVERSAL INJETA AO MENOS 300 MILHÕES DE REAIS POR ANO NA RECORD?

A Record não divulga o investimento dos seus clientes. Os valores da Universal são condizentes com as práticas de mercado. Por diversas vezes, a igreja procurou a Rede Globo e o SBT para colocar sua programação nas madrugadas dessas emissoras. Elas recusaram a proposta, dizendo que não faz parte de sua política de comercialização. Na Record não existe essa barreira.

AS NOVELAS SÃO, NO MOMENTO, AS MENINAS-DOS-OLHOS DA RECORD. VALE TANTO A PENA INVESTIR NELAS?

Por meio de pesquisas, descobrimos que não há nada como as novelas para atrair o público. E então decidimos fazer isso da melhor forma possível.

A RECORD ADOTOU A TÁTICA DE IMITAR O PADRÃO DE NOVELAS DA GLOBO. ATÉ QUE PONTO ELAS SÃO UMA REFERÊNCIA?

}Não são. Tentamos fazer novelas com a receita de que as pessoas gostam. Se a Globo também faz isso, talvez ela é que esteja imitando a gente.

ANTES DA RECORD, VÁRIAS EMISSORAS TENTARAM, EM VÃO, CRIAR INDÚSTRIAS PRÓPRIAS DE NOVELAS. POR QUE SE DEVE ACREDITAR QUE COM A RECORD SERÁ DIFERENTE?

Porque investimos em infra-estrutura. Nossa estratégia é de longo prazo. Estamos nos preparando com instalações, equipamentos e profissionais.

COMO O SENHOR AVALIA A PROGRAMAÇÃO EVANGÉLICA DAS MADRUGADAS DA RECORD?

Ela atende a seu propósito, que é mostrar que a Igreja Universal tem a mente aberta. Está preparada para discutir qualquer assunto: aborto, planejamento familiar, adoção de crianças por homossexuais.

EM QUE MEDIDA O BISPO EDIR MACEDO SE ENVOLVE NA ADMINISTRAÇÃO DA RECORD?

Todo dono espera resultado. É o que ele cobra.

Edir Macedo: a Universal já está em mais países que o McDonald's

A VERSÃO DO BISPO EDIR MACEDO

Com lançamento previsto para a segunda-feira 15, O Bispo – A História Revelada de Edir Macedo (Larousse; 275 páginas; 39,90 reais) ostenta a maior tiragem que já se viu no mercado editorial brasileiro. São 700.000 exemplares (metade dos quais, é verdade, será distribuída nos templos da Igreja Universal do Reino de Deus). A expectativa se justifica: a autobiografia marca o fim de um silêncio de doze anos. Traz a versão de Macedo para as polêmicas que cercam seu nome e a Universal, da política à guerra com a Globo. Escrita por dois funcionários de Edir Macedo – Douglas Tavolaro, diretor de jornalismo da Record, e a repórter Christina Lemos –, a obra oferece uma visão parcial dos fatos. O Edir Macedo que emerge das páginas é um homem obstinado e que se julga perseguido. A exceção é o episódio do "chute na santa". Edir faz mea-culpa pelo erro de um de seus pastores. Sobre outros assuntos, silêncio. Ele não responde às dúvidas que pairam a respeito de sua igreja e de seus negócios. Mas por meio do livro é possível conhecer um pouco mais sobre sua visão de mundo, além de obter informações sobre o império que Macedo construiu. A obra faz um inventário da Igreja Universal no Brasil – são 4.748 templos e 9.660 pastores, além de um complexo econômico que inclui construtoras, seguradoras, uma empresa de táxi aéreo, agências de turismo e consultorias. Mostra também a força conquistada pela Universal no exterior. Hoje, a igreja opera em 172 países (o McDonald's, a maior rede de fast-food do mundo, está em 118). Conforme se verá nestas páginas, O Bispo expõe a intimidade (e até a vida sexual) de Macedo – e também sua versão de episódios como a compra da Record.

SEXO E CASAMENTO

"O bispo não brinca quando o assunto é casamento. A união no altar é rigorosamente levada a sério dentro de sua instituição religiosa. Pastores somente crescem na hierarquia do grupo quando são bem casados. (...) Entre solteiros também há normas. Noivas de pastores passam por uma espécie de estágio ao conviver até doze meses com casais mais religiosos, mais experientes. (...) Para o bispo, sexo é uma dádiva. E pilar do casamento.

– Sexo não foi criado pelo diabo, mas por Deus. É o momento de aliviar as tensões – opina ele, dizendo-se radicalmente contra o celibato. – Quando faço sexo, vou para o altar mais forte."

ATROFIA NAS MÃOS

"O quarto filho da família Macedo Bezerra nasceu com deficiência na mão esquerda. Didi, como Edir era chamado pelos irmãos, tem uma pequena atrofia nos dedos. Seus indicadores são finos. Os polegares, um pouco maiores. Todos se movem pouco. Apenas os outros três dedos têm movimentos normais. O problema é hereditário. Sua avó, mãe de Henrique, tinha menos dedos em cada mão. Na infância, o defeito gerou complexos de inferioridade no menino Didi.

– Eu era o patinho feio da família. Tinha a sensação de que tudo o que eu fazia dava errado: era a pipa cortada, eram os balões que pegavam fogo. Às vezes me sentia um estorvo – lembra Edir Macedo. "

SUBMISSÃO DA MULHER

"Prevalece em nosso universo, sim. Mas não se trata de submissão imposta, é algo natural. O homem não é nada sem a mulher, e a mulher não é nada sem o homem. A mulher não deve se submeter à vontade do homem. O homem é que deve colocar-se como líder numa relação conjugal. Esse entendimento nasce à luz da Bíblia. O homem é a cabeça, e a mulher o corpo. Imagine um corpo sem cabeça ou vice-versa. Impossível existir relacionamento. Na direção da Igreja Universal, conhecemos exemplos desse tipo. Quando a mulher manda no marido, o pastor não cresce. Ela domina e não dá certo. No meu caso, quem manda dentro de casa é a Ester. Na igreja, sou eu. Um não pode ultrapassar o limite do outro. Em casa, eu só mando no meu escritório, e até lá ela mexe de vez em quando."

A PRIMEIRA VEZ

"Edir sempre foi muito namorador. A deficiência nas mãos nunca foi barreira para exercitar o papel de galanteador. Apesar da timidez, tinha conversa sedutora. Vaidoso com a aparência, dono de farta cabeleira, lisa e comprida, chegou à maioridade com muitas namoradas. Mas teve sua primeira relação sexual dois anos antes, aos 16, numa farra com colegas de escola no bairro do Catumbi.

– Foi antes do casamento, antes da minha conversão. Foi num bordel em frente ao colégio em que eu estudava à noite. "

CHUTE NA SANTA

"– Na hora soube que foi um erro... Nosso maior erro. (...) O Sérgio criou um problema na igreja. Atrasou nosso trabalho em dez anos. Ficamos parados no tempo por causa daquele chute. Atrapalhou a igreja, atrapalhou todos os nossos projetos. Nós estaríamos lá na frente, poderíamos ter ajudado muito mais gente se não fosse aquele ato impensado."

O ataque a Nossa Senhora: o maior erro

O DÍZIMO

"O que justifica a cobrança do dízimo?

Veja o exemplo da terra arrendada a um trabalhador: depois de cultivada, 50% do que dela se retira é do dono da terra, a outra metade é do arrendatário. Na igreja, os primeiros 10% são colocados na obra de Deus. Ele é o dono da terra, de nossa vida. Esse gesto é um sinal de consideração, de respeito e de fé. Não é um ato abstrato, teórico. É um compromisso que revela a fé prática. A de que Deus fica obrigado a esse compromisso com a pessoa que deu o dízimo, fica obrigado a cumprir a promessa que está na Bíblia: 'Trazei o dízimo e eu abrirei as janelas do céu.' Além disso, não impomos nada. Não cobramos o dízimo de ninguém. Apenas conscientizamos as pessoas dessa prática. É questão de colocar Deus em primeiro lugar na vida. (...) "

A BANCADA EVANGÉLICA

"A bancada evangélica hoje é respeitável, embora tenha diminuído nos últimos tempos. Tem representantes nas principais esferas do Poder Legislativo. São sete deputados federais, dezenove deputados estaduais, 91 vereadores e um senador da República integrantes da Universal. (...)

– Os políticos são para defender a causa do Evangelho. Para fazer frente a todos os movimentos de perseguição que enfrentamos. Edir Macedo assegura: apesar das especulações, nunca pensou em candidatar-se à Presidência da República.

– Mas, se eu fosse presidente, este país seria outro. Meu primeiro ato seria proibir o gasto de um centavo sem a minha autorização. Você iria ver este país mudar. Os corruptos iriam passar fome."

O PAPA BENTO XVI

"Exclusivamente um político. Mais nada. O que ele e o restante do clero fazem o tempo todo é apenas ditar regras, impor normas, em sua maioria contrárias à Bíblia. É só checar. São regras e mais regras, uma atrás da outra. Não pode fazer sexo, não pode usar camisinha, não pode planejar a família, a mulher não pode ter o direito de abortar, o segundo casamento é uma praga, sexo é somente para procriação, a Igreja Católica é a única verdadeira igreja de Cristo, os evangélicos são uma seita e por aí vai. Como ter uma opinião diferente?"

A COMPRA DA RECORD

"A transação era ousada. Entrou para a história como o maior negócio no setor de comunicações do país até então. As cifras assustaram especialistas do mercado. Não era comum uma empresa de rádio e televisão ser vendida por aquele valor no Brasil. No total, Edir Macedo assumiu uma dívida de 45 milhões de dólares ao adquirir a Record. Da quantia acertada, 14 milhões deveriam ser depositados logo no início. O restante, 31 milhões, seria pago à família Machado de Carvalho e a Silvio Santos ao longo de dois anos."

"A expressão do bispo Macedo muda ao recordar de uma manhã em seu escritório na Rádio Copacabana, centro do Rio de Janeiro. Sobre sua mesa, após horas de reuniões, os números da dívida da Record. O bispo pediu licença, trancou-se sozinho no banheiro e rezou.

– Coloquei minha cara no chão e chorei, chorei. (...)

Mas o inacreditável aconteceu meses depois, pontualmente no dia 15 de março de 1990, com o lançamento do Plano Collor. (...) As prestações do bispo Macedo, baseadas na cotação da moeda estrangeira, despencaram. As dívidas da compra da Record, antes exorbitantes, acabaram pagas com facilidade. Edir passou a zerar duas, até três prestações em um único mês. Antes de 1992, o bispo Macedo já quitara integralmente a dívida.

– Fui salvo pelo gongo. O Plano Collor só ajudou a mim no Brasil inteiro, mais ninguém. Sorte? Coincidência? Cada um acredite no que quiser. Eu tenho certeza que foi Deus. "

"Perguntamos se enfrentaria tudo novamente pela compra da Record.

– Não. Sinceramente, acho que não. Hoje eu não iria agüentar. Ninguém imagina o que passei, nem minha mulher sabe o que vivi.

Edir larga os talheres apoiados no prato, escorrega a mão direita pela cabeça e nos mira por cima dos óculos.

A resposta ganha tom de confissão:

– Quer saber a verdade? Se eu não cresse no meu Deus, teria dado um tiro na cabeça."