terça-feira, 18 de dezembro de 2012


Achas que ele se tornou uma espécie de deus para nós?
— Para ser sincero, sim. Mas devia ter vergonha!
— E quanto a Hilde?
— Ela é um anjo, Sofia.
— Um anjo? — É a ela que se dirige este “espírito”.
— Achas que Alberto Knag fala a Hilde sobre nós?
— Ou escreve sobre nós. Nós não podemos sentir a matéria da qual a nossa realidade é feita. Pelo menos foi o que aprendemos. Não podemos saber se a nossa reali-dade exterior é constituída por ondas sonoras ou por pa-pel e letras. Segundo Berkeley, só podemos saber que so-mos feitos de espírito.
— E Hilde é um anjo...
— É um anjo, sim. E com isto, terminamos por hoje. Parabéns, Hilde! Uma luz azulada invadiu então a sala. Passados poucos segundos, ouviram um trovão a ri-bombar, e a casa foi abalada. Alberto estava com um olhar ausente.
— Tenho de ir para casa — disse Sofia. Levan-tou-se de um pulo e correu em direção à porta de entrada. Ao abrir violentamente a porta, Hermes, que dormia de-baixo dos cabides, acordou.
Quando Sofia saiu, parecia dizer:
— Adeus, Hilde!
Sofia desceu as escadas precipitadamente e correu para a rua. Aí, não se via ninguém. Entretanto chovia a cântaros.
Dois carros passaram pelo asfalto molhado, mas Sofia não conseguia encontrar um ônibus. Correu até à praça principal e continuou a correr pela cidade. Enquan-to isso, um único pensamento se revolvia na sua cabeça.
“Amanhã faço anos”, pensava ela. E não era extre-mamente duro ter de reconhecer, um dia antes de fazer quinze anos, que a vida é um sonho? Era como sonhar ter ganho um milhão e, pouco antes de o grande Prêmio ser
pago, compreender que tudo fora apenas um sonho.
Sofia correu pelo campo de jogos molhado. Nessa altura viu uma pessoa a correr na sua direção. Era a mãe. Relâmpagos potentes rasgavam o céu. A mãe abraçou So-fia.
— O que se passa conosco, minha filha?
— Não sei — Sofia chorava. — É como um pesa-delo.
Os homens tinham sem dúvida chegado cada vez mais
longe na compreensão das leis da natureza. Mas poderia a história continuar quando a filosofia e a ciência tivessem colocado as últimas peças do “quebra-cabeça” no local respectivo? Ou a história da humanidade aproximar-se-ia do fim? Não haveria uma relação entre o desenvolvimento do pensamento e da ciência por um lado, e realidades como o efeito de estufa e as florestas tropicais desarbori-zadas por outro? Talvez não fosse estúpido designar o desejo de conhecimento do homem por “pecado origi-nal”.
A questão era tão importante e tão assustadora que Hilde tentou esquecê-la. Além disso, compreenderia mais se continuasse a ler o presente de aniversário do seu pai.
— Minha querida, queres mais? — disse a mãe, depois de terem comido gelado com morangos italianos. — Agora fazemos aquilo que te apetecer.
— Eu sei que parece estranho, mas o que eu gosta-ria de fazer era continuar a ler o presente do papai.
— Não podes deixar que ele te dê volta ao juízo.
— Não, não. — Podemos descongelar uma “pizza” e ver o “Derrick” na televisão...
— Sim, pode ser.
Hilde lembrou-se de como Sofia falara com a mãe. O pai atribuíra certamente à outra mãe algo da sua. Por precaução, decidiu não dizer nada sobre o coelho branco que é retirado da cartola do universo, pelo menos não nesse dia...
— Ah, a propósito — disse, ao levantar-se.
— Sim?
— Não consigo encontrar o meu crucifixo de ouro.
A mãe olhou para ela com uma expressão enigmá-tica.
— Encontrei-o há semanas lá embaixo na doca. Deves tê-lo deixado lá, minha tonta!
— Contaste isso ao papai?
— Deixa cá ver. Sim, contei...
— E onde está agora?
— Espera. A mãe levantou-se e, pouco depois, Hilde ouviu um grito de admiração vindo do quarto. De-pois, a mãe voltou à sala de estar.
— De momento não o consigo encontrar.
— Já estava à espera disso.
Hilde deu um beijo à mãe e correu novamente para a sua mansarda. Finalmente — agora podia continuar a ler sobre Sofia e Alberto. Deitou-se na cama e apoiou o pe-sado “dossiê” sobre os joelhos.
Sofia acordou de manhã, quando a mãe entrou no quarto, trazendo nas mãos um tabuleiro cheio de presen-tes. Tinha posto uma bandeira numa garrafa de limonada vazia.
— Parabéns, Sofia!
Sofia esfregou os olhos. Tentou lembrar-se do que acontecera no dia anterior. Mas tudo se assemelhava às peças soltas de um quebra-cabeça. Uma peça era Alberto, outra Hilde e o major. Uma era Berkeley, outra Bjerkely. E a mais escura era o terrível temporal. Sofia quase ficara em estado de choque. A mãe enxugara-a e metera-a na cama depois de lhe ter levado uma caneca de leite quente com mel. Sofia adormecera imediatamente.
— Acho que estou viva — balbuciou então.
— Claro que estás viva. E hoje fazes quinze anos.
— Tens a certeza absoluta?
— Tenho a certeza absoluta, sim. Achas que uma mãe não sabe quando nasceu a única filha? Foi no dia 15
de Junho de 1975, às... à uma e meia. Foi sem dúvida o momento mais feliz da minha vida.
— Tens a certeza de que tudo isto não é apenas um sonho?
— Seja como for, tem que ser um bom sonho, se acordas com pão de passas, limonada e presentes de ani-versário.
Ela pousou o tabuleiro com os presentes numa ca-deira e saiu do quarto por pouco tempo. Quando voltou, trazia mais um tabuleiro com pão de passas e limonada. Pousou-o aos pés da cama de Sofia.
Seguiu-se uma manhã normal de aniversário a abrir os presentes, enquanto a mãe lhe falava das dores de parto há quinze anos. Da mãe, Sofia recebeu uma raquete de tênis.
Nunca tinha jogado tênis, mas havia um campo a dois minutos de Klöverveien. O pai enviara-lhe um mini-televisor e um rádio de ondas curtas. A tela não era maior do que uma fotografia normal. Havia ainda presentes de velhas tias e amigos da família.
Por fim, a mãe disse:
— Achas que hoje devo tirar folga?
— Não, por quê?
— Ontem estavas bastante transtornada. Se isto continua assim, acho que devemos marcar uma consulta para um psicólogo.
— Deixa estar.
— Foi apenas o temporal — ou esse Alberto tam-bém tem algo a ver com isto?
— E o que é que se passa contigo? Tu perguntaste passa conosco, minha filha?”.
— Eu estava a pensar no fato de andares pela cida-
de para te encontrares com gente estranha. Talvez seja culpa minha...
— Não é “culpa” de ninguém eu fazer um curso de filosofia no meu tempo livre. Vai para o escritório. Tenho de estar na escola às dez. Hoje entregam as notas, e depois ficamos livres.
— Já sabes que notas vais ter?
— Em todo o caso, mais cincos do que no último semestre.
Pouco depois de a mãe se ter ido embora, o telefo-ne tocou:
— Sofia Amundsen.
— Daqui fala Alberto.
— Oh...
— Ontem o major não poupou nas munições.
— Não percebo o que queres dizer.
— A trovoada, Sofia.
— Não sei em que é que devo acreditar.
— Essa é a primeira virtude de uma verdadeira fi-lósofa. Estou orgulhoso por teres aprendido tanto em tão pouco tempo.
— Tenho medo que nada disto seja real.
— Isso se chama angústia existencial, e em geral é apenas uma fase no caminho para uma nova tomada de consciência.
— Acho que preciso de uma pausa no curso.
— Há muitas rãs no teu jardim nesta altura?
Sofia sorriu. Alberto prosseguiu:
— Eu acho que devemos continuar. A propósito, parabéns! Temos de terminar o curso até à noite de S. Jo-ão. É a nossa última esperança.
— A nossa última esperança de quê?
— Estás bem sentada? Isto vai levar o seu tempo, percebes? Ainda te lembras de Descartes? — “Penso, logo existo”.
— No que diz respeito à nossa dúvida metódica, estamos de mãos vazias. Nem sequer sabemos se pensa-mos. Talvez se venha a verificar que nós “somos” pensa-mentos, e isso é completamente diferente de nós mesmos pensarmos. Pelo menos temos todo o motivo para supor que o pai de Hilde nos criou, que representamos uma es-pécie de entretenimento de aniversário para a Filha do major em Lillesand. Estás a acompanhar-me?
— Sim...
— Mas também há uma contradição nisso. Se so-mos inventados, não temos o direito de supor o que quer que seja. Nesse caso, toda esta conversa ao telefone é pura ilusão.
— E nós não temos nem um bocadinho de livre ar-bítrio. Nesse caso, o major planeia tudo o que dizemos ou fazemos. Assim, podíamos até desligar.
— Não, estás a simplificar demasiado.
— Explica-te!
— Queres afirmar que as pessoas planeiam tudo o que sonham? Pode ser verdade que o pai de Hilde “saiba” exatamente tudo o que fazemos.
Fugir à sua onisciência é tão difícil como fugirmos da nossa própria sombra. Mas — e eu comecei a elaborar um plano — não é claro que o major tenha decidido pre-viamente tudo o que vai acontecer.
Talvez ele o decida só no último momento — no instante da criação, portanto. Precisamente nessa altura, pode-se pensar que temos uma iniciativa própria que de-termina o que dizemos e fazemos. Essa iniciativa é muito
fraca em comparação com o enorme poder que o major exerce. Talvez estejamos indefesos em relação a coisas exteriores importunas como cães que falam, aviões a héli-ce, mensagens em bananas e trovoadas por encomenda. Mas não devemos excluir termos a nossa própria vontade, embora fraca.
— Mas como é que isso seria possível?
— O major sabe tudo do nosso pequeno mundo, mas isso não quer dizer que também seja onipotente. Pelo menos, temos de tentar viver como se ele não o fosse.
— Acho que percebo onde queres chegar.
— O truque seria conseguirmos fazer alguma coisa sozinhos, em segredo, uma coisa que o major não conse-guisse descobrir.
— Mas como é que isso é possível, se não existi-mos?
— Quem diz que não existimos? A questão não é se existimos, mas “o que” nós somos e “quem” somos. Mesmo que se verificasse que somos apenas impulsos na mente dividida do major, isso não significa que não te-nhamos nenhuma consciência.
— E também não nos retira o nosso livre arbítrio?
— Estou a trabalhar no caso, Sofia.
— Mas o pai de Hilde deve ter plena consciência de que tu “estás a trabalhar no caso”.
— Sem dúvida. Mas ele não conhece o meu plano. Estou a tentar encontrar um ponto de Arquimedes.
— Um ponto de Arquimedes?
— “Arquimedes” era um cientista do período hele-nístico. Ele afirmou — “Dêem-me um ponto fixo e eu moverei a terra”. Temos de encontrar um ponto como esse para sermos lançados para fora do universo interior
do major.
— Não será fácil.
— Tens razão. E só podemos escapar-nos quando tivermos terminado o curso defilosofia. Até lá, ele contro-la-nos. É obvio que decidiu que eu te devo orientar atra-vés dos séculos até à nossa época. Mas só faltam poucos dias, depois ele senta-se num avião algures no Médio O-riente. Se não nos tivermos libertado da sua pegajosa fan-tasia antes de ele chegar a Bjerkely estamos perdidos.
— Estás a assustar-me...
— Em primeiro lugar, tenho de te contar o indis-pensável acerca do Iluminismo francês.
Depois, temos de tratar a filosofia de “Kant” em traços gerais, antes de podermos falar do Romantismo. E, para nós, “Hegel” é uma ajuda importante. Ao tratarmos dele, não podemos ignorar a crítica indignada de “Kierke-gaard” à filosofia hegeliana. Temos de falar um pouco so-bre “Marx, Darwin e Freud”. Se conseguirmos ainda al-gumas observações finais sobre “Sartre” e o Existencia-lismo, podemos pôr o nosso plano em prática.
— É muita coisa para uma semana.
— Por isso temos de começar imediatamente. Po-des vir até cá agora?
— Tenho de ir à escola.Temos uma pequena festa de turma, e depois recebemos os diplomas.
— Esquece a festa! Se somos mera imaginação, en-tão é pura ilusão que limonada e doces saibam bem.
— Mas o diploma...
— Sofia, ou vives num universo extraordinário de um pequeno planeta numa de centenas de milhões de ga-láxias — ou és apenas um punhado de impulsos eletro-magnéticos na consciência de um major. E perante esta
situação falas-me de um diploma! Devias ter vergonha!
— Desculpa.
— Mas podes passar pela escola antes de vires ter comigo. Poderia exercer uma má influência em Hilde tu faltares ao último dia de aulas. Ela vai certamente à escola mesmo no dia de anos, porque é um anjo.
— Então eu vou logo a seguir à escola.
— Podemos encontrar-nos na cabana do major.
— Na cabana do major?
— ...clic!
Hilde deixou o “dossiê” cair nos joelhos. O pai ti-nha feito com que ela se sentisse de fato um pouco arre-pendida por ter faltado ao último dia de aulas. Que maro-to!
Ficou algum tempo sentada, tentando imaginar que plano Alberto iria tramar. Deveria ver a última página do “dossiê”? Não, isso era batota; devia antes despachar-se a ler.
Ela estava convencida de que Alberto tinha razão num ponto fundamental. Uma coisa era o seu pai ter uma idéia geral do que sucedia a Sofia e a Alberto, mas, en-quanto escrevia, não sabia certamente tudo o que ia suce-der. Talvez escrevesse a grande velocidade alguma coisa por descuido, que só descobrisse muito mais tarde. E era justamente neste “descuido” que Sofia e Alberto tinham uma certa liberdade. Mais uma vez, Hilde tinha quase a nítida sensação de que Sofia e Alberto existiam realmente. Mesmo quando o mar está calmo, isso não significa que nas profundezas não suceda alguma coisa, pensou.
Mas porque é que pensava assim? Em todo o caso, não era um pensamento claro. Na escola, Sofia recebeu felicitações e foram-lhe cantados os parabéns, como é ha-
bitual quando se trata de uma aniversariante. Talvez rece-besse muita atenção porque, diante dos diplomas e da li-monada, todos estavam agitados.
Depois de o professor se ter despedido dela com votos de um bom Verão, Sofia correu para casa. Jorunn procurou retê-la, mas Sofia gritou-lhe que tinha de tratar de uma coisa sem falta.
Na caixa do correio encontrou dois postais do Lí-bano. Em ambos estava escrito: “Happy Birthday — 15 Years”. Eram postais de aniversário comprados. Um dos postais vinha dirigido a “Hilde Möller Knag, a/c Sofia Amundsen.... O outro, pelo contrário, era mesmo para Sofia. Ambos os postais tinham o carimbo: “Contingente da Onu, 15 de Junho”. Sofia leu primeiro o seu próprio postal:
“Cara Sofia Amundsen! Hoje também quero felici-tar-te pelo teu aniversário. Muitos parabéns, Sofia! Muito obrigado por tudo o que fizeste até agora por Hilde. Cumprimentos, Albert Knag, major”.
Sofia não sabia bem como havia de reagir ao fato de o pai de Hilde lhe ter finalmente enviado um postal. De certo modo, achou isso comovente. No postal de Hilde estava escrito:
“Querida Hilde! Não sei nem que dia é nem que horas são agora em Lillesand. Mas, como disse, isso não é muito importante. Se bem te conheço, não estou muito atrasado para uma última ou pelo menos penúltima felici-tação. Mas também não podes levantar-te muito tarde! O Alberto vai falar-te dentro em pouco do pensamento do Iluminismo francês, concentrando-se em sete pontos. Es-ses pontos são:
Revolta contra as autoridades
Racionalismo
Pensamento do iluminismo
Otimismo cultural
Regresso à natureza
Cristianismo humanista
Direitos humanos” Os iluministas queriam libertar o cristianismo dos dogmas irracionais que, no decorrer da história da Igreja, tinham sido enxer-tados na mensagem simples de Jesus.
— Então entendo-os.
— Muitos professavam o chamado “deísmo”.
— Explica-te!
— Por “deísmo” entendemos uma concepção se-gundo a qual Deus criou o mundo há muito tempo, mas não se revela ao mundo desde então. Deste modo, Deus é o Ser supremo que se dá a conhecer aos homens apenas por meio da natureza e das suas leis — mas que não se revela de modo sobrenatural. Este “Deus filosófico” já nos aparecia em Aristóteles. Para ele, Deus era a primeira causa ou o primeiro motor do universo.
— Agora, já só nos resta um ponto, os “direitos humanos”.
— Mas, em compensação, esse é talvez o mais im-portante. Podes dizer de um modo geral que a filosofia iluminista francesa tinha uma orientação mais prática do que a inglesa. — Tiraram as conseqüências da sua filosofia e agiram de forma coerente com ela?
— Sim, os filósofos franceses do Iluminismo não se contentaram com concepções teóricas sobre o lugar do homem na sociedade. Lutavam ativamente por aquilo a que chamavam os “direitos naturais” dos cidadãos. Trata-va-se principalmente da luta contra a censura — ou seja, pela liberdade de imprensa. Em relação à religião, moral e política tinha de se assegurar ao indivíduo o direito de pensar livremente e de exprimir livremente as suas idéias. Além disso, lutou-se contra a escravatura, e por um trata-mento mais humano dos criminosos.
— Acho que estou de acordo com quase tudo.
— O princípio da “inviolabilidade do indivíduo” culminou finalmente na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, que foi adotada em 1789 pela Assembléia Nacional Francesa. Esta Declaração dos Di-reitos Humanos foi uma base importante para a nossa
Constituição Norueguesa de 1814.
— Mas ainda há muitos homens que têm de lutar por esses direitos.
— Sim, infelizmente. Mas os filósofos iluministas queriam estabelecer determinadas leis a que todos os ho-mens tinham direito simplesmente por serem homens. Era o que entendiam por direitos “naturais”. Falamos a-inda hoje de “direito natural”, que pode estar em contra-dição com as leis oficiais de qualquer país. Ainda vemos indivíduos — ou populações inteiras — que reivindicam a escravatura e a opressão para estes “direitos naturais”, quando se defendem contra a anarquia.
— E o que é que se passava com os direitos das mulheres?
— A Revolução de 1789 estabeleceu uma série de direitos que deviam valer para todos os cidadãos. Mas, no fundo, só os homens eram considerados cidadãos. Porém, justamente durante a Revolução Francesa, vemos os pri-meiros exemplos de um movimento feminista.
— E não era sem tempo.
— Já em 1787, o filósofo iluminista Condorcet pu-blicou um tratado sobre os direitos da mulher. Nele con-cedia às mulheres os mesmo direitos naturais que aos ho-mens. Durante a Revolução de 1789, as mulheres partici-param ativamente na luta contra a aristocracia. Por exem-plo, foram as mulheres que dirigiram as manifestações que obrigaram o rei a abandonar o seu palácio em Versalhes. Em Paris, formaram-se diversos grupos de mulheres. A-lém dos mesmos direitos políticos que os homens, as mu-lheres exigiam também novas leis do matrimônio e outras condições de vida.
— Obtiveram esses direitos?
— Não. Como veio a suceder tantas vezes mais tarde, a questão dos direitos das mulheres foi levantada com uma revolução. Mas logo que tudo voltou a acalmar com um novo regime, o velho domínio dos homens foi restabelecido.
— É típico.
— Uma das mulheres que mais lutou pelos direitos das mulheres durante a Revolução Francesa foi Olympe de Gouges. Em 1791 — ou seja, dois anos após a Revo-lução — publicou uma declaração dos direitos das mulhe-res. A declaração dos direitos dos cidadãos não dedicara propriamente muitos parágrafos aos direitos naturais das mulheres. Olympe de Gouges exigia para as mulheres e-xatamente os mesmo direitos que para os homens.
— E qual foi o resultado?
— Foi decapitada. As mulheres foram proibidas de ter qualquer atividade política.
— Que horror!
— Só no século XIX é que o feminismo começou verdadeiramente — na França e por toda a Europa. E, muito lentamente, essa luta começou também a produzir frutos. Mas na Noruega, por exemplo, as mulheres só ob-tiveram o direito de voto em 1913. E em muitos países, as mulheres lutam ainda pela igualdade de direitos.
— Podem contar com o meu apoio.
Alberto olhou para o pequeno lago. Passado um pouco, disse:
— Acho que era tudo o que eu tinha a dizer sobre a filosofia do Iluminismo.
— O que queres dizer com “acho”?
— Não me parece que haja mais alguma coisa.
Enquanto ele dizia isto, algo sucedeu subitamente
no meio do lago. A água borbulhava vinda do fundo. E, em seguida, uma criatura enorme e monstruosa ergueu-se acima da superfície da água.
— Uma serpente marinha! — exclamou Sofia.
O escuro monstro contorceu-se várias vezes para frente e para trás, depois mergulhou de novo. E o lago ficou tão calmo como anterior-mente. Alberto desviara a vista.
— Vamos entrar — disse.
Levantaram-se e entraram na cabana. Sofia parou em frente às imagens de Berkeley e Bjerkely. Apontou pa-ra o quadro de Bjerkely e afirmou:
— Acho que Hilde mora algures nesta imagem. Entre as imagens estava agora pendurado um bordado onde se lia: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Sofia voltou-se para Alberto.
— Foste tu que penduraste isto aqui?
Ele abanou a cabeça com uma expressão triste.
Sofia encontrou então um envelope no console da lareira. “Para Hilde e Sofia”, estava escrito. Sofia compre-endeu imediatamente quem era o remetente. Abriu o en-velope e leu alto:
“Minhas queridas Hilde e Sofia! O professor de fi-losofia da Sofia devia ter ainda sublinhado como a filoso-fia francesa do Iluminismo foi importante para os ideais e princípios sobre os quais assenta a ONU. Há duzentos anos, o slogan “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” aju-dou a unir a nação francesa. Hoje, estas palavras têm de unir todo o mundo. A humanidade é hoje uma grande família como nunca foi antes. Os nossos descendentes são os nossos filhos e netos. Que tipo de mundo herdam de nós?”
A mãe de Hilde chamou-a, porque “Derrick” co-meçava dentro de dez minutos e ela pusera a “pizza” no forno. Hilde sentia-se esgotada por ter lido tanto. Já estava a pé desde as seis horas. Decidiu passar o resto da tarde a festejar o aniversário com a mãe. Mas, antes de tudo, tinha de consultar a enciclopédia. Gouges... não. De Gouges? Também não. Talvez Olympe de Gouges? Não havia na-da! A enciclopédia não escrevera uma única palavra sobre a mulher que fora decapitada devido à atividade política a favor das mulheres. Não era escandaloso? Seria apenas uma invenção do pai de Hilde? Hilde correu para o piso térreo para consultar a enciclopédia maior.
— Tenho de ver uma coisa rapidamente — expli-cou à mãe, que a olhava estupefata. Retirou o volume de Forv a Gp e correu de novo para o quarto com ele. Gou-ges... lá estava!
“Gouges”, Marie Olympe (1748-93), escritora fran-cesa, teve um papel importante durante a Revolução fran-cesa, através de numerosos opúsculos sobre questões so-ciais e uma série de peças de teatro. Defendeu a opinião de que os direitos humanos também deviam ser válidos para as mulheres e publicou em 1791 “A Declaração dos Direitos das Mulheres”. Decapitada em 1793 por ter ou-sado defender Luís XVI e criticado Robespierre. (Lit: L. Lacour: “Les Origines du féminisme contemporaiImmanuel Kant nasceu em 1724 em Königsberg, uma cidade da Prússia Oriental, e era filho de um seleiro. Passou aí quase toda a sua vida até morrer com a idade de oitenta anos. Vinha de uma família extremamente cristã.
A sua fé cristã foi uma base importante para a sua filosofia. Tal como Berkeley, também ele queria salvar as bases da fé cristã.
— Eu sei o bastante sobre Berkeley, obrigada.
— Kant foi também o primeiro dos filósofos que tratamos que lecionava filosofia numa universidade. Era professor de filosofia.
— Professor?
— A palavra “filósofo” é usada hoje em dois senti-dos diferentes. Por filósofo, entendemos primeiro que tudo uma pessoa que procura encontrar as suas próprias respostas para as questões filosóficas.
Mas um filósofo pode também ser um conhecedor
da história da filosofia, sem desenvolver necessariamente uma filosofia própria.
— E Kant era um conhecedor?
— Era ambas as coisas. Se ele tivesse sido apenas um professor brilhante — ou seja, um conhecedor das idéias dos outros — nunca teria tido um lugar tão impor-tante na história da filosofia. Mas também é importante o fato de Kant ter conhecido realmente a tradição filosófica como nenhum outro. Ele estava tão familiarizado com racionalistas como Descartes e Espinosa como com empi-ristas como Locke, Berkeley e Hume.
— Já te disse que parasses de falar de Berkeley.
— Sabemos que os racionalistas consideravam que o fundamento de todo o conhecimento humano residia na razão. E sabemos ainda que os empiristas achavam que todo o conhecimento sobre o mundo provinha da expe-riência sensível. Hume tinha apontado para o fato de exis-tirem claros limites no que diz respeito às conclusões a que podemos chegar com a ajuda das nossas impressões sensíveis.
— E com quem é que Kant estava de acordo?
— Ele achava que todos tinham de certa forma ra-zão, mas também que todos estavam parcialmente erra-dos. A questão que os preocupava era aquilo que pode-mos saber sobre o mundo. Esse foi o projeto filosófico comum a todos os filósofos depois de Descartes.
Estavam em debate duas possibilidades: o mundo é exatamente como o percebemos — ou como a nossa ra-zão o representa?
— E o que achava Kant?
— Kant achava que tanto as sensações como a ra-zão tinham um papel importante no nosso conhecimento
do mundo. Ele defendia que os racionalistas davam dema-siada importância à razão e que os empiristas defendiam de forma parcial a experiência sensível.
— Se não me deres imediatamente um bom exem-plo, fica tudo no ar.
— Kant está de acordo com Hume e com os empi-ristas ao defender que devemos todos os nossos conheci-mentos às sensações. Mas — e nisto concorda com os racionalistas — na nossa razão também há condições im-portantes para o modo como compreendemos o mundo à nossa volta. Por conseguinte, há certas condições em nós mesmos que contribuem para a nossa concepção do mundo.
— E isso é que é um exemplo?
— Vamos antes fazer uma pequena experiência. Podes trazer os óculos daquela mesa?
Isso. Agora, põe-os.
Sofia pôs os óculos. Tudo o que estava à sua volta se tornou vermelho. As cores claras ficaram vermelho claro, as escuras vermelho escuro.
— O que é que vês?
— Vejo exatamente o mesmo que antes, mas agora é tudo vermelho.
— Isso se deve ao fato de as lentes determinarem o modo como vês a realidade. Tudo o que vês é uma parte de um mundo exterior a ti mesma; mas o modo como a vês está relacionado com as lentes. Não podes dizer que o mundo é vermelho, mesmo que te pareça vermelho.
— Não, claro que não...
— Se tu andasses agora pelo bosque — ou se esti-vesses em casa na Curva do Capitão —, verias tudo aquilo que sempre viste. Mas tudo o que visses seria vermelho.
— Desde que eu não tirasse os óculos, sim.
— Os óculos são a condição do modo como vês o mundo. E do mesmo modo, segundo Kant, também exis-tem condições na nossa razão que influenciam todas as nossas experiências.
— De que condições é que estamos a falar?
— Tudo o que vemos, é visto primeiro como fe-nômeno no tempo e no espaço. Segundo Kant, o tempo e o espaço eram as duas “formas da intuição” do homem. E ele sublinha que estas duas formas na nossa consciência são anteriores a qualquer experiência. Isso significa que podemos saber, antes de percebermos alguma coisa, que a vamos ver como fenômeno no tempo e no espaço.
Não conseguimos, por assim dizer, tirar os óculos da razão.
— Então ele considerava que compreender as coi-sas no tempo e no espaço era uma propriedade inata em nós.
— De certo modo, sim. O que vemos depende a-inda de termos crescido na Índia ou na Groelândia. Mas em toda a parte a nossa experiência do mundo é de uma coisa no tempo e no espaço, e sabemo-lo antecipadamen-te.
— Mas o tempo e o espaço não existem fora de nós?
— Não. Kant explica que o tempo e o espaço per-tencem à própria condição humana. Tempo e espaço são principalmente propriedades da nossa consciência e não propriedades do mundo.
— Isso é um modo de ver completamente diferen-te.
— A consciência do homem não é, portanto, uma
“cera” passiva que apenas registra as sensações exteriores. É uma instância que se exerce criativamente. A própria consciência contribui para determinar a nossa concepção do mundo. Podes comparar com o que se passa quando deitas água num jarro de vidro. A água toma a forma do jarro.
Do mesmo modo, as nossas sensações ajustam-se às nossas “formas da intuição”.
— Acho que percebo o que queres dizer.
— Kant afirma que não é apenas a consciência que se adapta às coisas. As coisas também se adaptam à cons-ciência. O próprio Kant chamava a isto a “revolução co-pernicana” na questão do conhecimento humano. Com isso, queria dizer que esta idéia é tão nova e diferente em relação à tradição como a afirmação de Copérnico de que a terra gira à volta do sol e não o inverso.
— Agora entendo o que ele queria dizer ao afirmar que tanto os racionalistas como os empiristas tinham uma parte da razão. Os racionalistas tinham esquecido a im-portância da experiência, e os empiristas não queriam ad-mitir que a nossa razão influencia a nossa concepção do mundo.
— Também a lei da causalidade — que, segundo Hume, os homens não podiam perceber — é para Kant um elemento da razão humana.
— Explica-me isso!
— Ainda te lembras que Hume afirmou que apenas vemos um nexo causal necessário por detrás de todos os fenômenos da natureza devido ao hábito.
Hume achava que não podemos ver que a bola de bilhar preta é causa do movimento da bola branca. Por isso, também não podemos provar que a bola preta pro-
voque sempre o movimento da bola branca.
— Ainda me lembro disso.
— Mas justamente aquilo que segundo Hume não podemos provar é visto por Kant como uma propriedade da razão humana. A lei da causalidade é sempre e absolu-tamente válida pelo fato de a razão humana ver tudo o que acontece como relação entre causa e efeito.
— De novo, eu diria que a lei da causalidade está na natureza e não no homem.
— Kant diz que está em nós. Ele está de acordo com Hume em não podermos saber com segurança o que o mundo é “em si”. Apenas podemos saber como o mundo é “para mim” — logo, para todos os homens. A distinção que Kant faz entre as “coisas em si” e as “coisas para nós” é a sua contribuição mais importante para a fi-losofia. Nunca podemos saber com segurança como as coisas são “em si”. Em compensação, podemos, sem qualquer experiência, dizer como as coisas são compreen-didas pela razão humana.
— E é mesmo assim?
— Antes de saíres de casa de manhã, não podes sa-ber o que vais ver nesse dia. Mas podes saber que apreen-derás como fenômenos no tempo e no espaço tudo aquilo que vires.
Além disso, podes ter a certeza de que a lei da cau-salidade é válida porque faz parte da tua consciência.
— Mas também podíamos ter outra estrutura?
— Sim, podíamos ter uma outra estrutura sensível. E, nesse caso, podíamos ter também uma outra percepção do tempo e do espaço, ou ser constituídos de tal modo que não procurássemos as causas dos fenômenos.
— Podes dar um exemplo?
— Imagina um gato que está deitado no chão da sala. Imagina que uma bola rola para dentro do quarto. O que faz o gato nessa altura?
— Eu já experimentei isso várias vezes. O gato vai a correr atrás da bola.
— Sim. E agora imagina que tu estás na sala em vez do gato. Se vês de repente uma bola que vem a rolar, também corres imediatamente atrás dela?
— Em primeiro lugar, volto-me para ver de onde vem a bola.
— Sim, por seres um ser humano, procurarás for-çosamente a causa de cada acontecimento. A lei da causa-lidade faz parte do que te constitui.
— E é de fato assim?
— Hume diria que não podemos sentir nem provar as leis da natureza, mas Kant não se conformava com isso. Acreditava poder provar a validade absoluta das leis da natureza ao mostrar que na realidade estamos a falar de leis do conhecimento humano.
— Uma criança pequena também voltaria a cabeça para saber quem tinha tocado na bola?
— Talvez não. Mas Kant afirma que a razão não está completamente desenvolvida numa criança porque ainda não pôde trabalhar com material sensível. Por um lado, temos as condições exteriores, das quais nada po-demos saber antes de as termos percebido.
Podemos dizer que são a matéria do conhecimento. Por outro lado, temos as condições interiores no próprio homem — por exemplo, vermos tudo como fenômenos no tempo e no espaço e também como processos que se-guem uma lei causal imutável. Podemos dizer que isso é a forma do conhecimento.
n”, 1900).
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CAPÍTULO XXXV: O BIG BANG
...nós também somos poeira de estrelas...
Hilde sentou-se confortavelmente no balanço, junto ao pai. Era quase meia-noite. Olharam para a enseada; no céu, delineavam-se as primeiras estrelas pálidas. Ondas suaves embatiam contra as pedras, sob a doca. O pai que-brou finalmente o silêncio:
— É uma idéia estranha, a de vivermos num pe-queno planeta, algures no universo.
— Sim...
— A Terra é um dos muitos planetas que giram à volta do Sol. Mas o nosso planeta é o único que tem vida. — E será o único com vida em todo o universo?
— Sim; é possível. Mas também é lícito pensarmos que o universo fervilha de vida, porque o cosmos é ex-tremamente grande. As distâncias são tão grandes que as medimos em minutos-luz e em anos-luz.
— O que é que isso significa?
— Um minuto-luz é a distância que a luz percorre num minuto. E é uma grande distância, porque a luz con-segue percorrer 300,000 quilômetros no espaço, em ape-nas um segundo. Um minuto-luz corres-ponde, por outras palavras, a 300,000 vezes 60, ou a 18 milhões de quilôme-tros. Um ano luz corresponde a quase 9,5 mil milhões de quilômetros.
— A que distância está o Sol?
— A pouco mais de oito minutos-luz. Os raios so-lares, que nos aquecem o rosto num dia quente de Junho, viajaram, portanto, oito minutos no espaço antes de che-
garem a nós.
— Continua!
— Plutão, o planeta mais afastado no nosso sistema solar (atualmente não é mais considerado um planeta 2006) — está afastado de nós um pouco mais do que cin-co horas-luz. Quando um astrônomo observa Plutão com um telescópio, vê na realidade o planeta como era há cin-co horas atrás. Podemos também dizer que a imagem de Plutão leva cinco horas para chegar até nós.
— É difícil imaginar, mas acho que compreendi o que queres dizer.
— Bom, Hilde, mas só agora começamos a orien-tar-nos. O nosso sol é uma entre quatrocentos mil mi-lhões de outras estrelas, numa galáxia a que chamamos Via Láctea.
Esta galáxia assemelha-se a um grande disco com muitos braços em espiral, e o nosso sol está situado num desses braços. Se observarmos o céu numa noite clara de Inverno, podemos ver uma larga faixa luminosa, porque olhamos para o centro da Via Láctea.
— É por isso que, em sueco, Via Láctea se diz “via do inverno”.
— A distância em relação à primeira estrela mais próxima de nós na Via Láctea perfaz quatro anos-luz. Talvez seja aquela estrela que vemos lá em cima, sobre aquela ilhota. Se imaginares que neste preciso momento um astrônomo está a observar Bjerkely lá de cima com um telescópio potentíssimo, veria Jerkely como era há quatro anos. Talvez visse uma moça de onze anos, aqui sentada, e a balançar os pés.
— Não tenho palavras.
— Mas isso é apenas a estrela que está mais próxi-
ma de nós. Toda a galáxia, ou “nebulosa”, como também se chama, tem a extensão de 90,000 anos-luz. Significa que a luz de uma extremidade da galáxia até à outra extremi-dade, leva todos esses anos a percorrê-la. Quando obser-vamos uma estrela na Via Láctea, que está afastada do nosso sol 50,000 anos luz, vemos como era há 50,000 a-nos.
— Esse pensamento é demasiado grande para uma cabeça tão pequena como a minha.
— Quando observamos o espaço, observamos o passado. Não temos outra escolha. Nunca sabemos como o universo “é” agora. Quando observamos uma estrela, que dista milhares de anos-luz, estamos a regressar a mi-lhares de anos atrás na história do espaço.
— É inacreditável.
— Mas tudo o que vemos, atinge o nosso olho sob a forma de ondas luminosas, ondas que precisam de tem-po para a sua viagem pelo espaço. Podemos fazer uma comparação com o trovão. Ouvimos sempre o trovão al-gum tempo após termos visto o relâmpago. Deve-se ao fato de as ondas sonoras se moverem mais lentamente do que as ondas luminosas. Quando ouço um trovão, ouço o estrondo de uma coisa que se deu há algum tempo. O mesmo se passa com as estrelas. Quando vejo uma estrela que está a milhares de anos-luz de distância, estou a ver o “trovão” de um acontecimento que se deu há milhares de anos no passado.
— Compreendo.
— Mas até agora falamos apenas da nossa galáxia. Segundo os astrônomos, existem cerca de cem mil mi-lhões no universo, e cada uma destas galáxias é formada por cem mil milhões de estrelas. A galáxia mais próxima
da Via Láctea é a nebulosa de Andrômeda: está a dois mi-lhões de anos-luz da nossa. Como vimos, isso significa que a luz dessa galáxia leva dois mil milhões de anos a chegar até nós, e que, quando observamos no céu a nebu-losa de Andrômeda, vemos como era na realidade há dois milhões de anos.
Se um astrônomo estivesse nesta nebulosa — estou a imaginar um pobre diabo, que dirige o seu telescópio para a Terra —, não nos consegue ver. Na melhor das hipóteses, descobre alguns homens primitivos com cére-bro minúsculo.
— Estou espantada.
— As galáxias mais afastadas, de que temos conhe-cimento, encontram-se a cerca de dez mil milhões de a-nos-luz de nós. Quando recebemos sinais destas galáxias, recuamos, portanto, “dez mil milhões” de anos na história do universo.
Trata-se do dobro do tempo da existência do nosso sistema solar.
— Estou a ficar tonta.
— Pode ser difícil compreender o que significa ver tão longe no passado. Mas os astrônomos descobriram uma coisa ainda mais importante para a nossa concepção do mundo.
— Diz-me!
— Nenhuma galáxia está imóvel no espaço, mas todas se movem a uma velocidade enorme, afastando-se umas das outras. Quanto mais longe estão de nós, mais velozmente parecem mover-se. Isso significa que a distân-cia entre as galáxias se torna cada vez maior.
— Estou a tentar imaginar isso.
— Se tens um balão e desenhas nele alguns pontos
pretos, estes afastar-se-ão cada vez mais entre si, confor-me vais soprando. O mesmo fenômeno sucede com as galáxias do universo. Dizemos que o universo se expande.
— Qual é o motivo?
— A maior parte dos astrônomos concorda em que a expansão do universo só pode ter uma explicação: há cerca de dezoito mil milhões de anos, toda a matéria que constitui o universo estava concentrada num espaço mui-to pequeno. A matéria era tão densa que a força da gravi-dade a tornou extremamente quente. Por fim, a tempera-tura atingiu níveis tão elevados e a matéria era tão densa e compacta que explodiu. Esta explosão é chamada o “big bang”.
— Fico arrepiada só de pensar nisso.
— O “bigbang” fez com que toda a matéria no u-niverso fosse lançada em todas as direções; à medida que arrefeceu, formaram-se as estrelas, as galáxias, as luas e os planetas...
— Mas estavas a dizer que o universo “continua” em expansão?
— E isso deve-se justamente à explosão que se deu há milhões de anos. O universo não tem uma geografia intemporal. O universo é um acontecimento, uma explo-são. As galáxias continuam a mover-se no espaço a velo-cidades enormes.
— E vai ser sempre assim?
— Há essa possibilidade, mas existe também uma outra: lembras-te que Alberto falou a Sofia sobre as duas forças que permitem aos planetas manterem constante-mente as suas órbitas à volta do Sol?
— Sim, não eram a força da gravidade e a da inér-cia?
— A relação que existe entre as galáxias é análoga, porque apesar de o universo continuar a expandir-se, a gravitação atua numa direção contrária. E um dia — daqui a alguns mil milhões de anos — talvez a gravitação faça com que os corpos celestes se contraiam novamente à medida que as forças provocadas por esta enorme explo-são comecem a diminuir. Teremos então uma explosão ao contrário, ou seja, uma “implosão”. As distâncias são tão grandes que isto acontecerá lentamente.
Podes compará-lo com o que sucede se deixares sair o ar de um balão.
— Isso significa que todas a galáxias serão compri-midas até formarem novamente um centro compacto?
— Vejo que compreendeste. Mas o que sucederá em seguida?
— Haverá provavelmente uma outra explosão que provocará uma nova expansão do universo, porque as mesmas leis naturais continuam a agir. Desse modo, for-mar-se-ão novas estrelas e novas galáxias.
— Um raciocínio correto.
No que diz respeito ao futuro do universo, os as-trônomos previram duas possibilidades: ou o universo continua a expandir-se eternamente e as galáxias afas-tar-se-ão entre si cada vez mais, ou o universo começará a contrair-se. O fator decisivo para o que pode acontecer é a massa total do universo; mas, até agora, os astrônomos não tiraram conclusões definitivas.
— Mas “se” o universo tiver tanta massa que se volte a contrair, isso não quer dizer que esses fenômenos de expansão e contração já aconteceram mais vezes?
— É uma conclusão aceitável, mas também há a possibilidade de o universo se expandir apenas uma vez.
Mas se continuar eternamente em expansão, há uma questão mais importante: de que modo terá tudo come-çado?
— Como é que surgiu aquilo que explodiu de re-pente?
— Para um cristão, é natural considerar o “big bang” como o momento da Criação: na Bíblia está escrito que Deus disse: “Faça-se luz!”. Talvez te lembres que Al-berto explicou que o cristianismo tem uma visão “linear” da história. A idéia de que o universo continuará em ex-pansão adequa-se mais à fé cristã.
— Ah!
— No Oriente, tem-se uma visão “cíclica” da histó-ria, ou seja, a história repete-se eternamente. Na Índia, por exemplo, encontramos uma antiga doutrina, segundo a qual o mundo continua a expandir-se e a contrair-se. Des-te modo, há uma alternância entre aquilo a que os hindus chamam o “dia de Brahma” e a “noite de Brahma”. Este pensamento adequa-se mais à hipótese da expansão e contração do universo, segundo um processo cíclico e-terno. Consigo ver à minha frente um grande coração cósmico que bate constantemente...
— Para mim, ambas as teorias são incríveis e fasci-nantes.
— E podem ser comparadas aos pensamentos con-traditórios sobre a eternidade que Sofia formulou no jar-dim: ou o universo existiu sempre ou foi criado do nada, de repente...
— Au! — Hilde bateu na cabeça.
— O que é?
— Acho que fui mordida por um pernilongo.
— Deve ter sido Sócrates, que tenta arrancar-te à
inércia...
Sofia e Alberto estavam sentados no carro e ouviam o que o major dizia a Hilde sobre o universo.
— Já pensaste que os papéis se inverteram com-plemente? — perguntou Alberto pouco depois.
— O que queres dizer?
— Antigamente, eram eles que nos ouviam, e nós podíamos vê-los. Agora, somos nós que os ouvimos, e eles não nos podem ver.
— Não é só isso.
— O que queres dizer?
— No início, não sabíamos que havia outra reali-dade, onde Hilde e o major viviam.
E agora, eles não sabem nada sobre a nossa reali-dade. — A vingança é suave.
— Mas o major podia intervir no nosso mundo...
— O nosso mundo era apenas fruto da sua inter-venção.
— Não quero perder a esperança de poder penetrar também no deles.
— Mas sabes que é impossível. Não te lembras do que aconteceu na estação de serviço? Eu vi como tentavas retirar aquela garrafa de coca-cola. Sofia ficou sentada a observar o jardim, enquanto o major falava sobre o “big bang”, a grande explosão. Foi justamente aquela expressão que a fez ter uma idéia.
Começou a remexer dentro do carro.
— O que é? — Nada. Abriu o porta-luvas, onde estava uma chave-inglesa, depois saiu do carro. Foi para junto do balanço e pôs-se em frente de Hilde e do pai.
Primeiro, tentou atrair o olhar de Hilde, mas não conseguiu. Por fim, levantou a chave-inglesa e bateu com
ela na testa de Hilde.
— Au! — exclamou Hilde.
Em seguida, Sofia bateu com a chave-inglesa na ca-beça do major, mas ele não reagiu.
— O que foi?
Hilde olhou para ele:
— Acho que fui mordida por um pernilongo.
— Deve ter sido Sócrates, que tenta arrancar-te à inércia... Sofia deitou-se na relva e tentou empurrar o ba-lanço, mas ficou imóvel. Ou teria conseguido movê-lo um milímetro?
— Está a levantar-se um vento frio.
— Não, está uma temperatura amena. — Não é só isso. Há alguma coisa aqui.
— Só nós dois e esta suave noite de Verão.
— Não, há alguma coisa no ar.
— O quê?
— Lembras-te do plano secreto do Alberto?
— Sim, claro!
— Eles desapareceram da festa de repente, como se tivessem sido engolidos pela terra...
— Mais tarde ou mais cedo, a história tinha de aca-bar, de resto foi uma coisa que eu escrevi.
— Sim, mas não escreveste o que aconteceu depois. Imagina se estivessem aqui...
— Acreditas nisso?
— Eu sinto isso, papai.Sofia voltou a correr para Alberto.
— Impressionante — admitiu Alberto, quando ela voltou a entrar no carro com a chave-inglesa na mão. — Esta moça é dotada de poderes raros! O major pôs um braço à volta de Hilde.
— Estás a ouvir o som maravilhoso das ondas?
— Sim.
— Amanhã levamos o barco para a água.
— Mas estás a ouvir como é estranho o sussurrar do vento? Estás a ver como as folhas dos choupos tre-mem?
— Este é o planeta vivo.
— Tu escreveste que havia alguma coisa nas entre-linhas.
— Sim?
— Talvez também haja alguma coisa nas entrelinhas deste jardim.
— Bom, a natureza está cheia de mistérios. Vamos falar sobre as estrelas no céu.
— E em breve haverá também estrelas na água.
— Sim, e quando eras pequena chamavas-lhes “fosforescências” do mar, e de certo modo tinhas razão, porque as fosforescências do mar e todos os outros orga-nismos são constituídas pela matéria que anteriormente estava junta numa estrela.
— Nós também?
— Sim, nós também somos poeira de estrelas.
— Que palavras bonitas!
— Quando os radiotelescópios captam a luz prove-niente de galáxias que estão a vários milhares de milhões de anos-luz de distância, mostram-nos o aspecto do uni-verso como era nos tempos primitivos. Vemos as galáxias mais longínquas, por assim dizer, logo a seguir ao “big bang”. Tudo o que um homem pode ver no céu, são fós-seis cósmicos que têm milhares e milhões de anos. A úni-ca coisa que um astrólogo pode fazer é prever o passado.
— Porque as estrelas que formam as constelações
se afastaram umas das outras antes que a sua luz chegasse até nós?
— Há alguns milhares de anos, as constelações ti-nham uma forma completamente diferente da que têm hoje.
— Não sabia.
— Quando a noite é clara vemos a história do uni-verso há milhões, sim, há mil milhões de anos. De certo modo, voltamos a casa.
— Explica isso melhor.
— Nós também nascemos com o “big bang”, por-que toda a matéria do universo forma uma unidade orgâ-nica. Nos tempos primitivos, toda a matéria estava con-centrada numa massa tão pesada que uma cabeça de alfi-nete pesava muitos milhares de milhões de toneladas.
Essa “matéria primordial” explodiu devido ao ex-cesso de gravidade, e desfez-se em muitos bocados. Mas quando olhamos para o céu, tentamos encontrar um ca-minho que nos leve lá acima.
— É uma maneira estranha de pôr as coisas.
— Todas as estrelas e galáxias do espaço são for-madas pela mesma matéria. Parte dessa matéria compri-miu-se. Uma galáxia pode estar a mil milhões de anos-luz de outras, mas todas têm a mesma origem. Todas as es-trelas e planetas são da mesma família...
— Estou a ver.
— E o que é essa matéria? O que é que explodiu há milhões de anos? De onde é que veio?
— Esse é o grande mistério?
— Mas é uma coisa que nos diz respeito, porque nós também somos feitos dessa matéria. Somos uma cen-telha da grande fogueira que foi ateada há milhões de a-
nos.


Neste dia, o Recanto estava tão triste que deu dó de mim ao lembrar de tanta alegria desfilando no meu terreiro, tanta gargalhada na molequeira, na conversa fiada que quem desse mundo não estava lá não sabe o que perdeu. Mas o Recanto foi feito pra ser um pedaço diferente do mundo, e assim será....

A Opus Dei é uma organização dentro da Igreja Católica, que
goza de privilégioso no vaticano, Tendo Inclusive poder de manipular as decisões do Papa. A Opus dei, se baseia em ensinamentos e regras do tempo da inquisição, para se manter.
Os numerários são submetidos aos mais animalescos tipos de
flagelos, e são induzidos a acreditarem que seu próprio corpo é
seu inimigo - São obrigados a usar uma espécie de macacão
anti-masturbação, para que a doença do erotismo mental não domine sua mente.Existem vários depoimentos de pessoas que
deixaram a Opus Dei, e muitos dêles alegam que foram introduzidos na Opus Dei, enganados. Outros, dizem que gostam do regime da Opus Dei.
4 anos atrás




NUM   DIA   MEIO   TRISTE
João Almeida

A SOMBRA  DAS  QUATRO   VEIO....
O VENTO E A BRISA TAMBÉM.
TRÊS BORBOLETAS AMARELAS
DANÇAVAM SOBRE O JARDIM,
E  ENQUANTO  NUVENS  BRANCAS
SE ARRUMAVAM  NO CÉU,
UMA ESQUADRILHA DE GARÇAS
CORTOU  O  MEU ESPAÇO,
FAZENDO PARECER SER ALI
UM DIA DE FESTA...

VINHERAM OS CARDEAIS,
AS ROLINHAS E OS TZIUS.
GIRANTES , CANÁRIOS DA TERRA,
SOFRÊS , SANHAÇOS E TIÊS.
AS SABIÁS JÁ ESTAVAM,
DESDE CEDINHO QUE CANTAM,
NÃO VINHERAM...MORAM  AQUI.

VEM TANTA GENTE...
QUER DIZER,  GENTE  MESMO, NÃO...
MAS QUANDO SE ESTÁ SÓ,
UM MOSQUITINHO QUE SEJA
FAZ COMPANHIA...

VINHERAM AS FRUTAS...COMO  QUE  SAINDO,
DETRAZ  DE  UMA CORTINA DE FOLHAS,
SE APRESENTAM...
LIMAS, ARAÇÃS E MANGAS,
OLHEM  LÁ UM CACHO DE ACEROLAS,
UM RAMO PRETINHO DE AMORAS...

MAS AÍ, VEIO UMA TRISTEZA
NOS VERSOS DE SEU ZÉ
QUE SÓ LABUTA CANTANDO
E ESTÁVA PERTO POR TRÁS DO BANANAL:

“MEU COQUEIRO DE TÃO ALTO,
JOGA CÔCO NA CIDADE.
MEU AMOR ALI  TÃO PERTO,
E EU MORRENDO DE SAUDADE.’

TEM  HORAS  QUE  NÃO SÃO FEITAS
PRA GENTE FICAR SÓ...
NÃO DOMINAMOS AS SENSAÇÕES,
MUITO MENOS....MUITO MENOS.....
AS SENSAÇÕES  DOS OUTROS....
AMANHÃ PODE NÃO VIR O SOL,
E ENTÃO NÃO TEREMOS SOMBRA.
MAS NO SEU LUGAR,
ATÉ UMA CHUVA PODE VIR...
ANOITECER MAIS CEDO...
MESMO SÓ, EU VOU ESTAR AQUI.

Neste dia, o Recanto estava tão triste que deu dó de mim ao lembrar de tanta alegria desfilando no meu terreiro, tanta gargalhada na molequeira, na conversa fiada que quem desse mundo não estava lá não sabe o que perdeu. Mas o Recanto foi feito pra ser um pedaço diferente do mundo, e assim será....







seria hoje uma sexagenária entediada com a vida a dois



Quando um pastor diz que o fiel está amarrado, geralmente é pela conta corrente. HYPERLINK "http://twitter.com/OCriador/status/9493954487" 6:23 PM Feb 22nd via web

Se Eu deixei Meu único filho morrer crucificado, pense o que Eu não seria capaz de fazer contigo. Portanto, comporte-se!
Alphonsus de Guimaraens
Ismália
Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...


Alphonsus de Guimaraens (Afonso Henriques da Costa Guimaraens), nasceu em Ouro Preto (MG), em 1870



Eu conto carneirinhos
Adriana Kairos

Gosto de sonhar.
Penso que os sonhos são passeios da alma. Sabe,quando queremos espairecer. Sair por aí. Distrair.

Só que os sonhos fazem viagens bem mais empolgantes. Viajam pelas lembranças, exploram o desconhecido, visitam até o que tememos e nos assustam com terríveis pesadelos. Mas são só pesadelos.

Revemos amigos, outros bem mais queridos e encontramos até gente nova. Sim!!! Acredito nisso. Sabe quando vemos alguém pela primeira vez e dizemos: "Eu não te conheço de algum lugar?" Sei lá, mas eu acho que é lá das voltinhas dos sonhos, que já o vimos antes.

Por isso é que gosto quando a noite chega. E espero ansiosa a hora de dormir, só pra saber a surpresa que terei. Que passeio farei, embalada em canções antigas de ninar. Quem sabe hajam caminhos de jujubas e rios de refrigerantes, laguinhos de chocolate com patinhos de bombom. Sei lá... As vezes a grande viajem é refugiar-se apenas no inimaginável.

Não sou mística ou qualquer outra coisa. Nem gosto de religião. Só quero compartilhar os meus humildes pensamentos. E convidar a sua alma a pôr o pé na estrada te lembrando o quanto é bom sonhar.



Em síntese: A Neurolingüística parte do princípio de que o comportamento humano é dependente do pensar e das emoções da pessoa. Em conseqüência ensina a programar pensamentos e sentimentos de tal modo que redundem em comportamento desejado pelo indivíduo.

0 vocábulo "Neuro" professa a idéia fundamental de que todos os nossos comportamentos tem origem nos processos neurológicos da vi¬são, da audição, do olfato, do paladar; do tato e das sensações em geral. Percebemos o mundo através dos cinco (ou seis) sentidos externos que temos, e fazemos, em conseqüência, o nosso mapa do mundo. "Compreendemos" as informações assim recebidas e depois agimos. Somos psicossomáticos; o corpo e o psiquismo formam urna unidade inquebran¬tável, que é o ser humano.

a) nunca use negações explícitas ou implícitas. Exemplo de nega¬ção explícita: "0 meu filho não vai ficar doente". Exemplo de negação implícita: "0 sol será incapaz de queimar a minha pele". 0 primeiro exem¬plo poderia ser reformulado do seguinte modo: "0 meu filho continua e continuará sendo saudável". Seja o mais minucioso e preciso possível. Por quê? - Porque, se não for preciso, poderá obter algo que não corresponda ao seu anseio. Veja-se o caso da jovem que programou: "0 meu noivo vai voltar são e salvo da Guerra do Golfo e vai casar-se". Resultado: 0 noivo voltou são e salvo, mas casou-se com outra mulher. A formulação correta teria sido:
"0 meu noivo vai voltar são e salvo da Guerra do Golfo e vai casar-se comigo, dentro de um ano após a sua volta".

c) Use tempos verbais presentes (de preferência, o gerúndio) ou futuros com limitação de data, conforme o caso. Por conseguinte, diga: "A minha saúde está melhorando" ou "A minha esposa obterá um emprego cujo salá¬rio será superior a mil reais até o final do mês de dezembro de 1999".

Deve-se observar que, para algumas pessoas altamente questionadoras e analíticas, o uso do presente simples (eu sou, eu tenho) pode gerar conflito com o eu médio, pois se fixará na incompatibilidade entre o presente real e o presente programado. Para tais pessoas, é mais seguro o uso do futuro com limitação de data. - E por que a limitação de data é necessária? Pela razão seguinte: Se Marcelo, com 21 anos de idade, faz programação para ganhar dez mil reais, usando tempo futuro sem limitação de data, poderá acontecer que, aos 92 anos de idade, receba uma herança no valor de dez ml reais,... herança que ele não poderá utilizar por estar moribundo no hospital.

d) Faça suas programações diariamente, de preferência sempre no mesmo horário. Evite fazer programações durante os processos digestivos. Seja persistente e paciente.


São sugestões indiretas os passes, as águas "fluídicas", as ervas para chá e para banho distribuídas pelos espíritas e curandeiros; estes podem estar de boa-fé acreditando no valor medicinal de tais recursos; na verdade, não fazem senão oferecer estímulos-sinais, que condicionam os seus clientes e os levam ao desbloqueio psicológico de que necessitam.






Deus tinha prometido proteger Israel. Mas o povo também prometera observar os mandamentos divinos. Por fim, difundiu-se a idéia de que Deus castigara Israel devido à desobediência.
A partir aproximadamente de 750 a.C. surgiu uma série de “profetas” que anunciaram o castigo de Deus so-bre Israel, porque o povo não observava os mandamentos do Senhor. “Um dia, Deus julgará Israel”, diziam. Esses profetas são designados por “profetas do dia do juízo”.
Cedo surgiram também profetas que profetizavam que Deus salvaria uma parte do povo e enviaria um “prín-cipe da paz”, ou um rei da paz, da estirpe de David. Este príncipe da paz deveria erigir de novo o antigo reino de
David e assegurar ao povo um futuro feliz.
“O povo que caminha na escuridão, verá uma grande luz”, afirmou o profeta Isaías, “aqueles que habi-tam na terra da sombra da morte, sobre eles brilhará a luz”.
Esses profetas são designados por “profetas da sal-vação”.
Vou ser mais conciso: o povo de Israel viveu feliz sob o reinado do rei David.
Quando as coisas começaram a correr pior para os israelitas, os profetas profetizaram a vinda de um novo rei da estirpe de David. Este “Messias”, ou “filho de Deus”, havia de “salvar” o povo, restaurar Israel como potência, e construir um “reino de Deus”.
“Jesus”
Bom, Sofia. Parto do princípio de que me estejas a seguir. As palavras-chave são “Messias”, “Filho de Deus”, “salvação” e “Reino de Deus”. De início, tudo isto tinha um significado político. Mesmo na época de Jesus, muitos imaginavam o novo messias como chefe político, militar e religioso do mesmo calibre que o rei David. O salvador era, portanto, visto principalmente como libertador na-cional, o qual poria fim ao sofrimento dos judeus sob o domínio romano.
Mas também se levantaram outras vozes. Já dois séculos antes do nascimento de Cristo, outros profetas tinham anunciado que o messias prometido seria o re-dentor de todo o mundo. Ele não libertaria apenas os isra-elitas do jugo estrangeiro, mas libertaria todos os homens do pecado e da culpa — e também da morte. A esperança
numa salvação neste sentido da palavra também estava difundida em todo o mundo helenístico.
E veio então Jesus. Ele não é o único que surge como o messias prometido e, tal como outros, usa as pa-lavras “filho de Deus”, “reino de Deus”, “Messias” e “salvação”. Deste modo, parte das antigas profecias. Vai para Jerusalém e é venerado pelas massas como salvador do povo.
Assim, faz lembrar os antigos reis que eram entro-nizados através de um “ritual de elevação ao trono” ca-racterístico. Ele também é ungido pelo povo. “O tempo está completo”, afirma, “o reino de Deus chegou”.
É importante notar tudo isto. Mas agora tens de prestar muita atenção: Jesus distinguia-se dos outros que se apresentavam como messias por afirmar muito clara-mente não ser um chefe militar ou político. A sua tarefa era muito maior. Anunciava a salvação e
o perdão de Deus para todos os homens, por isso podia andar entre os homens e dizer: “Os teus pecados são-te perdoados.” Pronunciar isto era inaudito. Por isso, também não foi preciso muito tempo para os escribas le-vantarem protestos contra Jesus. Por fim, empenharam-se também na preparação do seu suplício.
Vou explicar melhor: muitos homens no tempo de Jesus esperavam um messias que havia de restabelecer o reino de Deus com grande poder e esplendor (isto é, com a espada e com a lança). A expressão “reino de Deus” está presente como fio condutor na mensagem de Jesus — aliás com um significado muito mais alargado. Jesus apre-sentava o reino de Deus como amor pelo próximo, solici-tude para com os fracos e perdão para todos os que erra-ram.
Encontramos aqui uma modificação drástica no significado de uma expressão antiga e em parte militar. Os homens esperavam um líder militar que proclamasse o reino de Deus. Chega então Jesus de túnica e sandálias e explica que o reino de Deus ou o “Novo Testamento” significa: “Deves amar o próximo como a ti mesmo.” Além disso, ele afirmou que devemos amar os nossos ini-migos. Se nos dão uma bofetada, não devemos pagar na mesma moeda, mas apresentar a outra face.
E devemos perdoar — não sete vezes, mas setenta vezes sete. Durante a sua vida, Jesus mostrou que não desdenhava falar com prostitutas, publicanos corruptos e indivíduos politicamente subversivos.
Mas ele ainda vai mais longe: afirma que um filho que dissipou toda a herança — ou um publicano corrupto que extraviou dinheiro — é perante Deus justo desde que se dirija a Ele e peça perdão, porque tal é a generosidade de Deus na Sua graça.
Mas ele vai ainda mais longe — e agora tens de te segurar: Jesus dizia que esses “pecadores” eram perante Deus mais justos —, e mereciam preferencialmente o seu perdão — do que aqueles que se orgulhavam da sua pró-pria virtude.
Jesus insistia em que nenhum homem pode julgar por si se é digno do perdão de Deus. Não nos podemos salvar a nós mesmos. (Muitos gregos acreditavam nisto!). Quando Jesus apresenta as suas severas exigências éticas no “sermão da montanha” não era apenas porque quisesse mostrar a vontade de Deus. Ele quer também mostrar que nenhum homem é justo perante Deus. O perdão de Deus é ilimitado, mas devemos dirigir-nos a ele pela oração para obtermos o perdão.
Deixo a cargo do teu professor de religião mais es-clarecimentos acerca da personalidade de Jesus e da sua mensagem. Não é uma tarefa fácil. Espero que ele tam-bém vos possa esclarecer como Jesus foi um homem úni-co. De um modo genial, ele usa a linguagem do seu tempo e dá simultaneamente às idéias antigas um conteúdo com-pletamente novo e mais vasto. Não admira que ele tenha sido crucificado. A sua radical mensagem de salvação pu-nha a nu tantos interesses e jogos de poder que tinha de ser afastado.
No caso de Sócrates, vimos como pode ser perigo-so apelar à razão dos homens.
No caso de Jesus vemos como pode ser perigoso pedir um amor incondicional pelo próximo e um perdão igualmente incondicional. Ainda hoje vemos como Esta-dos poderosos vacilam se são postos perante pedidos simples de paz, amor e alimento para os pobres e perdão para os inimigos do Estado.
Sabes ainda como Platão ficou contrariado pelo fato de o homem mais justo de Atenas ter de pagar com a vida. Para o cristianismo, Jesus é o único homem justo que al-guma vez viveu. Porém, foi condenado à morte. Para o cristianismo, ele morreu pela humanidade. E isso é fre-qüentemente designado como a “paixão” de Cristo. Jesus foi o “servo sofredor” que assumiu a culpa de todos os pecados dos homens para nos reconciliar com Deus e nos salvar da Sua punição.
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Se uma hora dura cem anos, sim. Podemos pen-sar que Jesus nasceu à meia-noite. Paulo iniciou as suas viagens missionárias pouco antes da meia noite e meia e morreu um quarto de hora mais tarde, em Roma. Até às três horas, a Igreja Cristã era mais ou menos proibida, e no ano de 313 d.C. o cristianismo foi reconhecido como religião no Império Romano.
Isso sucedeu sendo imperador Constantino, que só foi batizado anos mais tarde no leito de morte. No ano de 380, o Cristianismo tornou-se a religião do Estado de todo o Império Romano.
— Mas o Império Romano não entrou em deca-dência nessa altura?
— Sim, já estava a ruir por todos os lados. Estamos perante uma das mais importantes transformações cultu-rais da história. No século IV, Roma foi ameaçada tanto pelas tribos que se aproximavam vindas do Norte como por conflitos internos. No ano de 330, o imperador Constantino transferiu a capital do Império Romano para Constantinopla, cidade que ele próprio fundara à entrada do mar Negro. A nova cidade foi considerada a partir de então como a “segunda Roma”. No ano de 395, o Impé-rio Romano foi dividido — passou a haver o “Império Romano do Ocidente”, com Roma no centro, e o “Impé-rio Romano do Oriente”, cuja capital era a cidade de Constantinopla. Em 410, Roma foi saqueada por tribos bárbaras, e em 476 todo o Império Romano do Ocidente caiu. O Império Romano do Oriente conservou-se até ao ano de 1453, quando os turcos conquistaram Constanti-
nopla.
Uma outra data que devemos fixar é o ano de 529. Nesse ano, a Academia de Platão em Atenas foi encerrada. E nesse mesmo ano, foi fundada a Ordem Beneditina, a primeira grande ordem monástica. Deste modo, o ano de 529 foi o ano em que a Igreja Cristã im-pediu a expansão da filosofia grega. A partir dessa altura, os conventos detinham o monopólio do ensino, da refle-xão e da meditação.
Por “Idade Média”, entendemos na realidade o tempo que medeia entre duas outras épocas. Esta expres-são surgiu no Renascimento. Nessa época, a Idade Média era tida como uma longa “noite de mil anos” que tinha obscurecido a Europa entre a Antiguidade e o Renasci-mento. Ainda hoje utilizamos a expressão “medieval” pe-jorativamente para tudo o que nos parece dogmático e retrógrado. Mas houve também quem tivesse visto a Idade Média como o “crescimento milenar”. Foi na Idade Mé-dia, por exemplo, que se formou o ensino público. Muito cedo surgiram as primeiras escolas nos mosteiros.
No século XII, nasceram as escolas nas catedrais, e a partir do século XIII foram fundadas as primeiras uni-versidades. Ainda hoje, as disciplinas estão divididas em diversos grupos ou “faculdades”, como na Idade Média.
— Mas mil anos é muito tempo.
— O cristianismo precisava de tempo para ser acei-te pelo povo. Além disso, durante a Idade Média nasceram as diferentes nações — com cidades e castelos, a música e a poesia populares. O que seriam as lendas e as canções populares sem a Idade Média? Sim, o que seria a Europa sem a Idade Média? Uma província romana? Mas a resso-nância de nomes como Noruega, Inglaterra ou Alemanha reside precisa-mente no abismo extraordinário a que cha-mamos Idade Média. Nesta profundidade há muitos pei-xes graúdos, mesmo que não os possamos encontrar.
Mas Snorri era um homem da Idade Média. E Olaf, o Santo. E Carlos Magno. Para não falar de Romeu e Juli-eta, os Nibelungos, a Branca de Neve ou os gigantes das florestas norueguesas.
E ainda um conjunto de príncipes esplêndidos e reis majestosos, cavaleiros corajosos e belas donzelas, anôni-mos pintores de vitrais e geniais construtores de órgãos. E não mencionei os monges, os cruzados e as bruxas.
— Também ainda não falaste dos sacerdotes.
— Tens razão. O cristianismo só chegou à Noruega após a mudança do milênio, mas seria um exagero se a-firmássemos que a Noruega se tornou um país cristão a-pós a batalha de Stiklestad. Antigas concepções pagãs co-existiam com a doutrina cristã, e muitos destes elementos pré-cristãos misturavam-se com os costumes cristãos. Nas festas de Natal norueguesas, por exemplo, coabitam ainda hoje costumes cristãos e costumes nórdicos antigos. Sub-siste a antiga norma segundo a qual os cônjuges tendem a assemelhar-se cada vez mais. Apesar disso, temos de sub-linhar que o cristianismo se tornou por fim a religião do-minante, pelo que, a Idade Média é considerada um perí-odo dominado por uma “cultura unitária cristã”.
— Então não foi apenas um período obscuro e triste?
— Os primeiros cem anos a seguir ao ano 400 trouxeram, de fato, uma decadência cultural. A época ro-mana foi notável pelo seu alto grau de civilização, com grandes cidades que dispunham de redes públicas de es-gotos, termas públicas e bibliotecas. Para não falar da ar-quitetura grandiosa. Toda esta cultura se desmoronou du-rante os primeiros séculos da Idade Média. O mesmo su-cedeu com o comércio e a economia baseados na moeda. Na Idade Média, a economia de subsistência e o paga-mento em gêneros surgiram de novo. O feudalismo ca-racterizou a economia. Feudalismo significa que alguns grandes senhores possuíam a terra que os camponeses tinham de cultivar para ganhar o seu sustento. Durante o primeiro século, a densidade populacional também baixou fortemente.
Roma fora na Antiguidade uma cidade com mais de um milhão de habitantes. Já no século VII, a população da antiga metrópole estava reduzida a quarenta mil habitan-tes. Uma população modesta caminhava entre os restos dos opulentos edifícios da época áurea da cidade. Quando os homens precisavam de materiais de construção, havia suficientes ruínas antigas de que se podiam servir, motivo de grande desgosto para os arqueólogos atuais, que teriam preferido que os homens da Idade Média tivessem deixa-do em paz os monumentos antigos.
— À medida que o tempo passa, sabe-se sempre mais.
— A época de Roma como potência política termi-nara por volta de finais do século IV. Mas depressa o bis-po de Roma se tornou o chefe de toda a Igreja católica
romana. Recebeu o nome de “papa” — ou “pai” — e, por fim, foi considerado o representante de Jesus na terra. Por isso, durante quase toda a Idade Média, Roma foi a capital da Igreja. E não havia muitas pessoas que ousassem “ele-var a sua voz contra Roma”. Mas, pouco a pouco, os reis e os príncipes dos novos Estados nacionais ganharam tanto poder que alguns deles tinham coragem para se o-porem ao forte poderio da Igreja.
Sofia fixava o erudito monge.
— Disseste que a Igreja encerrou a Academia de Platão em Atenas. Os filósofos gregos foram todos esque-cidos posteriormente?
— Só em parte. Havia quem conhecesse alguns es-critos de Aristóteles, e quem conhecesse alguns de Platão. Mas o antigo Império Romano dividiu-se progressiva-mente em três espaços culturais distintos. Na Europa O-cidental difundiu-se uma cultura cristã de língua latina, com a capital em Roma. Na Europa Oriental, formou-se uma cultura cristã de língua grega, com a capital em Constantinopla. Mais tarde, Constantinopla recebeu o nome grego de Bizâncio. Falamos, portanto, da “Idade Média bizantina”, por oposição à “Idade Média católica romana”. Mas também o Norte de África e o Médio Ori-ente tinham pertencido ao Império Romano. Estas regiões desenvolveram na Idade Média uma cultura muçulmana de língua árabe. A seguir à morte de Maomé, no ano de 632, o Médio Oriente e o Norte de África foram conquis-tados para o Islã.
Em seguida, também a Espanha foi anexada ao domínio cultural islâmico. O Islã obteve, por exemplo, os seus lugares sagrados em Meca, Medina, Jerusalém e Bag-dad. Do ponto de vista histórico-cultural é importante
reparar que os árabes também tomaram a antiga cidade helenística de Alexandria. Herdaram, assim, uma grande parte da ciência grega. Durante toda a Idade Média, os árabes detiveram o papel primordial nas ciências como a matemática, a química, a astronomia e a medicina. Ainda hoje utilizamos “algarismos árabes”. Em algumas áreas, a cultura árabe era superior à cultura cristã.
— Eu gostava de saber o que é que se passou com a filosofia grega.
— Consegues imaginar um rio que por algum tem-po se reparte em três cursos distintos antes de se juntarem novamente numa grande corrente?
— Estou a imaginar.
— Então também consegues imaginar como a cul-tura greco-romana foi transmitida, em parte, através da cultura católica romana no Ocidente, em parte através da cultura romana no Oriente e em parte através da cultura árabe, no Sul. Mesmo que simplifiquemos muito, pode-mos dizer que o neoplatonismo sobreviveu no Ocidente, Platão no Oriente e Aristóteles no Sul, entre os árabes. É importante o fato de todos os três cursos terem confluído numa corrente no final da Idade Média, no norte de Itália. Na Espanha, os árabes contribuíam com influências ára-bes, a Grécia e Bizâncio com influências gregas. E começa então o Renascimento, inicia-se o “renascer” da cultura antiga. De certo modo, a cultura antiga sobrevivera à lon-ga Idade Média.
— Compreendo.
— Mas não nos devemos antecipar ao curso dos acontecimentos. Primeiro, vamos conversar um pouco acerca da filosofia da Idade Média
A filosofia de Aristóteles também pres-supunha que Deus existe — ou uma primeira causa que põe em movimento todos os processos naturais. Mas não descreve Deus mais detalhadamente. Aí, temos de nos basear na Bíblia e na mensagem de Jesus.
— Mas é mesmo verdade que Deus exista realmen-te?
— Isso é obviamente discutível. Mas, ainda hoje, a maior parte das pessoas admitiria que pelo menos a nossa razão não pode provar que Deus não existe. S. Tomás foi mais longe. Acreditava poder provar a existência de Deus com base na filosofia de Aristóteles.
— Nada mau! — Segundo ele, com a razão também podemos re-conhecer que tudo tem de ter uma “primeira causa”. Deus, para S. Tomás, revelou-se aos homens por meio da Bíblia e por meio da razão. Logo, há uma teologia “reve-lada” e uma teologia “natural”. O mesmo se passa no do-mínio da moral. Podemos ler na Bíblia como é que deve-mos viver segundo a vontade de Deus. Mas Deus também nos dotou de uma consciência que nos habilita a distinguir o justo do injusto numa base “natural”. Também existem “duas vias” para a vida moral. Podemos saber que não devemos maltratar os ou-tros mesmo que não tenhamos lido na Bíblia que devemos tratar os outros como gostaríamos de ser tratados por eles. Mas, também neste caso, os mandamentos da Bíblia são a norma mais segura. — Acho que estou a perceber — disse então Sofia. — Da mesma forma, podemos saber que há uma trovoa-da quando vemos o relâmpago e ouvimos o trovão. — É isso. Mesmo que sejamos cegos, podemos ou-vir o trovão. E mesmo que sejamos surdos, podemos ver a trovoada. É óbvio que o melhor é poder ver e ouvir. Mas não há nenhuma contradição entre aquilo que vemos e o que ouvimos. Pelo contrário — as duas impressões enriquecem-se mutuamente. — Compreendo.
— Deixa-me dar mais um exemplo. Quando lês um romance — por exemplo — “Vitória” de Knut Hamsun.1
1 Knut Hamsun (1859-1952) — Escritor norueguês, autor de “Fome” (1890), “Pan” (1894), “Vitória” (1898) e “Frutos da Terra” (1917). Re-cebeu em 1920 o Prêmio Nobel da Literatura.
— De fato, já o li... — ...não descobres também alguma coisa acerca do autor, só porque lês o romance escrito por ele?
— Pelo menos posso partir do princípio de que há um autor que escreveu o livro. — Podes saber algo mais acerca dele?
— Acho que tem uma concepção bastante român-tica do amor.
— Ao leres esse romance — uma criação de Ham-sun —, também ficas a saber qualquer coisa acerca do próprio Hamsun. Mas não podes esperar informações muito pessoais sobre o autor. Podes, por exemplo, saber através de “Vitória” que idade tinha o autor quando o es-creveu, onde morava ou quantos filhos tinha?
— Claro que não.
— Mas uma biografia acerca de Knut Hamsun for-nece-te esse tipo de informações. Só numa biografia — ou autobiografia — podes conhecer melhor a pessoa do au-tor.
— Sim, é verdade.
— A relação entre a Criação de Deus e a Bíblia é mais ou menos assim. Se observarmos a natureza, pode-mos saber que Deus existe. Pode mos ver que ele gosta de flores e de animais, de outra forma não os teria criado. Mas só encontramos informações acerca de Deus na Bí-blia — ou seja, na autobiografia de Deus.
— Esse é um exemplo inteligente.
— Mm... Pela primeira vez, Alberto mergulhou nos seus pensamentos e não deu resposta.
— Isso tem alguma coisa a ver com Hilde? — per-guntou Sofia.
— Nós nem sequer sabemos se Hilde existe.
— Mas descobrimos aqui e ali vestígios dela. Pos-tais e um lenço de seda, uma carteira verde, uma meia... Alberto acenou afirmativamente.
— E parece depender do pai de Hilde o número de pistas que quer deixar. Mas, até agora, só sabemos que existe uma pessoa que escreve os postais. Acho que ele devia também escrever qualquer coisa acerca de si mesmo. Mas ainda havemos de voltar a falar sobre isso.
— São doze horas. Eu tenho mesmo de voltar para casa antes do fim da Idade Média.
— Vou concluir dizendo em poucas palavras como é que S. Tomás de Aquino adotou a filosofia de Aristóte-les em todos os domínios que não colidiam com a teologia da Igreja. Isso é válido para a sua lógica, a sua filosofia do conhecimento e ainda para a sua filosofia da natureza. Ainda te lembras do modo como Aristóteles descreveu uma escala ascendente da vida, desde as plantas e os ani-mais, até ao homem? Sofia acenou afirmativamente.
— Já Aristóteles acreditava que esta escala remetia para um Deus que representava uma espécie de vértice máximo da existência. Este esquema era facilmente adap-tável à teologia cristã. S. Tomás acreditava num grau de existência crescente, desde as plantas e os animais até aos homens, dos homens até aos anjos, e dos anjos até Deus. O homem, tal como os animais, possui um corpo com órgãos dos sentidos, mas o homem também possui uma razão que pensa. Os anjos não têm corpo nem órgãos dos sentidos, mas em vez disso têm uma inteligência direta e imediata. Não precisam de “discorrer”, como os homens, não precisam fazer deduções. Sabem tudo o que os ho-mens podem saber, mas não precisam avançar progressi-vamente às apalpadelas como nós. Uma vez que os anjos
não têm corpo, nunca vão morrer. Não são eternos como Deus, visto que também eles foram criados por Deus, mas não têm um corpo do qual poderiam ser separados, e por isso nunca hão de morrer.
— Isso soa maravilhosamente.
— Mas acima dos anjos reina Deus, Sofia. Ele pode ver e saber tudo numa única visão de conjunto.
— Nesse caso, também nos está a ver agora.
— Sim, talvez nos esteja a ver. Mas não “agora”. Para Deus, o tempo não existe como para nós. O nosso “agora” não é o “agora” de Deus. O fato de passarem al-gumas semanas para nós não significa que também pas-sem para Deus.
— Mas isso é inquietante! — exclamou Sofia, colo-cando a mão na boca.
Alberto olhou para ela, e Sofia explicou:
— Recebi novamente um postal do pai de Hilde. Escreveu qualquer coisa assim: “Se passa uma semana ou duas para Sofia, não significa que passe o mesmo tempo para nós.” É quase o mesmo que disseste sobre Deus!
Sofia viu que o rosto no capuz castanho se contor-ceu num veemente trejeito.
— Ele devia ter vergonha!
Sofia não percebeu o que Alberto queria dizer com aquilo. Talvez fosse apenas uma maneira de falar. E pros-seguiu:
— Infelizmente, S. Tomás de Aquino também a-dotou a concepção aristotélica da mulher. Talvez ainda te lembres que, para Aristóteles, a mulher era uma espécie de homem imperfeito. Ele achava ainda que os filhos apenas herdavam as características do pai, porque a mulher era passiva, enquanto o homem era ativo. Segundo S. Tomás,
estas reflexões estavam de acordo com as palavras da Bí-blia — onde está escrito, por exemplo, que a mulher foi criada da costela do homem.
— Que absurdo!
— Talvez seja importante acrescentar que os meca-nismos de ovulação nos mamíferos só foram descobertos em 1827. Por isso, talvez não fosse de surpreender que o homem fosse considerado aquele que fornece a forma e dá a vida na reprodução. Podemos também notar que para S. Tomás a mulher só era inferior ao homem enquanto criatura física. Para ele, a alma da mulher é tão importante como a do homem. No céu, há igualdade entre os sexos, muito simplesmente porque já não há diferenças corporais entre os sexos.
— Mas isso é um fraco consolo. Na Idade Média não havia filósofas?
— Na Idade Média, a Igreja era fortemente domi-nada pelos homens. Mas isso não significa que não tenha havido pensadoras. Uma delas era “Hildegard von Bin-gen... Sofia arregalou os olhos:
— Ela tem alguma coisa a ver com Hilde?
— Que perguntas fazes! Hildegard viveu entre 1098 e 1179 como freira na Renânia. Era mulher, mas, no en-tanto, foi pregadora, escritora, médica, botânica e cientis-ta. Foi um exemplo de que na Idade Média as mulheres eram freqüentemente mais práticas — e mesmo mais ci-entíficas — que os homens.
— Eu perguntei se ela tem alguma coisa a ver com Hilde!
— Existe uma antiga concepção cristã e hebraica segundo a qual Deus não é apenas homem. Ele também tem um lado feminino ou “natureza maternal”. Porque
também a mulher foi criada à imagem de Deus. Em grego, este lado feminino de Deus chamava-se “Sophia”. “So-phia” ou “sofia” significa “sabedoria
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O Renascimento também trouxe consigo uma nova “concepção de Deus”. À medida que a filosofia e a ciência se separavam da teologia, surgiu uma nova religio-sidade cristã. Começou então o Renascimento com a sua nova concepção do homem, e isso também foi importante para a prática religiosa. Mais importante do que a relação com a Igreja como instituição, tornou-se a relação pessoal do indivíduo com Deus.
— A oração da noite, por exemplo?
— Sim, isso também. Na Igreja Católica da Idade Média, a liturgia latina da Igreja e as suas orações tinham formado a verdadeira coluna vertebral do culto religioso. Apenas sacerdotes e monges liam a Bíblia, porque esta só existia em latim. Mas durante o Renascimento a Bíblia foi traduzida do hebraico e do grego para as línguas popula-res. Isso foi importante para a “Reforma...
— “Martinho Lutero...
— Sim, Lutero foi importante, mas ele não foi o único reformador. Também havia reformadores da Igreja que, apesar de pertencerem à Igreja Católica Romana, queriam agir. Um deles foi “Erasmo de Roterdã”.
— Lutero rompeu com a Igreja Católica porque não queria pagar indulgências?
— Sim, também, mas tratava-se de algo muito mais importante. Para Lutero, o homem não precisava de fazer o desvio pela Igreja ou pelos seus sacerdotes para obter o perdão de Deus. E o perdão de Deus não estava depen-dente de uma quantia para a indulgência paga à Igreja. O chamado tráfico de indulgências também foi proibido na Igreja Católica em meados do século XVI.
— De certeza que Deus se alegrou com isso.
— Lutero distanciou-se de um modo geral de mui-tos costumes religiosos e dogmas que a Igreja desenvol-vera na Idade Média. Ele queria voltar ao cristianismo ori-ginal tal como o encontramos no Novo Testamento. “A-penas as Escrituras” — afirmava ele. Com este mote, Lu-tero queria regressar “às fontes” do cristianismo, tal como os humanistas do Renascimento queriam voltar às fontes antigas da arte e da cultura. Ele traduziu a Bíblia para o alemão e criou assim a base para a língua escrita do ale-mão padrão. Cada qual poderia ler a Bíblia e, de certo modo, ser o seu próprio pastor.
— Como assim? Isso não vai demasiado longe?
— Ele achava que os sacerdotes não ocupam ne-nhuma posição privilegiada em relação a Deus. As comu-nidades luteranas também empregavam pastores por ra-zões práticas, e eles celebravam o serviço religioso e reali-zavam as tarefas religiosas diárias. Mas ele achava que o homem não alcança o perdão de Deus e a remissão dos seus pecados pelos rituais eclesiásticos. A salvação é dada ao homem totalmente “grátis”, apenas através da fé, afir-mava ele. Ele chegara a esta conclusão por meio da sua leitura da Bíblia.
— Lutero também era um homem típico do Renas-cimento?
— Sim e não. Um traço típico do Renascimento era a importância que se dava ao indivíduo e à sua relação pessoal com Deus. Ele aprendeu grego com trinta e cinco anos e lançou-se à morosa tarefa de traduzir a Bíblia para o alemão. O fato de a língua popular substituir o latim também era típico do Renascimento. Mas Lutero não era um humanista como Ficino ou Leonardo da Vinci. Alguns
humanistas, como Erasmo de Roterdã, criticaram-no de-vido à sua concepção demasiado negativa do homem. Lu-tero sublinhou nomeadamente que o homem estava com-pletamente corrompido pelo pecado original e a humani-dade só podia ser salva através da graça divina. Porque a recompensa do pecado é a morte.
— Isso é realmente um pouco triste.Alberto Knox levantou-se. Tirou o berlinde da mesa e pô-lo no bolso do peito.
— Já passa das quatro! — exclamou Sofia.
— E a próxima grande época na história da huma-nidade é o Barroco. Mas vamos guardar isso para um ou-tro dia, querida Hilde. .-O que é que disseste? Sofia le-vantou-se de um pulo — Então foi um lapso.
— Mas os lapsos têm sempre um motivo.
— Talvez tenhas razão.
Certamente o pai de Hilde já nos anda a colocar pa-lavras na boca. Acho que ele se aproveita da situação quando nós estamos cansados. Nessa altura, não podemos defender-nos com tanta facilidade.
— Tu disseste que não és o pai de Hilde. Juras-me que isso é verdade? Alberto acenou afirmativamente.
— Mas então eu sou Hilde?
— Estou cansado, Sofia. Tens de compreender. Já estamos aqui há mais de duas horas e eu falei durante quase todo o tempo. Não tens de ir para casa jantar?
Sofia teve a sensação de que ele a queria pôr na rua.
A caminho da saída, perguntava-se incessantemente porque é que ele tivera aquele lapso. Alberto vinha atrás dela. Debaixo de uma pequena fila de cabides, onde esta-vam pendurados muitos fatos estranhos que pareciam tra-Não, tudo é produto de processos mecânicos — inclusivamente os nossos pensamentos e sonhos. No sé-culo XIX, materialistas alemães afirmaram que os proces-sos de pensamento se comportam em relação ao cérebro tal como a urina em relação aos rins e a bílis em relação ao fígado.
— Mas a urina e a bílis são materiais. Os pensa-mentos não. — Estás a dizer uma coisa importante. Posso contar-te uma história que diz o mesmo. Certa vez, um cosmonauta e um neurocirurgião russos discutiam sobre religião. O cirurgião era cristão, o cosmonauta não. “Eu já estive várias vezes no espaço”, gabava-se o cosmonauta, “mas não vi nem Deus nem anjos”. “E eu já operei mui-tos cérebros inteligentes”, respondeu o cirurgião, “e tam-bém não encontrei em lado algum um único pensamen-to”.
— O que não significa que os pensamentos não e-xistam.
— Não. Apenas esclarece que os pensamentos são algo completamente diferente de tudo o que pode ser amputado ou dividido em partes cada vez menores. Por exemplo, não é fácil remover uma alucinação com uma operação. Um importante filósofo do século XVII, cha-mado “Leibniz”, referiu que a grande diferença entre tudo o que é feito de “matéria” e tudo o que é feito de “espíri-to” consiste precisamente no fato de a matéria poder ser dividida em partes cada vez menores. Mas a alma não po-de ser cortada em pedaços.
— Pois não, que tipo de faca se usaria?Alberto a-banou a cabeça. Depois, apontou para a mesa entre ambos e afirmou:
— Os dois filósofos mais importantes do século
XVII foram Descartes e Espinosa. Também eles se preo-cuparam com questões como a relação entre alma e corpo. Vamos observar mais pormenorizadamente estes filóso-fos.
— Conta. Mas, se não estivermos despachados até às sete, tenho de telefonar à minha mãe.
CAPÍTULO XVIII: DESCARTES
...ele queria remover todos os velhos materiais do terreno de constru-ção....
Alberto levantara-se e despira a capa vermelha. Pô-la numa cadeira e voltou a sentar-se confortavelmente no sofá.
— “René Descartes” nasceu em 1596 e viveu em vários países da Europa ao longo da vida. Já na sua ju-ventude, sentia o forte desejo de tomar conhecimento da natureza do homem e do universo. Mas depois de ter es-tudado filosofia tornou-se consciente principalmente da sua própria ignorância.
— Mais ou menos como Sócrates?
— Sim, mais ou menos assim. Tal como Sócrates, estava convencido de que só a razão nos pode dar conhe-cimento seguro. Nunca podemos confiar no que está es-crito em livros antigos. Nem sequer podemos confiar no que os nossos sentidos nos transmitem.
— Platão era da mesma opinião. Ele achava que só a razão nos pode dar um saber sólido.
— Exato. De Sócrates e Platão, através de S. Agos-tinho, há uma linha direta até Descartes. Todos eles eram racionalistas convictos. Para eles, a razão era a única fonte segura de conhecimento. Após muitos estudos, Descartes reconheceu que não era forçoso confiar no saber transmi-tido na Idade Média. Podes fazer uma comparação com Sócrates, que não confiava nas concepções mais difundi-das com que se defrontava na ágora em Atenas. E o que é que se faz neste caso, Sofia? Sabes responder-me?
— Começa-se a filosofar por si mesmo.
— Exato. Descartes decidiu então viajar pela Eu-ropa — tal como Sócrates, que passou a vida em diálogo com homens de Atenas. Ele próprio relata que a partir dessa altura só queria procurar o saber que podia encon-trar em si mesmo ou “no grande livro do mundo”. Por isso, entrou para o exército e pôde permanecer em diver-sos locais da Europa Central. Mais tarde, passou alguns anos em Paris. Em Maio de 1629, viajou para os Países Baixos, onde viveu durante quase vinte anos, enquanto trabalhava nos seus escritos filosóficos. Em 1649, a rainha Cristina convidou-o a viver na Suécia. MA idéia de um Deus é, segundo Descartes, uma idéia
inata que nos foi implantada ao nascermos — “tal como a marca que o artista imprimiu na sua obra”, como ele es-creve.
— Mas mesmo que eu tenha uma idéia de um cro-cofante, isso não significa que existam crocofantes.
— Descartes teria dito que o conceito de “croco-fante” não implica que ele exista. Mas o conceito de “ser perfeito” implica que este ser exista. Para Descartes isto é tão certo como o fato de a idéia de círculo implicar que todos os pontos do círculo estão à mesma distância do centro do círculo. Logo, não podes falar de um círculo se ele não preenche estes requisitos. E também não podes falar de um ser perfeito se lhe falta a mais importante de todas as qualidades, a existência.
— É um modo de pensar muito especial.
— Isto é um modo de pensar claramente “raciona-lista”. Tal como Sócrates e Platão, Descartes via uma co-nexão entre pensa-mento e existência. Quanto mais evi-dente uma coisa é para o pensa-mento, mais certa é a sua existência.
—Até aqui, ele reconheceu que é um ser pensante, e que existe um ser perfeito.
— E, a partir destas certezas, prossegue. Todas as idéias q ue temos da realidade exterior — por exemplo, Sol e Lua —, podiam também ser apenas visões oníricas. Mas a realidade exterior também tem algumas caracterís-ticas que podemos conhecer com a razão. Por exemplo, as relações matemáticas, ou seja, aquilo que pode ser medido, o comprimento, a altura e a profundidade. Estas “propri-edades quantitativas” são tão claras para a razão como o fato de eu ser um ser pensante. “Propriedades qualitati-vas” como cor, cheiro e sabor estão por seu lado relacio-
nadas com os nossos sentidos e não descrevem nenhuma realidade exterior.
— Então afinal a natureza não é um sonho?
— Não. E, neste ponto, Descartes recorre nova-mente à nossa idéia de um ser perfeito. Se a nossa razão conhece algo muito clara e distintamente — que é o caso das relações matemáticas na realidade exterior — é porque é assim mesmo. Um Deus perfeito não faria pouco de nós. Descartes recorre a Deus como garantia de que aqui-lo que conhecemos com a nossa razão corresponde a uma coisa real.
— Está bem. Ele descobriu que é um ser pensante, que Deus existe e ainda que existe uma realidade exterior.
— Mas entre a realidade exterior e a realidade das idéias há uma diferença essencial. Descartes pressupõe que existem duas formas diferentes de realidade — ou duas “substâncias”. Uma substância é o “pensamento” ou a alma, a outra a “extensão” ou a matéria. A alma é apenas consciente, não ocupa espaço e, por isso, também não pode ser dividida em partes menores. A matéria, por seu lado, é extensa, ocupa espaço e pode ser dividida em par-tes cada vez menores — mas não é consciente. Descartes afirma que ambas as substâncias provêm de Deus, porque apenas Deus existe independentemente de todas as outras coisas. Mas mesmo provindo pensamento e extensão de Deus, as duas substâncias são completamente indepen-dentes uma da outra. O pensamento é livre na sua relação com a matéria — e vice-versa: os processos materiais o-peram de forma totalmente independente do pensamento.
— E assim, a Criação ficou dividida em dois.
— Exato. Dizemos que Descartes é “dualista”, e isso significa que ele traça uma clara linha de separação
entre a realidade espiritual e a realidade em extensão. Por exemplo, apenas o homem tem alma. Os animais perten-cem totalmente à realidade em extensão. A sua vida e os seus movimentos são puramente mecânicos. Descartes via os animais como uma espécie de autômatos complexos. Em relação à realidade em extensão, ele tem dela uma concepção mecanicista — tal como os materialistas.
— Mas eu duvido muito que Hermes seja uma má-quina ou um autômato. Certamente, Descartes nunca gostou de um animal. E em relação a nós? Também so-mos autômatos?
— Sim e não. Descartes chegou à conclusão de que o homem é um ser duplo que pensa e ocupa espaço. O homem tem uma alma e um corpo extenso. S. Agostinho e S. Tomás de Aquino já tinham afirmado algo semelhan-te. Acreditavam que o homem tem corpo tal como os animais, mas também espírito como os anjos. Para Des-cartes, o corpo é um mecanismo muito sofisticado. Mas o homem tem também alma que pode operar independen-temente do corpo. Os processos corporais não têm essa liberdade, seguem as suas próprias leis. Mas aquilo que pensamos com a razão não acontece no corpo. Acontece na alma, que é independente da realidade extensa. Eu posso ainda acrescentar que Descartes não queria excluir a possibilidade de também os animais pensarem. Mas, se possuírem essa faculdade, também tem de existir neles a mesma divisão entre pensamento e extensão.
— Já falamos sobre isso. Quando eu decido correr para o ônibus, todo o “autômato” se põe em movimento. E se perco o ônibus, vêm-me as lágrimas aos olhos.
— Nem Descartes podia contestar que existe sem-pre esse efeito recíproco entre alma e corpo. Enquanto a
alma está no corpo, segundo ele, está ligada ao corpo a-través de um órgão do cérebro muito especial, uma glân-dula, na qual se dá uma reação constante entre o espírito e a matéria. Deste modo, segundo Descartes, a alma pode ser permanentemente confundida com os sentimentos e sensações que têm a ver com as necessidades do corpo. O objetivo é transmitir à alma a ordem: Seja qual for a gra-vidade das minhas dores de barriga, a soma dos ângulos num triângulo é sempre cento e oitenta graus. Deste mo-do, o pensamento pode elevar-se acima das necessidades do corpo e proceder “racionalmente”. Deste ponto de vista, a alma é totalmente independente do corpo. As nossas pernas podem ficar velhas e fracas, as nossas costas tortas, e os nossos dentes podem cair — mas dois mais dois serão sempre quatro, enquanto ainda houver razão em nós. Porque a razão não fica velha e caduca. Os nos-sos corpos é que envelhecem. Para Descartes, a própria razão é a alma. Paixões e humores inferiores como a con-cupiscência e o ódio estão estreitamente ligados às fun-ções corporais — e conseqüentemente à realidade extensa.
— Eu não me conformo com o fato de Descartes ter comparado o corpo com uma máquina ou um autô-mato.
— O motivo da comparação é o fato de as pessoas, no tempo de Descartes, estarem completamente fascina-das com as máquinas e os mecanismos dos relógios, que aparentemente funcionavam por si mesmos. A palavra “autômato” designa precisamente algo que se move por si mesmo. Mas eles moverem-se por si era apenas uma ilu-são. Por exemplo, os homens construíram nessa época um relógio astronômico e deram-lhe corda. Descartes acentua que estes mecanismos artificiais são compostos muito
simplesmente por poucas partes, em comparação com as quantidades de ossos, músculos, nervos, artérias e veias que compõem os corpos de homens e animais. Mas por-que é que Deus não havia de produzir um corpo animal ou humano com base nas leis mecânicas?
— Hoje fala-se muito de “inteligência artificial”.
— Estás a pensar nos nossos autômatos atuais. Construímos máquinas que por vezes nos podem con-vencer realmente da sua inteligência. Essas máquinas te-riam certamente posto Descartes em pânico. Talvez ele se interrogasse se a razão humana é realmente tão livre e au-tônoma como ele tinha pensado. Há filósofos que pensam que a vida espiritual humana é tão pouco livre como os processos corporais. A alma de um homem é infinita-mente mais complexa do que qualquer programa de computador, mas há também quem pense que em princí-pio somos tão pouco livres como esses programas. Mas olha para aqui, Sofia. Quero mostrar-te uma coisa.
As
Espinosa pertencia à comunidade judaica de Amsterdã, mas foi ex-comungado devido às suas supostas heresias.
Poucos filósofos da época moderna foram tão es-carnecidos e perseguidos por causa dos seus pensamentos como este homem. Tentaram inclusivamente assassiná-lo, só por ter criticado a religião oficial. Ele achava que ape-nas dogmas rígidos e rituais exteriores mantinham o cris-tianismo e o judaísmo vivos. Foi o primeiro a fazer uma interpretação “histórico — crítica” da Bíblia.
— Tens que explicar isso melhor.
— Ele contestou que a Bíblia fosse inspirada por Deus até à menor palavra. Quando lemos a Bíblia, segun-do ele, temos de ter em conta a época em que teve ori-
gem. Esta leitura “crítica” permite-nos reconhecer uma série de contradições entre os diversos Livros e Evange-lhos da Bíblia. Sob a superfície dos textos do Novo Tes-tamento encontramos Jesus, o qual podemos designar por porta-voz de Deus. A mensagem de Jesus significava pre-cisamente uma libertação do judaísmo rígido. Jesus anun-ciou uma “religião racional”, para a qual o amor era o va-lor mais elevado. Espinosa refere-se aqui tanto ao amor a Deus como ao amor ao próximo.
Mas também o cristianismo se cristalizara rapida-mente em dogmas e rituais rígidos.
— Eu compreendo que essas idéias fossem muito indigestas para as igrejas e para as sinagogas.
— Quando a situação se tornou mais grave, Espi-nosa foi inclusivamente abandonado pela família. Queriam deserdá-lo por heresia. O paradoxo disto era que poucas pessoas tinham defendido tão energicamente a liberdade de opinião e a tolerância religiosa como Espinosa. As nu-merosas oposições com que teve de lutar levaram-no por fim a escolher uma vida tranqüila, inteiramente dedicada à filosofia.
Ganhava o seu sustento a polir vidros óticos. Al-gumas destas lentes, como disse, foram adquiridas por mim.
— Impressionante.
— O fato de ele viver de polir lentes é quase simbó-lico. Os filósofos devem ajudar os homens a ver a reali-dade segundo uma perspectiva nova. E é fundamental pa-ra a filosofia de Espinosa o desejo de ver as coisas sob a “perspectiva da eternidade”.
— A perspectiva da eternidade?
— Sim, Sofia. Achas que poderias conseguir ver a
tua própria vida num contexto cósmico? Nesse caso, teri-as de certo modo de te ver a ti mesma e à tua vida com os olhos semicerrados...
— Hm... não é fácil.
— Pensa que és apenas uma partícula minúscula de toda a vida da natureza. Fazes parte de um todo muito grande.
— Acho que percebo o que queres dizer.
— Também consegues entender isso? Consegues abarcar toda a natureza de uma só vez — sim, todo o u-niverso — num único relance?
— Depende. Talvez eu precise de um par de vidros óticos.
— E eu não estou apenas a pensar no universo in-finito.
Penso também num espaço de tempo infinito. Há trinta mil anos vivia um menino na Renânia. Era uma par-tícula minúscula de toda a natureza, um pequeno encres-par num mar infinitamente grande. Assim, também tu vi-ves uma parte minúscula da vida da natureza.
Entre ti e esse jovem não há nenhuma diferença.
— Em todo o caso, eu vivo agora.
— Pois, era sobre isso que eu queria que refletisses. Mas quem és tu daqui a trinta mil anos?
— Isso é que era a heresia?
— Bom, Espinosa não disse apenas que tudo o que existe é natureza. Ele colocou também um sinal de igual entre Deus e a natureza. Ele via Deus em tudo o que e-xiste e tudo o que existe em Deus.
— Então era panteísta.
— Sim. Para Espinosa, Deus não é alguém que cri-ou outrora o mundo e está desde então junto à sua Cria-
ção.
Não, Deus “é” o mundo. Ele refere o discurso de Paulo no areópago. “Porque nele vivemos, nele nos mo-vemos e existimos” dissera Paulo. Mas vamos prosseguir no pensamento de Espinosa. A sua obra mais importante chama-se “A Ética Demonstrada Segundo o Método Geométrico”.
— Ética... e método geométrico?
— Isso soa talvez um pouco estranho aos nossos ouvidos.
Por ética, os filósofos entendem a teoria de como devemos conduzir-nos para termos uma vida feliz. Neste sentido, falamos, por exemplo, acerca da ética de Sócrates ou de Aristóteles. Apenas na nossa época a ética foi de certo modo reduzida a algumas regras segundo as quais podemos viver sem pisarmos os pés dos nossos próximos.
— Porque pensarmos na nossa própria felicidade é tido como egoísmo?
— É mais ou menos assim. Quando Espinosa utili-za a palavra ética, ela pode ser traduzida igualmente por arte de viver ou conduta moral.
— Mas então... “Arte de viver demonstrada segun-do o método geométrico”?
— O método geométrico diz respeito à linguagem ou à forma de exposição. Ainda te lembras que Descartes queria aplicar o método matemático à reflexão filosófica. Por isso, ele entendia uma reflexão filosófica que é for-mada a partir de deduções exatas.
Espinosa situa-se na mesma tradição racionalista. Na sua ética, queria demonstrar como a vida humana é dirigida pelas leis da natureza. Para isso, temos de nos li-bertar dos nossos sentimentos e sensações, porque só as-
sim podemos encontrar a tranqüilidade e sermos felizes,
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percebemos.
— Sim e não. Essa é a segunda questão a que Locke procura dar resposta. Ele explicou em primeiro lugar de onde retiramos as nossas idéias e opiniões. Mas, em se-guida, pergunta também se o mundo é realmente tal como o percebemos. É que isso não é nada evidente, Sofia. Não devemos precipitar-nos. É a única coisa proibida a um verdadeiro filósofo.
— Estou muda como um peixe.
— Locke fazia a distinção entre o que designava por qualidades “primárias” e “secundárias”. Reconhecia assim a sua dívida perante os grandes filósofos — inclu-indo Descartes — que o tinham precedido.
— Explica-me isso!
— Por “qualidades primárias”, ele entende a di-mensão, o peso, a forma, o movimento e o número das coisas. Nestas qualidades, podemos ter a certeza de que os sentidos reproduzem as qualidades reais das coisas. Mas também percebemos outras qualidades das coisas. Dize-mos que uma coisa é doce ou amarga, verde ou vermelha, quente ou fria. A isto, Locke chama “qualidades secundá-rias”. E essas impressões sensíveis — como cor, cheiro, sabor ou som — não reproduzem qualidades reais que residem nas próprias coisas. Reproduzem apenas o efeito das qualidades exteriores nos nossos sentidos.
— Justamente, gostos não se discutem.
— Exato. Sobre as qualidades primárias — como extensão e peso — podemos estar todos de acordo, por-que residem nas próprias coisas. Mas as qualidades se-cundárias — como cor e sabor — podem variar de animal para animal e de pessoa para pessoa, dependendo da na-tureza das sensações de cada indivíduo.
— Quando Jorunn come uma laranja, faz exata-mente a mesma cara que outras pessoas quando comem um limão. Geralmente, nunca consegue comer mais do que um gomo. “É ácida”, diz ela. E, normalmente, eu a-cho que exatamente a mesma laranja é doce e saborosa.
— E nenhuma das duas tem razão, mas também nenhuma está errada. Vocês descrevem apenas o efeito desta laranja nos vossos sentidos. O mesmo se passa com a experiência das cores. Admitamos, por hipótese, que um certo tom de vermelho não te agrada. Se Jorunn tiver comprado um vestido justamente dessa cor, talvez deves-ses guardar a tua sensibilidade para ti mesma. Vocês têm uma sensibilidade diferente em relação a esta tonalidade, mas o vestido não é bonito nem feio.
— Mas todos estão de acordo em que uma laranja é redonda.
— Sim, se tens uma laranja redonda, não a podes ver como se fosse cúbica. Podes achá-la doce ou ácida, mas não podes “achar” que pesa oito quilos se pesa ape-nas duzentas gramas. Podes talvez “acreditar” que pesa vários quilos, mas, nesse caso, estás completamente enga-nada. Quando várias pessoas têm de adivinhar o peso de um objeto, há sempre uma que está mais perto da verdade do que as outras. Isso também se aplica ao número de coisas. Ou há novecentas e oitenta e seis ervilhas no fras-co ou não. O mesmo se passa com o movimento. O carro está em movimento, ou está parado.
— Compreendo.
— No que diz respeito à “realidade extensa”, Locke tem a mesma opinião que Descartes, isto é, ela apresenta certas qualidades que o homem pode compreender com o seu entendimento.
— Estar de acordo com isso também não é difícil.
— Em outros domínios, Locke também admite o que designa por conhecimento “intuitivo” ou “demons-trativo”. Ele considerava, por exemplo, que certas regras fundamentais da ética são dadas a todos.
Assim ele defende a chamada “concepção do direito natural” e isso é uma característica racionalista. Uma outra característica racionalista clara é o fato de Locke achar que é inerente à razão humana saber que Deus existe.
— Talvez tivesse razão.
— Em quê?
— Em dizer que Deus existe.
— Sim, é concebível. Mas ele não deixa que isso se-ja simplesmente uma questão de fé. Ele acha que o co-nhecimento que o homem tem de Deus tem origem na razão humana. “Isso” é uma característica racionalista. Devo acrescentar que ele defendia a liberdade de opinião e a tolerância. Defendia também a igualdade de direitos de ambos os sexos. Segundo ele, a posição subordinada da mulher tinha sido criada pelos seres humanos. E, por isso, podiam transformá-la.
— Estou totalmente de acordo.
— Locke foi um dos primeiros filósofos da época moderna que se preocupou com a questão dos papéis dos sexos. Ele foi posteriormente muito importante para o seu homônimo John Stuart Mill, que por sua vez foi muito importante na luta pela igualdade de direitos entre os se-xos. Locke manifestou muito cedo idéias liberais que fo-ram retomadas durante o Iluminismo francês do século XVIII. Por exemplo, foi ele o primeiro a defender o cha-mado “princípio da separação dos poderes...
— Isso significa que o poder do Estado está repar-
tido em diversas instituições.
— Ainda te lembras de que instituições se trata?
— Há o poder legislativo, ou o parlamento. Depois há o judicial, ou os tribunais. Por fim, há o executivo, ou o governo.
— Essa tripartição provém do filósofo iluminista francês “Montesquieu”. Locke realçara que o poder legis-lativo e o executivo tinham de estar separados se se qui-sesse evitar a tirania. Ele foi contemporâneo de Luís XIV, que reunira todo o poder em si. “Eu sou o Estado”, afir-mou ele. Era um monarca absoluto, e hoje diríamos que governava de modo arbitrário. Locke defendia, pelo con-trário, que para garantir um Estado de direito, os repre-sentantes do povo têm de criar leis, que são em seguida implementadas pelo rei e pelo governo.
CAPÍTULO XXI: HUME
...então lançai-o à fogueira...
Alberto olhava fixamente para a mesa entre os dois. Por fim voltou-se e olhou pela janela.
— O céu está a ficar nublado — afirmou Sofi-a.-Sim, está carregado.
— Vais falar agora de Berkeley? — Ele foi o se-gundo dos três empiristas britânicos. Mas uma vez que em muitos aspectos ele é um caso à parte, vamos concen-trar-nos primeiro em David Hume, que viveu entre 1711 e 1776. A sua filosofia é hoje tida como a mais importante filosofia empírica. Ele também foi de importância essenci-al por ter inspirado o grande filósofo Immanuel Kant para a sua própria filosofia.
— E não tem importância o fato de a filosofia de Berkeley me interessar muito mais?
— Isso não tem importância, não. Hume cresceu perto de Edimburgo, na Escócia, e a família queria fazer dele um jurista. Mas ele afirmava sentir “uma insuperável aversão a tudo menos à filosofia e ao conhecimento em geral”.
Viveu, como os grandes pensadores franceses “Voltaire” e “Rousseau”, em plena época do Iluminismo e realizou longas viagens pela Europa, antes de se fixar no-vamente em Edimburgo. A sua obra mais importante, Tratado Sobre a Natureza Humana, foi publicada quando Hume tinha vinte e oito anos. Ele mesmo afirmou que já tivera a idéia para esse livro aos quinze anos.
— Estou a ver que tenho de me apressar.

Na época de Hume, estava muito difundida a i-déia de que existem anjos. Por anjo, entendemos uma fi-gura humana com asas. Alguma vez viste um ser desses, Sofia? — Não.
— Mas já viste uma figura humana?
— Que pergunta tão boba.
— E também já viste asas?
— Claro, mas nunca num homem.
— Segundo Hume, os “anjos” são uma idéia com-plexa. Esta idéia é constituída por duas experiências dife-rentes que não estão juntas na realidade, mas foram liga-das na fantasia humana. Por outras palavras, a idéia é falsa e deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de fazer uma arrumação em todos os nossos pensamentos e idéias. Tal como Hume afirmou: “Pegando ao acaso em qualquer volume acerca de teologia ou filosofia da escola, devemos perguntar: Contém algum raciocínio abstrato acerca da grandeza ou dos números? Não. Contém algum raciocínio sobre fatos e sobre a realidade baseado na experiência? Não. Então, lançai-o à fogueira porque só contém ilusão e aparência.”
— Bastante drástico. — Mas há o mundo, Sofi-a.Mais fresco e nítido nos seus contornos do que anteri-ormente. Hume queria regressar ao modo como uma cri-ança vê o mundo — antes de idéias e reflexões ocuparem espaço na mente. Não disseste que muitos filósofos, dos quais ouviste falar, vivem no seu próprio mundo e que o mundo real te interessa mais?
— Sim, mais ou menos isso. — Hume poderia ter dito exatamente o mesmo. Mas observemos mais exata-mente o seu raciocínio.
— Estou a ouvir.
— Hume verifica em primeiro lugar que o homem possui por um lado “impressões”, e por outro “idéias”. Por impressão, ele entende a sensação imediata da reali-dade exterior. Por idéia ele entende a recordação dessa sensação.
— Exemplos, por favor.
— Se te queimas num fogão quente, tens uma im-pressão imediata. Mais tarde, podes recordar que te quei-maste. É a isso que Hume chama idéia. A diferença é que a impressão é mais forte e viva do que a recordação poste-rior da impressão. Podes dizer que a impressão sensível é o original e a idéia ou recordação a cópia pálida. Porque, afinal, a impressão é a causa direta da idéia que é conser-vada na mente.
— Até agora estou a acompanhar bem.
— Mais adiante, Hume sublinha que tanto uma im-pressão como uma idéia podem ser ou “simples ou com-plexas”. Ainda te lembras que em Locke falamos de uma maçã. A experiência imediata de uma maçã é também uma impressão complexa. Assim, a idéia de uma maçã é tam-bém uma idéia complexa.
— Desculpa a interrupção, mas isso é muito im-portante?
— Se é! Apesar de os filósofos se terem preocupa-do com uma série de problemas aparentes, não podes a-gora desistir quando se trata de construir um raciocínio. Hume teria certamente dado razão a Descartes quanto à importância de se construir um raciocínio a partir da base.
— Para Hume, a questão é que, por vezes, pode-mos juntar coisas sem que exista um objeto composto correspondente na realidade. Assim, surgem idéias falsas de coisas que não existem na natureza. Já mencionamos os anjos. E, antes disso, já se tinha falado de crocofantes. Um outro exemplo é o Pégaso, um cavalo com asas. Em todos estes exemplos, temos de reconhecer que a nossa mente fez uma construção no vazio. Retirou as asas de uma impressão e os cavalos de outra. Todos os elementos foram percebidos uma vez e por isso entraram no palco da mente como impressões verdadeiras. No fundo, a mente não inventou nada. A mente agarrou na tesoura e na cola e construiu idéias falsas.
— Entendo. E agora também compreendo que isso pode ser importante.
— Ainda bem. Hume quer examinar cada idéia e descobrir se ela é composta de um modo que não encon-tramos na realidade. Ele pergunta: em que impressões tem origem esta idéia? Em primeiro lugar, ele tem que deter-minar de que idéias simples é composto um conceito. Deste modo, obtém um método crítico para analisar as idéias humanas. E é assim que quer organizar os nossos pensamentos e idéias.
— Tens um ou dois exemplos?
— Na época de Hume, muitas pessoas tinham uma idéia clara do paraíso. Talvez ainda te lembres que Des-cartes explicara que idéias claras e evidentes em si podiam ser uma garantia de que existe uma correspondência na realidade.
— Como já disse, não sou esquecida.
— É-nos imediatamente claro que “paraíso” é uma idéia extrema-mente complexa. Vou referir apenas alguns
elementos: no “paraíso” há um “portão de pérolas”, há “estradas de ouro” e “exércitos de anjos” — e assim por diante. Mas ainda não examinamos tudo nos seus ele-mentos particulares. Porque também “portão de pérolas”, “estradas de ouro” e “exércitos de anjos” são idéias com-postas. Só quando verificamos que a nossa idéia complexa de paraíso é constituída por idéias simples como “pé-rola”, “portão”, “estrada”, “ouro”, “figura vestida de branco” e “asa”, é que podemos perguntar se já tivemos de fato alguma vez “impressões simples” corresponden-tes.
— E temos. Mas depois montamos todas as im-pressões simples numa ilusão.
— Sim, Exato, porque quando sonhamos, usamos, por assim dizer, tesoura e cola. Mas Hume sublinha que toda a matéria, a partir da qual formamos as nossas ilu-sões, chega à nossa mente na forma de impressões sim-ples. Uma pessoa que nunca tenha visto ouro também não poderá imaginar nenhuma estrada de ouro. — Ele é muito esperto. E quanto a Descartes e a sua idéia clara de Deus?
— Hume também tem uma resposta para isso. Di-gamos que imaginamos Deus como um ser infinitamente inteligente, sábio e bom. Temos então uma idéia complexa que é constituída por algo infinitamente sábio, infinita-mente inteligente e infinitamente bom. Se nunca tivésse-mos tido a experiência da inteligência, sabedoria e bonda-de, nunca poderíamos ter esse conceito de Deus. Talvez a nossa idéia de Deus implique que ele seja um pai severo, mas justo — ou seja, uma idéia que é composta por “se-vero”, “justo” e “pai”. A partir de Hume, muitos críticos da religião apontaram precisamente para este fato: a saber, que esta idéia de Deus pode provir do modo como vía-
mos o nosso próprio pai quando éramos crianças. A idéia de um pai teria levado à idéia de um pai do céu, conforme dizem alguns.
— Talvez seja verdade. Mas eu nunca aceitei que Deus fosse forçosa-mente um homem. Em compensação, a minha mãe diz por vezes “Graças a Deusa”, ou uma coisa do gênero.
— Hume quer atacar todas as concepções e idéias que não provêm de impressões sensíveis correspondentes. Ele afirmava que queria afugentar a bagunça sem sentido que dominara durante tanto tempo o pensamento metafí-sico e o desacreditara. Mas também usamos conceitos complexos no quotidiano sem nos questionarmos se pos-suem de fato legitimidade. É o caso da idéia de um eu ou de um núcleo da personalidade. Esta idéia constituía o fundamento da filosofia de Descartes. Era a idéia clara e evidente sobre a qual edificou toda a sua filosofia.
— Espero que Hume não tenha negado que eu sou eu. Senão falava por falar.
— Sofia, se há uma coisa que eu quero que tu a-prendas neste curso de filosofia, é que não podes tirar conclusões precipitadas.
— Continua.
— Não, tu podes usar o método de Hume para a-nalisares o que entendes pelo teu “eu”.
— Então tenho de perguntar primeiro se a idéia do eu é simples ou complexa. — E a que conclusão chegas?
— Tenho de admitir que me sinto bastante com-plexa. Por exemplo, sou bastante bem humorada. É difícil decidir-me em relação a certas coisas. Além disso, posso gostar e não gostar da mesma pessoa.
— Nesse caso, a tua idéia do eu é complexa.
Um agnóstico é uma pessoa que não sabe se Deus existe. Ao receber a visita de um amigo no leito de morte, o amigo perguntou-lhe se acreditava na vida após a morte. Diz-se que Hume respondeu que também era pos-sível que um bocado de carvão atirado ao fogo não ardes-se.
— Ah...
— A resposta foi típica da sua incondicional ausên-cia de preconceitos. Ele apenas aceitava como verdade aquilo de que tinha experiências sensíveis seguras. Deixava todas as outras possibilidades abertas. Ele não rejeitou nem a crença em Cristo nem a crença em milagres. Mas em ambos os casos se trata justamente de “fé” e não de “razão”. Podes dizer que a última ligação entre fé e saber foi desfeita com a filosofia de Hume.
— Disseste que ele não negou categoricamente os milagres.
— Mas isso também não significa que tenha acredi-tado em milagres. Ele sublinha que os homens têm uma forte necessidade de acreditar naquilo a que hoje chama-ríamos “acontecimentos sobrenaturais”. Mas todos os mi-lagres que se narram aconteceram muito longe de nós ou há muito tempo. Hume recusava os milagres simplesmen-te porque não tinha visto nenhum. Mas ele também não viu que não pode haver milagres.
— Tens que ser mais preciso.
— Hume caracteriza um milagre como uma ruptura das leis da natureza. Mas também não podemos afirmar que “percebemos” as leis da natureza. Vemos que uma pedra cai no chão quando a largamos, e se não caísse também o veríamos.
— Eu chamaria a isso um milagre — ou algo so-brenatural.
— Acreditas então em duas naturezas, uma nature-za e uma “natureza” sobrenatural. Não estarás a voltar ao absurdo nebuloso dos racionalistas?
— Talvez, mas acho que a pedra cai sempre ao chão quando a largamos.
— E por quê?
— Estás a ser insistente.
— Eu não sou insistente, Sofia. Para um filósofo, nunca é errado fazer perguntas. Talvez estejamos a falar do ponto mais importante da filosofia de Hume. Respon-de agora: como é que podes ter tanta certeza de que a pe-dra cai sempre ao chão?
— Eu vi-o tantas vezes que tenho a certeza.
— Hume diria que viste muitas vezes uma pedra cair ao chão, mas nunca viste que “cairá sempre”. Nor-malmente diz-se que a pedra cai ao chão devido à lei da gravitação. Mas nós nunca vimos essa lei. Só vimos que as coisas caem.
— Não é a mesma coisa?
— Não é bem a mesma coisa. Disseste que achas que a pedra vai cair ao chão porque viste isso muitas ve-zes. É precisamente esse o problema de Hume. Estás tão habituada a que uma coisa se siga à outra que esperas que, cada vez que deixas cair uma pedra, suceda o mesmo. Deste modo, surgem idéias daquilo a que chamamos “leis constantes da natureza”.
— Ele quer dizer que se pode pensar que a pedra não caia ao chão?
— Ele estava tão convencido como tu de que a pe-dra vai cair ao chão sempre, mas diz que não percebeu
“porque é que” é assim.
— Não nos afastamos das crianças e das flores?
— Não, muito pelo contrário. Podes consultar as crianças como testemunhas para as asserções de Hume. Quem te parece que ficaria mais surpreendido se uma pe-dra ficasse no ar uma ou duas horas — tu ou uma criança de um ano?
— Eu ficaria mais surpreendida.
— E por que, Sofia?
— Provavelmente porque eu compreendo melhor do que uma criança pequena que isso não seria natural.
— E porque é que a criança não entenderia?
— Porque ainda não aprendeu o que é a natureza.
— Ou porque a natureza não se tornou para ela uma coisa habitual.
— Eu percebo o que queres dizer. Hume queria le-var as pessoas a tomarem mais atenção.
— Agora, dou-te a seguinte tarefa: se tu e uma cri-ança pequena vêem juntas um grande ilusionista — que, por exemplo, põe alguma coisa suspensa no ar —, qual das duas se divertiria mais durante o espetáculo?
— Eu diria que era eu.
— E por quê? — Porque eu compreenderia o que estava errado.
— Está bem. A criança não se alegra por ver as leis da natureza violadas porque ainda não as conhece.
— Também podes dizê-lo dessa maneira.
— Ainda estamos a tratar do cerne da filosofia em-pírica de Hume. Ele teria acrescentado que a criança ainda não se tornou escrava das suas expectativas. A criança pequena tem menos preconceitos que tu. Resta saber se a criança não é também o maior filósofo. Uma criança não
tem opiniões preconcebidas. E isso, minha querida Sofia, é a primeira virtude em filosofia. A criança vive o mundo tal como ele é, sem acrescentar às coisas mais do que o que vê.
— Eu nunca gosto de ter preconceitos.
— Quando Hume trata do poder do hábito, refe-re-se à chamada “lei da causalidade”. Esta lei diz que tudo o que acontece tem que ter uma causa. Hume usa como exemplo duas bolas de bilhar. Se lanças uma bola de bilhar preta contra uma bola branca parada, o que é que aconte-ce à bola branca?
— Quando a preta toca na branca, esta move-se.
— Sim, e porque é que faz isso?
— Porque foi atingida pela bola preta.
— Neste caso, dizemos que o choque da bola preta é a “causa” do movimento da bola branca. Mas não po-demos esquecer que só podemos dizer que uma coisa é totalmente certa quando a experienciamos.
— Eu já experienciei isso várias vezes. Jorunn tem uma mesa de bilhar na cave.
— Hume afirma que tu apenas viste que a bola pre-ta atinge a branca e que a branca rola pela mesa. Tu não conheceste pela experiência a causa pela qual a bola bran-ca rola. Conheceste pela experiência que um aconteci-mento se segue ao outro temporalmente, mas não que o segundo acontecimento sucede “por causa” do primeiro.
— Isso não é um pouco sofístico?
— Não, é importante. Hume sublinha que a expec-tativa de que uma coisa se siga à outra não está nos obje-tos, mas na nossa consciência. Uma criança pequena não teria esbugalhado os olhos se uma bola tivesse atingido a outra e ambas ficassem totalmente imóveis. Quando fa-
lamos de “leis da natureza”, ou de “causa e efeito”, esta-mos na realidade a falar dos hábitos humanos e não do que é racional. As leis da natureza não são nem racionais nem irracionais, “são”, simplesmente. A expectativa de a bola de bilhar branca ser posta em movimento quando a preta choca contra ela, não é uma idéia inata. Nós nasce-mos sem quaisquer expectativas sobre o mundo ou sobre o comportamento das coisas. O mundo é como é e nós apreendemo-lo progressivamente pela experiência.
— Tenho de novo a sensação de que isso não é as-sim tão importante.
— Pode ser importante se as nossas expectativas nos levam a conclusões precipitadas.
Hume não contesta que há leis da natureza cons-tantes, mas uma vez que não podemos ter experiência das leis da natureza, podemos tirar as conclusões erradas.
— Podes dar-me exemplos?
— O fato de eu ver um conjunto de cavalos pretos não significa que todos os cavalos sejam pretos.
— Tens toda a razão.
— E mesmo que durante toda a minha vida tenha visto apenas corvos pretos não significa que não haja corvos brancos. Para um filósofo e para um cientista, po-de ser importante provar que não existem corvos brancos. Quase podes dizer que a caça ao corvo branco é a tarefa mais importante da ciência.
— Compreendo.
— Quando se trata da relação de causa e efeito, muitos imaginam o relâmpago como causa do trovão, porque o trovão se segue sempre ao relâmpago.
Este exemplo não é muito diferente do das bolas de bilhar. Mas será o relâmpago realmente a causa do trovão? Não, na realidade relampeja e troveja exatamente ao mesmo tempo.
— Porque relâmpago e trovão são efeitos de uma descarga elétrica. Mesmo que vejamos sempre que o tro-vão se segue ao relâmpago, não significa que o relâmpago seja a causa do trovão. Na realidade há um terceiro fator que provoca os dois.
— Compreendo.
— Um empirista do nosso século, “Bertrand Rus-sell”, deu um exemplo um pouco mais grotesco: um pin-tinho que tem a experiência de receber todos os dias co-mida quando o avicultor passa pela capoeira, tirará a con-clusão de que há uma relação entre a passagem do avicul-tor pela capoeira e a comida no comedouro.
— Mas um dia o pintinho não é alimentado, pois não?
— Um dia, o avicultor passa pela capoeira e tor-ce-lhe o pescoço.
— Que horror!
— O fato de as coisas se seguirem umas às outras no tempo não significa necessariamente que exista um nexo causal. Impedir os homens de tirar conclusões preci-pitadas é uma das tarefas mais importantes da filosofia. Além disso, conclusões precipitadas podem levar a muitas formas de superstição.
— Como assim?
— Vês um gato preto andar pela rua. Um pouco mais tarde nesse dia tropeças e partes um braço. Mas isso não significa que haja um nexo causal entre os dois acon-tecimentos. Em contextos científicos também é impor-tante não se tirar conclusões muito rápidas. Apesar de muitas pessoas ficarem sãs depois de terem tomado um
determinado remédio, isso não significa que o remédio as curou. Por isso, precisamos de um grande grupo de con-trolo de pessoas que acreditam receber o mesmo remédio quando na realidade recebem farinha com água. Se estas pessoas são curadas, tem de haver um terceiro fator que as cura — por exemplo, a confiança na eficácia deste remé-dio.
— Acho que começo a perceber o que é o empi-rismo.
— Em relação à ética e à moral, Hume também se opôs ao pensamento racionalista. Os racionalistas acha-vam que era inerente à razão humana a distinção entre o justo e o injusto. Esta concepção do direito natural apare-ceu-nos em muitos filósofos de Sócrates a Locke. Mas Hume não acredita que seja a razão a determinar aquilo que dizemos e fazemos.
— Então é o quê?
— Os nossos “sentimentos”.
Quando decides ajudar um necessitado, são os teus sentimentos que te levam a isso, não a tua razão.
— E se eu não tiver vontade nenhuma de ajudar?
— Também nesse caso tudo depende dos teus sen-timentos. Não ajudar um necessitado não é racional nem irracional, mas pode ser maldoso.
— Mas tem de haver um limite algures. Toda a gente “sabe” que não é correto matar uma pessoa.
— Segundo Hume, todos os homens têm sensibili-dade para o bem-estar dos outros. Temos, portanto, uma capacidade de compaixão. Mas nada disso tem a ver com razão.
— Não sei se estou de acordo.
— Nem sempre é assim tão irracional assassinar
uma pessoa, Sofia. Quando se quer atingir alguma coisa, pode até ser uma grande ajuda.
— Isso é demais! Eu discordo!
— Nesse caso, podes tentar explicar-me porque é que não se deve matar uma pessoa importuna.
— A outra pessoa também ama a vida. Por isso não a podes matar.
— Isso é uma demonstração lógica?
— Não faço idéia.
— O que tu fizeste foi, de uma “frase descritiva” — “a outra pessoa também ama a vida” deduzir uma “frase normativa” — “por isso não a podes matar”. Do ponto de vista puramente lógico, isso é um absurdo. Poderias da mesma forma deduzir, do fato de muitas pessoas fugirem aos impostos, que tu também devias fazer o mesmo. Hu-me explicou que nunca se pode deduzir “proposições de dever” de “proposições de realidade”. Contudo, isso su-cede com muita freqüência — inclusivamente em artigos de jornais, programas de partidos e discursos no parla-mento. Queres que dê alguns exemplos?
— Sim.
— “Cada vez mais pessoas preferem viajar de avião. Por isso, é preciso construir mais aeroportos.” Achas este argumento convincente?
— Não, isso é um absurdo. Temos que pensar também no ambiente. Eu acho que devíamos antes cons-truir novas vias férreas.
— Ou então, diz-se: “a ampliação dos campos pe-trolíferos aumentará o nível de vida do país em dez por cento. Por isso, temos que explorar o mais depressa pos-sível novos campos petrolíferos”.
— Que absurdo! Nesse caso, também temos que
pensar no ambiente. Além disso, o nível de vida na No-ruega já é suficientemente elevado.
— Por vezes, diz-se também: “Esta lei foi delibera-da pelo parlamento, e por isso todos os cidadãos do país têm que agir de acordo com ela”. Mas muitas vezes, seguir essas leis vai contra as convicções mais profundas de um povo.
— Compreendo.
— Verificamos, portanto, que não podemos provar com a nossa razão o modo como devemos proceder. Um comportamento consciente da responsabilidade não signi-fica que temos de apurar a nossa razão, mas que temos de apurar os nossos sentimentos pelo bem— estar dos ou-tros. Para Hume, não era irracional preferir a destruição de todo o mundo a uma arranhadela no dedo.
— Que afirmação horrível!
— É ainda mais horrível se baralhares as cartas. Sa-bes que os nazis assassinaram milhões de judeus. O que é que dirias que não estava certo nestes homens, a razão ou os sentimentos?
— Antes de mais, alguma coisa estava errada com os seus sentimentos.
— Muitos deles tinham uma idéia muito clara do que estavam a fazer. Por detrás das resoluções sem senti-mentos pode justamente ocultar-se um calculismo extre-mamente frio. Depois da guerra, muitos nazis foram con-denados, mas não por terem sido irracionais. Foram con-denados pela sua crueldade. Sucede também que pessoas que não sabem bem o que estão a fazer são absolvidas apesar do seu crime. Dizemos que “não estão em plena posse das faculdades mentais no momento do crime” ou “não estão em plena posse das faculdades por tempo ili-
mitado”. Mas ainda ninguém foi absolvido por falta de sentimentos.
— Pois não, era melhor!
— Mas não precisamos sequer de recorrer aos e-xemplos mais grotescos. Quando, após uma cheia, muitos homens precisam de ajuda, são os nossos sentimentos que decidem se intervimos. Se nós fôssemos insensíveis e dei-xássemos esta decisão à “razão fria”, talvez refletíssemos que é bom se alguns milhões de homens morressem, num mundo que sofre já de excesso demográfico.
— Fico furiosa com o fato de alguém poder pensar assim.
— E nesse caso não é a tua razão que fica furiosa.
— Obrigada, já chega. “George Berkeley” era um bispo irlandês que viveu entre 1685 e 1753 — começou Alberto, e em segui-da calou-se por muito tempo.
— Berkeley era um bispo irlandês... — Sofia reto-mou o fio.
— Mas também era filósofo...
— Sim?
— Ele acreditava que a filosofia e a ciência do seu tempo constituíam uma ameaça para a concepção cristã do mundo. Além disso, via o materialismo, cada vez mais difundido, como uma ameaça à crença cristã de que Deus cria e mantém vivas todas as coisas na natureza.
— Sim?
— Ao mesmo tempo Berkeley era um dos empiris-tas mais coerentes.
— Ele achava que não podemos saber mais acerca do mundo do que o que sentimos?
— Não apenas isso. Berkeley achava que as coisas no mundo são exatamente como nós as sentimos, mas não são “coisas”.
— Tens de explicar isso melhor.
— Ainda te lembras que Locke tinha apontado para o fato de nós não podermos dizer nada sobre as “quali-dades secundárias” das coisas. Não podemos afirmar que uma maçã é verde e ácida. Somos “nós” que sentimos essa maçã desse modo. Mas Locke dissera também que as “qualidades primárias” — como solidez, peso e gravidade — pertencem de fato à realidade exterior à nossa volta. Esta realidade exterior tem, portanto, uma “substância” física.
— Eu continuo a ter uma memória boa. E pensava que Locke tinha apontado uma diferença importante.
— Ah, Sofia, se fosse só isso!
— Continua!
— Para Locke — como para Descartes e Espinosa — o mundo físico era uma realidade.
— Sim?
— E é precisamente isso que Berkeley põe em dú-vida e para isso ele recorre a um empirismo conseqüente. Ele afirma que a única coisa que existe é o que nós senti-mos. Mas não sentimos “matéria” ou “substância”. Não sentimos as coisas como “coisas” palpáveis. Quando pressupomos que aquilo que sentimos tem uma “substân-cia” subjacente, estamos a tirar conclusões precipitadas. Não temos nenhuma prova empírica para essa afirmação.
— Que absurdo! Observa isto. Sofia bateu com o punho na mesa.
— Au! — exclamou, tal foi a força com que bateu — Isto não é uma prova de que a mesa é uma mesa ver-dadeira e é matéria ou substância?
— O que é que sentiste?
— Uma coisa dura.
— Tiveste uma clara percepção sensível de uma coisa dura, mas não sentiste a verdadeira “matéria” da mesa. Da mesma forma, podes sonhar que bates em algo duro, mas no teu sonho não há nada duro, pois não?
— No sonho não.
— Além disso, uma pessoa pode ser persuadida de que “sente” todas as coisas. Uma pessoa pode ser hipno-tizada e sentir calor e frio, carícias suaves e socos duros.
— Mas se não era a mesa que era dura, o que me levou a senti-la?
— Segundo Berkeley, é a “vontade” ou “espírito”. Ele também achava que todas as nossas idéias têm uma
causa exterior à nossa consciência, mas que esta causa não é de natureza material. Ela é, segundo Berkeley, espiritual.
Sofia voltou a roer as unhas. Alberto prosseguiu.
— Segundo Berkeley, a minha alma pode ser causa dos meus pensa-mentos — como quando sonho —, mas só uma outra vontade ou espírito pode ser causa das idéias que constituem o nosso mundo material.
Tudo vem do espírito, “que realiza tudo em tudo e através do qual tudo subsiste”, afirma ele.
— E que espírito é esse?
— Berkeley está naturalmente a pensar em Deus. Ele achava que nós poderíamos afirmar que sentimos a existência de Deus mais clara-mente do que a de qualquer homem.
— Mas não é óbvio que existimos?
— Bom... tudo o que vemos e sentimos é, segundo Berkeley, um efeito do poder de Deus. É que Deus está intimamente presente na nossa consciência e provoca nela toda a multiplicidade de idéias e sensações às quais esta-mos constantemente expostos. Toda a natureza à nossa volta e toda a nossa existência residem em Deus. É a úni-ca causa de tudo o que existe.
— Para dizer a verdade, estou espantada.
— “Ser ou não ser” não é toda a questão. A questão é também “o que” nós somos. Somos realmente pessoas de carne e osso? O nosso mundo é constituído por coisas reais — ou estamos apenas rodeados pela consciência? Sofia começou mais uma vez a roer as unhas. Alberto prosseguiu:
— Berkeley não põe apenas a realidade material em dúvida. Ele duvida também de que o tempo e o espaço tenham uma existência absoluta ou autônoma. Mesmo a
experiência do tempo e do espaço pode residir apenas na nossa consciência. Uma ou duas semanas para nós não têm de ser uma ou duas semanas para Deus...
— Disseste que para Berkeley este espírito, no qual tudo repousa, é o Deus cristão.
— Sim, foi o que eu disse. Mas para nós...
— Sim?
— ...para nós esta vontade ou espírito que realiza tudo pode ser também o pai de Hilde.
Sofia emudeceu. A sua expressão parecia um grande ponto de inter-rogação. E, simultaneamente, uma coisa tornou-se clara.
— Acreditas nisso? — perguntou.
— Não consigo ver nenhuma outra possibilidade. Esta é talvez a única explicação possível para tudo o que presenciamos. Estou a pensar nos diversos postais e notí-cias que surgiram nos mais diversos locais. Estou a pensar no fato de Hermes falar de repente e estou a pensar nos meus lapsos involuntários.
— Eu...
— A idéia de eu te ter chamado Sofia, Hilde! Eu sempre soube que tu não te chamavas Sofia.
— O que estás a dizer? Estás a enlouquecer de vez!
— Sim, tudo gira e gira, minha filha. Como um planeta que gira vertiginosamente à volta de um sol in-candescente.
— E esse sol é o pai de Hilde?
— Podes dizer isso.