terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Ex-primeiro-ministro francês critica o capitalismo

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012


Em entrevista ao jornal francês Le Monde, o ex-primeiro-ministro socialista da França, Michel Roccard, 82 anos, critica a atual sociedade capitalista e prega uma nova sociedade para o futuro:
"Uma sociedade menos mercantil, menos sujeita à competição, menos entregue à cobiça, organizada em função do tempo livro. Costumo dizer que os melhores momentos da vida são o namoro, o nascimento de um filho, as boas realizações artísticas ou profissionais, as façanhas esportivas, as viagens maravilhosas, ou muitas outras coisas; note que nenhuma destas satisfações está ligada à acumulação de dinheiro. Em síntese, concebo o mundo futuro como um mundo de práticas culturais ou esportivas intensas, de abundância de tempo para dedicar à família, de atenção para os filhos, e de voltar a cultivar as relaçoes de amizade".
A entrevista foi reproduzida, em castelhano, na lista argentina Reconquista Popular, por Néstor Gorojovsky, nmgoro@gmail.com.

Como enfrentar a sexta extinção em massa

27.02.12 - Mundo

Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital

Referimo-nos anteriormente ao fato de o ser humano, nos últimos tempos, ter inaugurado uma nova era geológica –o antropoceno- era em que ele comparece como a grande ameaça à biosfera e o eventual exterminador de sua própria civilização. Há muito que biólogos e cosmólogos estão advertindo a humanidade de que o nível de nossa agressiva intervenção nos processos naturais está acelerando enormemente a sexta extinção em massa de espécies de seres vivos. Ela já está em curso há alguns milhares de anos. Estas extinções, misteriosamente, pertencem ao processo cosmogênico da Terra. Nos últimos 540 milhões de anos ela conheceu cinco grandes extinções em massa, praticamente uma em cada cem milhões de anos, exterminando grande parte da vida no mar e na terra. A última ocorreu há 65 milhões de anos quando foram dizimados os dinossauros entre outros.

Até agora todas as extinções eram ocasionadas pelas forças do próprio universo e da Terra a exemplo da queda de meteoros rasantes ou de convulsões climáticas. A sexta está sendo acelerada pelo próprio ser humano. Sem a presença dele, uma espécie desaparecia a cada cinco anos. Agora, por causa de nossa agressividade industrialista e consumista, multiplicamos a extinção em cem mil vezes, diz-nos o cosmólogo Brian Swimme em entrevista recente no Enlighten Next Magazin, n.19. Os dados são estarrecedores: Paul Ehrlich, professor de ecologia em Standford calcula em 250.000 espécies exterminadas por ano, enquanto Edward O. Wilson de Harvard dá números mais baixos, entre 27.000 e 100.000 espécies por ano (R. Barbault, Ecologia geral 2011, p.318).

O ecólogo E. Goldsmith da Universidade da Geórgia afirma que a humanidade ao tornar o mundo cada vez mais empobrecido, degradado e menos capaz de sustentar a vida, tem revertido em três milhões de anos o processo da evolução. O pior é que não nos damos conta desta prática devastadora nem estamos preparados para avaliar o que significa uma extinção em massa. Ela significa simplesmente a destruição das bases ecológicas da vida na Terra e a eventual interrupção de nosso ensaio civilizatório e quiçá até de nossa própria espécie. Thomas Berry, o pai da ecologia americana, escreveu: "Nossas tradições éticas sabem lidar com o suicídio, o homicídio e mesmo com o genocídio, mas não sabem lidar com o biocídio e o geocídio”(Our Way into the Future, 1990 p.104).

Podemos desacelerar a sexta extinção em massa já que somos seus principais causadores? Podemos e devemos. Um bom sinal é que estamos despertando a consciência de nossas origens há 13,7 bilhões de anos e de nossa responsabilidade pelo futuro da vida. É o universo que suscita tudo isso em nós porque está a nosso favor e não contra nós. Mas ele pede a nossa cooperação já que somos os maiores causadores de tantos danos. Agora é a hora de despertar enquanto há tempo.

O primeiro que importa fazer é renovar o pacto natural entre Terra e Humanidade. A Terra nos dá tudo o que precisamos. No pacto, a nossa retribuição deve ser o cuidado e o respeito pelos limites da Terra. Mas, ingratos, lhe devolvemos com chutes, facadas, bombas e práticas ecocidas e biocidas.

O segundo é reforçar a reciprocidade ou a mutualidade: buscar aquela relação pela qual entramos em sintonia com os dinamismos dos ecossistemas, usando-os racionalmente, devolvendo-lhes a vitalidade e garantindo-lhes sustentabilidade. Para isso necessitamos nos reinventar como espécie que se preocupa com as demais espécies e aprende a conviver com toda a comunidade de vida. Devemos ser mais cooperativos que competitivos, ter mais cuidado que vontade de submeter e reconhecer e respeitar o valor intrínseco de cada ser.

O terceiro é viver a compaixão não só entre os humanos, mas para com todos os seres, compaixão como forma de amor e cuidado. A partir de agora eles dependem de nós se vão continuar a viver ou se serão condenados a desaparecer. Precisamos deixar para trás o paradigma de dominação que reforça a extinção em massa e viver aquele do cuidado e do respeito que preserva e prolonga a vida. No meio do antropoceno, urge inaugurar a era ecozóica que coloca o ecológico no centro. Só assim há esperança de salvar nossa civilização e de permitir a continuidade de nosso planeta vivo.

[Leonardo Boff é autor com Mark Hathaway de O Tao da Libertação: explorando a ecologia da transformação, Vozes 2011].

Bancada evangélica faz tempestade com copo d’água

27.02.12 - Brasil

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Adital

A bancada evangélica no Congresso Nacional está fazendo tempestade com um copo d’água. Ficou irada por causa de uma suposta declaração do ministro Gilberto Carvalho. Segundo o site evangélico Gospelprime o motivo da tempestade teria sido uma declaração do ministro no Fórum Social Mundial, afirmando que o PT "precisa disputar as ideologias da classe C com os evangélicos, já que os pastores conseguem controlar a opinião desse grupo”.

Tal declaração mexeu com os ânimos de políticos evangélicos, alguns deles perdendo até mesmo a compostura e usando em seus pronunciamentos termos vulgares para identificar o ministro. Certos pastores, conhecidos por suas histerias na mídia, também perderam a compostura. Nesta hora se esqueceram de que a vulgaridade e a agressividade não condizem com a identidade dos discípulos de Cristo (Mt 5,21-26). Assim terminaram por "aposentar” o Evangelho no qual dizem acreditar. Ambos, políticos e pastores evangélicos, demonstraram a incapacidade de dialogar com o diferente numa sociedade pluralista e democrática. Revelaram com clareza intolerância, arrogância e fundamentalismo. Diante de pessoas que discordam de suas práticas ficam irritados e perdem a compostura.

Vamos partir do pressuposto de que o ministro tenha realmente dito a frase acima. No meu entender disse o óbvio. E por quê? Em primeiro lugar porque "disputar ideologias” numa sociedade democrática é normal, mesmo quando se trata de ideologias religiosas. Líderes religiosos não podem pretender que num país democrático e pluralista como o Brasil suas ideologias, suas posições e suas práticas não sejam questionadas, inclusive por membros do governo. Por que eles têm o direito de questionar o governo sobre determinadas questões e não aceitam que o governo os questione? Isso não faz parte do jogo democrático num país de diversidade cultural e religiosa? Aliás, diga-se de passagem, e com toda sinceridade, a praxe de certas lideranças evangélicas é agressiva, autoritária e desrespeitosa, como se presenciou recentemente em uma audiência pública sobre o projeto de lei que propõe punir a homofobia. Lideranças evangélicas que falaram na audiência deram uma demonstração de histeria descabida, agredindo violentamente os que pensam diferente deles. No pronunciamento deles faltou educação, civilidade e respeito. Queriam impor a todo custo impor suas ideias, usando da violência da palavra.

Esta mesma prática violenta e agressiva é usada pela maioria das lideranças evangélicas na disputa com outras igrejas e religiões para arrebanhar fiéis. Basta ligar a televisão e ver os programas religiosos evangélicos para perceber a arrogância e a pretensão com que falam. Falta humildade, virtude evangélica sem a qual ninguém é justificado (Lc 18,14). Além do mais há práticas agressivas de desrespeito às crenças dos outros. Tais práticas incluem gestos absurdos como o chute de imagens católicas e a invasão de tribos indígenas para destruir seus lugares e símbolos sagrados, chegando ao cúmulo de afirmar que o urucum, tinta usada pelos indígenas para pintar seus corpos, é a "bosta do diabo”.

É visível também a arrogância das lideranças evangélicas no controle dos fiéis. No passado essa prática arrogante foi adotada pela Igreja Católica, a qual fazia uso do medo do inferno, de excomunhões, índices de livros proibidos e até da Inquisição para tentar a todo custo controlar seus fiéis. Hoje ainda existem padres e bispos católicos usando de métodos parecidos, mas em número bem reduzido. Enquanto isso, entre as lideranças evangélicas, a prática do controle de fiéis tem se difundido muito nos últimos anos. Há exceções, mas a maioria deles usa desses truques para "amansar as ovelhas”.

Infelizmente boa parte dos pastores não tem formação teológica e bíblica suficiente. Conhece somente uma tradução portuguesa obsoleta da Bíblia, aquela antiga de João Ferreira de Almeida, escrita numa língua que não é mais falada por ninguém. Além disso, faz uma interpretação literal e fundamentalista da Palavra e, a partir disso, incute medo e gera obsessão nos crentes. Sem falar nas práticas de charlatanismo bem visíveis, especialmente em alguns programas televisivos, em que pares de meias, óleos, livros e objetos "milagrosos” são vendidos a preço de ouro. O marketing e o poder da mídia são usados para forçar os fiéis a adquirirem produtos ou a contribuir financeiramente com as igrejas.

Não vejo, portanto, porque tanto alarde a partir da fala do ministro. Penso que a bancada evangélica deveria se ocupar de outras coisas. Enquanto cristãos deveriam saber que o anúncio do Evangelho não se dá através de palavreados bonitos ou através de sermões histéricos. O anúncio da Boa Notícia se dá através do testemunho dos crentes. Jesus enviou seus discípulos para serem testemunhas dele nos "extremos da terra” (At 1,8) e não para serem lobistas de igrejas nos centros de poder. Note-se bem o detalhe: testemunhas nos "extremos da terra”.

A partir disso, a bancada evangélica deveria, por exemplo, cuidar melhor da elaboração de leis que pudessem beneficiar toda a sociedade brasileira, particularmente os pobres e excluídos, e não apenas os membros de suas igrejas. Gostaria de ver a bancada evangélica comprometida publicamente com a ética na aprovação de leis relacionadas ao salário mínimo, à saúde, à educação, ao desenvolvimento sustentável, aos direitos dos mais desprotegidos e das minorias de nossa sociedade. Gostaria de vê-la posicionando-se claramente ao lado dos indefesos, dos atuais "leprosos” da nossa sociedade, assim como fez Jesus no seu tempo e na sua terra. Desejaria vê-la exigindo melhores explicações para determinadas questões obscuras que envolvem inclusive pessoas de suas igrejas. A mídia tem noticiado casos de enriquecimento rápido de igrejas e de suas lideranças, aumento de patrimônio duvidoso, remessa ilegal de dinheiro para o exterior, aquisição rápida de redes de emissoras de televisão e de rádio, sem que fique clara a procedência do dinheiro.

A bancada evangélica seria mais cristã se, por exemplo, ao invés de brigar com o ministro, se posicionasse claramente pela punição de corruptos, de políticos de trajetória duvidosa, com vários processos na Justiça. Seria mais cristã se por ocasião da votação pela cassação de um colega corrupto manifestasse publicamente seu voto. Não vi tal posicionamento dos políticos evangélicos na recente votação pelo impeachment de uma deputada. Ao que tudo indica também eles engordaram a lista dos que pelo voto secreto absolveram a colega que foi pega com a "mão na botija”. Sem falar dos posicionamentos ambíguos de parlamentares evangélicos em situações como a dos "mensalões”. Segundo a mídia alguns deles estiveram diretamente envolvidos nesses escândalos. Falta-lhes acolher o mandato evangélico: "Diga apenas ‘sim’ quando é ‘sim’ e ‘não’ quando é ‘não’. O que você disser além disso, vem do Maligno” (Mt 5,37).

Procuro seguir com assiduidade as notícias do mundo político, acompanhando inclusive as TVs do Senado e da Câmara. Não tenho visto posicionamento firmes da bancada evangélica pedindo o afastamento e até a punição de políticos, inclusive evangélicos, processados por formação de quadrilha armada, de corrupção passiva, de desvio de dinheiro público e de lavagem de bens. Há, pois, muita coisa a ser esclarecida pela bancada evangélica e a irritação contra a fala do ministro não deve ser usada para jogar "para debaixo do tapete” todas essas interrogações que permanecem sem respostas.

O povo brasileiro está crescendo no conhecimento e na consciência crítica. Evangélicos, protestantes e católicos precisam se dar conta dessa realidade. Passou o tempo da aceitação passiva da manipulação religiosa. Estamos em tempos de trânsito religioso e de relativização da fé. Dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), realizada no ano passado pelo IBGE, revelaram que aumenta o número dos crentes que estão cortando os vínculos com suas igrejas. Este aumento dos cristãos sem igreja afeta também os evangélicos, os quais até bem pouco tempo atrás não sofriam tanto este impacto. E ao se verificar as razões do corte dos vínculos percebe-se com nitidez que as pessoas estão cansadas de tanto palavreado. Elas querem das lideranças de suas igrejas mais coisas concretas, mais respeito pela autonomia e pela liberdade, mais caridade, mais fidelidade real ao Evangelho. Polêmicas estéreis não interessam mais às pessoas sérias que ainda acreditam. Elas estão cansadas de tanto falatório inútil e oportunista.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

"A saúde é direito de todos e dever do Estado.” (Art. 196 da CF/1988)

Fraternidade e Saúde pública: um grande desafio Imprimir E-mail
Escrito por Gilvander Moreira
Sexta, 24 de Fevereiro de 2012


Desde 1963, há 49 anos, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), anualmente, durante os 40 dias da quaresma, promove a Campanha da Fraternidade (CF), que tem colocado para estudo, reflexão e ação assuntos que são grandes desafios – clamores ensurdecedores - no seio da sociedade. O Tema da CF/2012 é "Fraternidade e Saúde pública"; o lema, "Que a saúde se difunda sobre a terra!" (Eclo 38,8). Somos convidados a conhecer as entranhas da realidade do SUS, visitar pronto-socorros, ouvir as pessoas doentes que esperam muito para fazer exames e conseguir uma vaga para cirurgia. É hora de ouvirmos o apelo de 150 milhões de brasileiros que só tem como rara possibilidade de acessar saúde pública o SUS.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu a saúde não como “ausência de doenças”, mas como “um estado de completo bem-estar físico, mental, social e espiritual” (1). Levada a sério, esta definição coloca em questão a base da medicina moderna. Em nossos hospitais e clínicas, quantos médicos e enfermeiros compreendem a saúde de modo integral? Onde as pessoas são atendidas, visando a saúde não só física, mas também mental, social e espiritual? A medicina de órgãos, por si só, é incapaz de resgatar saúde integral.

A saúde depende também de paz interior, de equilíbrio entre a pessoa e o seu ambiente social e, finalmente, da relação entre o ser humano e o universo. Toda doença tem conexão com a força vital e espiritual do universo. Os gregos ensinavam que a “simpatia” entre as partes do corpo e os elementos da natureza fará com que se possa encontrar remédio para tudo. Basta colaborar com a natureza. Povos indígenas, nas margens do lago Titicaca, no altiplano peruano, dizem que todo ser humano tem três almas: a física, a interior e uma que nos liga ao universo. A pessoa fica doente quando “perde” uma destas almas. A cura consiste em recuperar a alma perdida.

Infelizmente, o cristianismo incorporou da cultura ocidental uma visão dualista que fragmenta corpo e alma, matéria e espírito. Privilegia, assim, um racionalismo abstrato que faz da religião mais um sistema de crenças intelectuais do que um caminho de amor e integração. Os evangelhos da Bíblia relatam que Jesus enviou os seus discípulos e discípulas para anunciar o Reino de Deus, curando as doenças e expulsando o mal que tomava conta das pessoas. O galileu de Nazaré, pela ternura e solidariedade, curou paralíticos, perdoou pecados para que as pessoas doentes se sentissem integradas com seu eu mais profundo, com Deus, um mistério de amor que nos envolve, com a comunidade e com toda a biodiversidade. O universo tem a cura para toda doença. A saúde mais profunda está escondida no fundo do coração de todo ser humano. Unindo as cordas do universo e do coração reencontramos saúde e salvação.

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) afirma: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Art. 196). No caso de crianças e adolescentes, o direito à saúde deve ser assegurado com "absoluta prioridade” (Art. 227).

Temos, no Brasil, dois sistemas de saúde: a) um público, o SUS, para os pobres; b) outro privado, o dos planos de saúde, que atende 25% do povo, cerca de 50 milhões de pessoas. Milhares de pessoas pobres se sujeitam a continuar empregadas em grandes empresas porque estas oferecem plano privado de saúde. Ou seja, o caos no SUS leva empresas a arrochar salários, pois seguram trabalhadores ao ofertarem planos privados de saúde.

Na luta por saúde pública, tivemos várias conquistas: a) a criação e organização do SUS, que é um projeto bom, mas sobrevive desde seu nascimento na UTI, pública; b) a criação do Programa de Saúde da Família (PSF), com ênfase na prevenção, inspiração vinda do sistema de saúde de Cuba; c) o combate contra a AIDS, elogiado pela OMS. Mas a CF/88 está sendo desrespeitada cotidianamente, pois os lindos artigos 196 e 227 são pisoteados, isso sem contar o princípio do respeito à dignidade humana e tantos outros prescritos na nossa Carta Maior.

Após 11 anos de morosa tramitação no Congresso Nacional, a Emenda Constitucional 29, que regulamenta os investimentos do Estado em saúde pública, foi sancionada pela presidenta Dilma, em 16/01/2012. Em saúde pública, a União deverá investir de 6 a 7% do orçamento (PIB), mas está investindo apenas 3,5% - Cuba investe 18%; os estados deverão investir pelo menos 12% e os municípios, 15%. Mas a maioria dos estados e dos municípios não investe ainda os valores fixados na Emenda 29.

Especialista em Saúde e professora da UFRJ, Ligia Bahia, denuncia com veemência: “Aprovar a Emenda 29 sem que a União tenha que dispor de mais recursos para a Saúde é uma tragédia. Do jeito que aprovaram, a Saúde vai ter mais R$3 bilhões; se fossem os 10% da receita da União, o aporte seria de R$40 bilhões. Foi bom terem definido o que são gastos com Saúde, mas os R$3 bilhões a mais não terão grande impacto”. Para ela, o SUS padece por conta do subfinanciamento e dos problemas de gestão. “Isso caracteriza o nosso subdesenvolvimento”, diz Ligia, que vê o veto ao artigo que determinava a atualização automática dos recursos da Saúde quando houvesse revisão do PIB como "pão-durismo" do governo federal.

Grande parte das doenças que afetam a vida das pessoas tem como causa a injustiça social, o capitalismo, a falta de reforma agrária, falta de apoio à agricultura familiar que produz alimentos na linha da agroecologia, as terceirizações no mundo do trabalho – privatização na prática -, a “automóvelatria”, a “motolatria”, o escasso investimento em políticas públicas, a precarização da educação pública, a falta de ética nos programas televisivos e a devastação da biodiversidade. Tudo isso feito propositalmente para que uma minoria lucre, lucre, lucre e a maioria padeça estresse, depressão, câncer e obesidade, que no último caso já atinge 15% da população.

A Pastoral da Criança, com mais de 140 mil mulheres voluntárias acompanhando gestantes e crianças recém-nascidas com soro caseiro e multimistura, tem reduzido muito a mortalidade infantil, mas hoje o tráfico de drogas – maconha, cocaína, crack – está causando uma verdadeira mortandade de adolescentes e jovens, mais de 30 mil por ano, mais de 300 mil nos últimos 10 anos.

No nosso artigo “VI FÓRUM SOCIAL MUNDIAL: Um mundo democrático-participativo e socialista em construção”(2) de fevereiro de 2006, consta o seguinte: “Na Venezuela, atualmente, existem cerca de 20 mil médicos cubanos alavacando uma revolução no sistema público de saúde. São responsáveis pelo atendimento primário da população, algo parecido com o médico de família. Estão nas favelas e bairros pobres; lá vivem e atendem com competência e dedicação os pobres. Fomos ao encontro de alguns deles. Três jovens camelôs dizem com veemência: "Por mais de 50 anos os médicos venezuelanos recém-formados se recusaram a ir para o interior, para os bairros, para a periferia. Só queriam ficar na capital, ganhar dinheiro às custas da dor. Agora, com Hugo Chávez, eles tiveram sua chance de ajudar o povo. Não quiseram. Então foi preciso apelar para a solidariedade. Vieram os médicos de Cuba e estamos tendo acesso à saúde nos lugares mais distantes e pobres".

Em conversa com duas médicas e um médico, em favelas de Caracas, ouvimos, entre tantas coisas, o seguinte: “Não viemos aqui para a Venezuela para ganhar dinheiro, mas por amor ao próximo. Estudamos medicina para cuidar das pessoas, nunca para ganhar dinheiro. Quando terminamos o curso de medicina em Cuba, fazemos um juramento de cuidar sempre da vida ameaçada em Cuba e em qualquer país do mundo. Quando se é de esquerda, socialista, somos mais cristãos, pensamos mais no próximo. Todo o povo do mundo é meu próximo, é minha família. Somos e devemos nos comportar todos como irmãos. Vivo para servir a sociedade. Aqui na Venezuela, recebemos apenas uma ajuda de custo para pagar metrô, ônibus coletivo e comprar alimentos e alguma coisa mais necessária.” Na Venezuela, o salário recebido pelos médicos cubanos não chega a um salário mínimo da Venezuela, que em fevereiro de 2006 era cerca de R$405,00, melhor que o do Brasil. Há muitos anos, Cuba envia milhares de médicos para cuidar de saúde pública na Venezuela. Em contrapartida, a Venezuela entrega petróleo para o povo cubano.

Segundo dados do Ministério da Saúde, há hoje no Brasil 30 mil equipes de médicos da família atuando no Programa de Saúde da Família (PSF), mas só em 1.500 equipes há médicos. O plano do governo Federal é em 2012 chegar a 40 mil equipes para atender cerca de 75% da população: 150 milhões de brasileiros. Logo, estão faltando 38.500 médicos da família. Por que faltam médicos no PSF? Por que continua valendo no Brasil um decreto do ex-presidente FHC que proibiu o reconhecimento no Brasil de cursos de medicina feitos em Cuba?

Urge denunciarmos as ações e opções dos governos e da classe dominante brasileira que implementam política econômica que apóia a produção de alimentos através do agronegócio, com uso indiscriminado de agrotóxico, envenenando, assim, a comida do povo (3). Indignado, perguntamos: por que a presidenta Dilma cortou 55 bilhões de reais do orçamento de 2012, estando entre os cortes 5,4 bilhões de reais do Ministério da Saúde? Em plena CF sobre a saúde pública, é inadmissível tal corte. Exigimos que o governo federal repense sua política econômica neoliberal e volte atrás no corte do orçamento. Ao invés de corte de 5,4 bilhões do Ministério da Saúde, exigimos que se triplique o investimento em saúde pública.

Não podemos limitar nossa ação à solidariedade com quem está doente. O cartaz da CF/2012 é bonito, mas poderia ser melhor. Numa sociedade racista e com idosos pisados na sua dignidade, não foi uma feliz escolha apresentar como cartaz da CF/2012 um jovem médico branco, de pé, como “bom samaritano” sorrindo para um idoso negro, sentado, na posição de doente. Os idosos e negros têm direito à saúde pública de qualidade e não podem ser considerados objeto da solidariedade de jovens brancos( 4).

Sinto saudade dos criativos cartazes das CFs feitos por artistas populares da Caminhada, que são dignos de nossa admiração. Talvez fosse melhor um cartaz sugerindo caminhos para a saúde pública de forma integral, o que passa também por justiça social, por alimentação saudável – sem agrotóxico -, por agroecologia e pela infinidade de terapias naturais, holísticas e alternativas, além da vivência de uma espiritualidade que cura.

Um dos objetivos da CF/2012 é "despertar nas comunidades a discussão sobre a realidade da saúde pública, visando à defesa do SUS e a reivindicação de seu justo financiamento” (texto base CF 2012). Acrescento, resistir contra a privatização da saúde, que acontece via planos privados de Saúde, PPPs, terceirizações, lobbies da indústria farmacêutica e de empresas que lucram com a produção de doenças.

Enfim, para que a fraternidade social seja verdadeira é preciso saúde pública de qualidade, um grande desafio que devemos abraçar.

Uma breve análise da Classe C


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Escrito por Fernando Marcelino
Sexta, 24 de Fevereiro de 2012


Provavelmente, a principal marca do governo federal do PT no Brasil foi o fortalecimento da chamada “classe C”, mal entendido por alguns como uma nova classe média, composta nas estatísticas oficiais por famílias que tem uma renda mensal domiciliar entre R$1.064,00 e R$ 4.561,00. Se em 1992 a classe C representava 34% da população, em 2011 passou a 54% e, segundo estimativas, alcançará 58% da população em 2014. Isso significa que o perfil sócio-econômico do país e suas classes estão mudando.

Durante a última década, a chamada classe C – composta, sobretudo, por jovens negros com emprego formal, alto potencial de consumo e características altamente heterogêneas ligadas ao campo político e religioso – teve um aumento superior a 40% em sua renda familiar, o que permitiu maior poder de compra, acesso à tecnologia e ingresso em faculdades. Na última década, 31 milhões de pessoas entraram na classe C – ela já responde por cerca de 47% do consumo do país, metade dos cartões de crédito emitidos, 60% dos acessos à internet, 42% das despesas com educação. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são os jovens da classe C que alimentam a expansão de quase 77% no número de pessoas que declaram “freqüentar” ou “ter freqüentado” cursos de educação profissional entre 2004 e 2010. O Nordeste é a região onde a classe C mais cresceu recentemente e a região Sul soma a maior proporção de pessoas neste grupo. Espera-se que esta classe C será a principal fornecedora da força de trabalho mais qualificada para o desenvolvimento industrial nos próximos anos.

É claro que uma classe não pode ser definida em termos de renda ou pelo padrão de consumo. É sua experiência prática que diz como ela é. Como assinala Jessé de Souza, esta “nova classe trabalhadora” em formação convive com o antigo proletariado fordista – ou o que restou dele – e possui uma trajetória de ascensão por meio do trabalho duro, com fé em Deus para suportar a dor de viver, ter força de vontade e conseguir vencer os obstáculos que aprecem pela frente. Seus integrantes possuem uma narrativa sem tempo linear, previsível ou estável. Sua reprodução se constitui como um desafio permanente. Seu risco não é de proletarização, pois sua condição já é proletarizada, produto de trabalho duro todos os dias. Não é uma condição que se alcançou e se tem medo de decadência, mas uma condição que deve ser buscada em todo momento da vida.

Como podemos fazer uma interpretação marxista da classe C? Ela demonstraria que o aparato marxista é anacrônico diante destas transformações da composição de classe no Brasil? Naturalmente ela é parte do proletariado, mas qual parte? Para André Singer, poderíamos denominá-la de “subproletariado”, aqueles “que oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. A nosso ver, seria mais correto caracterizar a classe C como integrante do exército industrial de reserva – que Marx sempre frisou ser parte do proletariado. Marx identifica três formas deste exército nas quais “todo trabalhador dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente desempregado”:

1) A parte flutuante representa aqueles trabalhadores que, acompanhando o ciclo da economia capitalista, oscilam no emprego tendendo a serem despedidos numa crise e esperar por uma época de prosperidade para serem incorporados ao exército ativo de trabalhadores. Eles flutuam no circuito empregatício de acordo com o estágio do ciclo econômico. Nas palavras de Marx, esses que são despedidos tornam-se elementos da superpopulação flutuante que aumenta ao crescer a indústria. Parte deles emigra e, na realidade, apenas segue o capital em sua emigração. Em suma, essa parte flutuante do exército industrial de reserva é constituída pelos trabalhadores que, por certo tempo, perdem seus empregos em conseqüência da queda na produção, no avanço de produtividade, no emprego de novas máquinas ou fechamento de empresas. Uma parte desses desempregados volta a se empregar numa potencial prosperidade industrial.

2) A parte latente surge “quando a produção capitalista se apodera da agricultura, ou nela vai penetrando, diminui, à medida que se acumula o capital que nela funciona, a procura absoluta da população trabalhadora rural” (2009, p. 746). Geralmente, os operários agrícolas estão fadados a enxertar as fileiras das indústrias nos grandes centros urbanos, pois “dá-se uma repulsão de trabalhadores, que não é contrabalançada por maior atração, como ocorre na indústria não-agrícola. Por isso, parte da população rural encontra-se sempre na iminência de transferir-se para as fileiras do proletariado urbano ou da manufatura e na espreita de circunstâncias favoráveis a essa transferência. Está fluindo sempre esse manancial da superpopulação relativa. Mas, seu fluxo constante para as cidades pressupõe no próprio campo uma população supérflua sempre latente, cuja dimensão só se torna visível quando, em situações excepcionais, se abrem todas as comportas dos canais de drenagem. Por isso, o trabalhador rural é rebaixado ao nível mínimo de salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo” (idem, p. 746).

3) Diante do aumento da acumulação de capital, duas porções do proletariado tendem a ter uma participação menor diante do aumento da dimensão estagnada do exército industrial de reserva. Como diz Marx, “a superpopulação estagnada se amplia à medida que o incremento e a energia da acumulação aumentam o número dos trabalhadores supérfluos. Ela se reproduz e se perpetua, e é o componente da classe trabalhadora que tem, em seu crescimento global, uma participação relativamente maior que a dos demais componentes” (idem, p. 747). A superpopulação relativa estagnada “constitui parte do exército de trabalhadores em ação, mas com ocupação totalmente irregular. Ela proporciona ao capital reservatório inesgotável de força de trabalho disponível. Sua condição de vida se situa abaixo do nível médio normal da classe trabalhadora, e justamente por isso torna-se base ampla de ramos especiais de exploração do capital. Duração máxima de trabalho e mínimo de salário caracterizam sua existência.

Conhecemos já sua configuração principal, sob o nome de trabalho a domicílio. São continuamente recrutados para suas fileiras os que se tornam supérfluos na grande indústria e na agricultura, e notadamente nos ramos de atividade em decadência (idem, p. 746, 747). Esses trabalhadores não deixam de fazer parte do exército industrial de reserva, tampouco deixam de ter lugar na divisão social do trabalho no modo de produção capitalista. É parte cada vez mais importante do proletariado. Longe de ser inútil, a porção estagnada do exército industrial de reserva se reproduz com os trabalhos mais degradantes, com mais riscos à integridade física e moral, remuneração mais baixa sob vínculos empregatícios precários, ou seja, enfrentam um contato com o que Marx se refere como “ramos especiais de exploração do capital” baseados na “duração máxima de trabalho e mínimo de salário”.

Na classe C brasileira encontramos elementos das três formas de exército industrial de reserva. Em termos quantitativos, a classe C é uma conseqüência da neoliberalização da década de 1990, marcada pelas privatizações, precarização do trabalho e o aumento do desemprego. O resultado foi uma reorganização do proletariado baseada na redução do proletariado fabril e no progressivo crescimento da classe C, um fenômeno que decorre desde 1992, por mais que sua expansão aconteça de maneira mais acentuada desde 2003. Ela não é assim tão nova. Hoje, são 105,4 milhões de pessoas, ou 55,05% da população nesta faixa. Segundo um estudo da FGV, esse processo ocorre junto com o encolhimento das classes D e E. Em 1992 elas representavam juntas 62,13% da população. Em 2003 eram 54,85% dos brasileiros. Hoje, somadas, as classes D e E representam 33,19% dos 191,4 milhões de habitantes do país. É um fenômeno inédito na história do país. Ainda assim, são 16,2 milhões de pessoas vivendo com até R$ 70 mensais.

Para a classe C a estabilidade econômica é algo extremamente valorizado, pois é o caminho da ascensão social, por mais que ela seja composta por uma camada social altamente heterogênea em termos de valores, crenças políticas e comportamentos. É uma fração da classe trabalhadora emergente no Brasil, diferente daquela do ABC no final dos anos 1970, vivendo um processo de recomposição, ainda com pouca experiência de luta, mas que ainda não mostrou sua potencialidade. Os empregos da classe C são muito variados: telemarketing, feirantes, pequenos empreendedores, autônomos, trabalhadores da construção civil, caixas de supermercado, motoboys, secretariado, serviços de reparo em geral, parte do funcionalismo público, pequenos comerciantes, trabalhadores em domicílio etc. Em suma, são empregos altamente flexíveis e irregulares, por mais que alguns tenham uma formalidade oficial. Fazem parte dessa porção do proletariado os “desempregados ativos” que estão numa lacuna entre o trabalho atípico, parcial, desregulamentado, informal ou temporário e as agruras do não-trabalho. Alguns têm dupla jornada de trabalho e outros tantos são trabalhadores completamente informais. Todos lutam para pagar suas contas e costumam morar nas periferias das grandes cidades. Muitas vezes seu acesso a formas de mínimas de auto-organização e ao espaço público se dá por meio de igrejas evangélicas e neopentecostais.

Esta transformação da composição social do proletariado resulta, agora, em novas lutas de classe – só que, até agora, sem muita organização, representação e visibilidade política. O que fazer? Qual é o futuro político da classe C? Ser cooptada pelos ideais do livre-mercado, típicos da classe média? Ou pelas milícias e empresas religiosas privadas? Ou poderia ser tomada pelo ideal de uma sociedade calcada no trabalho duro e uma sociedade justa e socialista?

A necessidade de ascensão política de massas da “classe C” será provavelmente o mais importante norteador da nova dinâmica da luta de classes no Brasil no próximo período. Aquela parte da população que passou a ter mais acesso aos bens de consumo, mas ainda é muito conservadora, impede que projetos “socialistas” sejam aceitos facilmente, por mais que se coloque em movimento num novo ciclo de lutas das classes populares. Mostra-se que a inclusão no mercado por si só não garante o aumento da organização popular da classe C nem um desenho claro de uma consciência de classe.

Longe disso, ela parece estar atualmente mais próxima das diversas formas de individualismo possessivo do tempo presente e das grandes empresas de evangelização do que de qualquer “ideologia socialista”, muitas vezes demonizada, sendo vista como uma desculpa apenas para “instabilidade social” ou “politicagem”.

Para adentrarmos na consciência da classe C, devemos evocar a fórmula do lulismo feita por André Singer. O lulismo seria “a execução de um projeto político de redistribuição de renda focado no setor mais pobre da população, mas sem ameaça de ruptura da ordem, sem confrontação política, sem radicalização, sem os componentes clássicos das propostas de mudanças mais à esquerda”. O lulismo "expressa um fenômeno de representação de uma fração de classe que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as próprias formas de organização". Essa fração de classe é caracterizada por uma expectativa de Estado forte, que reduz a desigualdade, mas sem ameaçar a ordem estabelecida.

Portanto, ao contrário do que pensa o próprio Singer, essa fração de classe não apresenta afinidades partidárias de qualquer tipo ou intensas rejeições a partidos, e tampouco identificações personalistas fortes. Segundo Singer, as constantes declarações de Lula a favor da manutenção da estabilidade satisfizeram não só os banqueiros e investidores, nacionais e estrangeiros, como também o eleitor pobre e conservador, que teme a ruptura da ordem, embora deseje a redução da desigualdade e pobreza. O lulismo representa uma nova orientação ideológica, marcada pela preferência por redução da desigualdade, mas com manutenção da estabilidade, algo que não é “nem de direita, nem de esquerda e nem de centro”.

Nosso desafio é desenvolver uma verdadeira alternativa política para a classe C, trabalhar na base dessa classe e de outras classes populares da sociedade brasileira, vivenciando e contribuindo para sistematizar suas pequenas experiências de luta, elevando sua consciência de classe. Esse processo não é imediato. É uma missão estratégica, de longo prazo, orientando essas classes no momento que decidirem lutar. Devemos urgentemente reorganizar a esquerda sob este marco, pois ela se encontra muitas vezes alheia a tal processo, sem saber como tratar adequadamente as transformações. Nossa disputa começa ao colocar a classe C em movimento como um setor da classe trabalhadora, fazê-la agir e pensar como parte substancial da classe trabalhadora e seu destino na luta política.

Um primeiro passo neste sentido seria entender que diante da enorme dificuldade do movimento sindical em organizar no espaço de trabalho este segmento crescente de trabalhadores, principalmente da classe C, o espaço em que milhões de trabalhadores no Brasil tem se organizado e lutado é o território, em especial na periferia e nas favelas das grandes cidades. A politização destes territórios é parte integrante do processo de politização da classe C. Nosso dever é saber transformar suas reivindicações em ações massivas, independentes do governo e seus correligionários. Isso só surgirá, entretanto, se retomarmos a velha lição de organização junto à base popular, em seu dia a dia, em lutas diárias e miúdas, em especial da classe C. Somente as grandes mobilizações, o estímulo a todas as formas de luta de massa por necessidades imediatas e o trabalho de base podem alterar nossa situação diante da nova dinâmica da luta de classes.

Fernando Marcelino é economista.

O eco distante da tormenta




Sexta, 24 de Fevereiro de 2012

O eco da grande tormenta que abala até o centro do mundo ainda não chegou ao Brasil. Ainda navegamos no mar calmo das economias prósperas. Até quando?

Ninguém desconhece que a dinheirama depositada diariamente em nosso Banco Central evaporar-se-á em menos de 24 horas se as economias dos países ricos experimentarem um leve respiro.

A consciência dessa probabilidade deveria servir para aproveitar esse tempo emprestado a fim de preparar-se para a hora da inevitável explosão. Mas o que se vê não é isso, e sim o estímulo governamental a um consumismo irresponsável.

Estimulam-se pessoas de baixa renda a adquirir bens de consumo outrora acessíveis apenas a pessoas das classes médias e altas. O iludido membro da ‘classe C’ imagina, ao adquirir uma geladeira ou uma passagem aérea, que ascendeu à classe B.

Pura ilusão, pois, no mesmo dia em que a geladeira entra na sua casa, seus filhos estão em escolas públicas que não ensinam, selando, desse modo, um futuro de maus empregos e baixos salários.

Ao subir, faceiro, no avião, o deslumbrado passageiro de primeira viagem não se dá conta de que, sem um plano médico (que não tem condições de pagar) será obrigado a buscar tratamento na rede pública, levará meses para conseguir uma consulta e mais de ano para fazer uma operação.

O pior é que, inconsciente dessa realidade, atribui a causa de seu presente bem-estar a quem não tem absolutamente nada a ver com ele. Com efeito, a atual bonança econômica é o efeito contraditório da própria crise, e não das políticas econômicas do governo. É que, sem oportunidade de investir em seus países devido à recessão que sobre eles se abateu, esses capitais buscam desesperadamente valorização financeira nos países subdesenvolvidos. Como o Brasil pratica a maior taxa de juros do mundo, eles correm para cá.

Mas a massa despolitizada é incapaz de compreender as sutilezas da economia; toma a nuvem por Juno. Não há democracia possível nessas condições.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O cientista que sonha mudar o mundo

Perfil | 24/02/2012 12:

Stanford R. Ovshinsky criou tecnologias usadas em laptops, celulares e televisores. Agora, ele quer tornar a energia solar barata e acessível a todos

Lawrence M. Fisher, de
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Stanford R. Ovshinsky.

Ovshinsky cresceu em Ohio, nos Estados Unidos, filho mais velho de uma família de judeus que deixou a Europa em 1905

São Paulo — “Instituto Para Estudos Amorfos” é o que se lê na placa em preto e branco colocada na antiga escola de ensino fundamental no arborizado subúrbio de Detroit, nos Estados Unidos. A frase tem um pouco de humor nerd. Os cientistas e engenheiros trabalhando ali sabem que ela deixa a entender que se trata de um instituto de pesquisa típico do Vale do Silício. Ao mesmo tempo,a placa é séria. É uma lembrança da descoberta sobre materiais amorfos feita há 50 anos por Stanford R. Ovshinsky. Apesar do nome estranho, o achado revolucionou a computação e possibilitou a invenção de produtos como chips de memória que não perdem os dados quando ficam sem energia e telas planas. Ou seja, é a base para a produção de gadgets que fazem parte do nosso dia a dia, como smartphones, laptops e TVs superfinas.

A descoberta de Ovshinsky criou um campo novo na ciência de materiais e seria apenas a primeira de muitas outras. Apesar de ter completado somente o ensino médio, o inventor já escreveu mais de 300 ensaios científicos, tem mais de 400 patentes em seu nome e recebeu dezenas de graduações honorárias, prêmios e elogios acadêmicos. Agora, aos 89 anos, criou uma nova empresa, a Ovshinsky Solar, que tem uma meta audaciosa: fazer com que o custo da energia solar seja mais barata do que a produzida com base em carvão.

A preocupação de Ovshinsky com o meio ambiente é antiga. Na década de 1960, muito antes da atual onda verde, ele e sua segunda mulher, Iris, abriram o Laboratório de Conversão Energética em Detroit. Já naquela época os Ovshinskys sonhavam com um mundo livre das guerras e da poluição causada pela dependência dos combustíveis fósseis. Iris tinha a formação acadêmica que faltava a Ovshinsky, incluindo um Ph.D em bioquímica pela Universidade de Boston. Juntos, criaram novidades na geração e no armazenamento de energia e em materiais sintéticos concebidos atomicamente, conhecidos agora como nanotecnologia.

“Há muito tempo escolhi energia e informação como os dois pilares da nossa economia”, diz Ovshinsky. “Se você modifica a equação de energia para não usar mais carvão e evitar as mudanças climáticas, encerra uma era e abre outra totalmente diferente. Sou um ativista, mas arregaço as mangas e faço.”

Grande acelerador é reativado à procura da origem da matéria

Física | 24/02/2012 10:

Após dois meses de parada, mais de 5 mil cientistas dão início a etapa decisiva na busca do 'Bóson de Higgs'

Isabel Saco, da
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Divulgação/CERN

Acelerador de partículas, LHC

Os físicos esperam que das colisões entre prótons a energia tão elevada surjam novas partículas cuja existência está apenas na teoria

Genebra - As operações do acelerador de partículas LHC, do Centro Europeu de Física de Partículas (CERN), voltou a ser acionado após mais de dois meses de parada técnica e a partir de agora mais de 5 mil cientistas dão início a etapa decisiva na busca do 'Bóson de Higgs', a partícula que explicaria a origem da matéria.

'Os aceleradores estão sendo reativados, mas os primeiros feixes de prótons não serão injetados no LHC (Grande Acelerador de Hádrons) até meados de março e as colisões continuarão até o fim deste mês', confirmou nesta sexta-feira à Agência Efe o porta-voz do CERN, James Gillies.

A injeção de prótons será feita em um primeiro acelerador menor e mais antigo. Lá as partículas irão adquirindo energia e acelerando-se para passar ao segundo acelerador maior antes de chegar com toda potência (mais de 99,9% da velocidade da luz) ao LHC, explicou um dos responsáveis do centro de controle do grande acelerador, Mirko Pojer.

Uma vez que os prótons cheguem ao LHC, a metade deles fará sua trajetória em uma direção e os demais no sentido oposto para começar a colidir no fim de março.

Para isso então terão de ter chegado ao ponto ideal de esfriamento dos ímãs supracondutores do LHC, cuja temperatura deverá descer aos 271 graus centígrados negativos - a temperatura mais baixa conhecida no Universo - para que a experiência se retome corretamente.

No total serão injetados 2,8 mil pacotes de partículas no LHC, com conteúdo de 115 bilhões de prótons cada, que circularão a uma energia de 4 TeV (teraeletronvolts), 0,5 TeV mais do que estava previsto.

'A energia da colisão dos prótons equivale ao choque de um grande avião na velocidade de aterrissagem, ou seja, cerca de 150 km/h', comparou Pojer.

No entanto, dado ao reduzido tamanho dos prótons, a probabilidade de choque é reduzida, o que explica a necessidade de injetar no acelerador tamanhas quantidades de partículas.

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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Agora era Cinzas

Verissimo
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23 de fevereiro de 2012 | 3h 09
Verissimo - O Estado de S.Paulo

Quando ainda se escrevia crônicas de carnaval, as da Quarta-feira de Cinzas eram as mais comuns. Tratavam de ressaca e remorso, de fim da folga e volta ao trabalho, e de todas as possibilidades dramáticas ou patéticas de um carro alegórico abandonado e um falso marquês estirado na sarjeta. Havia até uma subcategoria de crônica de Quarta-feira de Cinzas, a crônica da volta do marido para casa. Do reencontro, às vezes catastrófico, do brasileiro com a realidade na forma da Adalgisa esperando no portão, e não aceitando desculpas.

Quarta-feira de Cinzas era uma coisa muito brasileira. Como ninguém tinha um carnaval parecido com o nosso, ninguém tinha um pós-carnaval tão triste. Uma queda de tanta altura. Mas o curioso é que quanto maior e mais coisa inédita brasileira fica o carnaval, mais o nosso pós-carnaval perde suas características - e seu valor literário. Hoje a figura típica do pós-carnaval não é mais o folião deixando sua fantasia no caminho na volta ao seu duro cotidiano, é o finlandês embarcando no avião e levando sua fantasia para mostrar em casa. E não tem mais Adalgisa esperando no portão. O marido que volta teve o mesmo destino de outros personagens clássicos: foi engolido pelo tempo e pela irrelevância. Ele não sai mais de casa no sábado e só reaparece na quarta-feira vestindo um cuecão e dizendo que foi sequestrado por sugadoras alienígenas, o que explica os chupões no pescoço. Isso é coisa do tempo antigo. De outros pós-carnavais.

Razão têm os baianos, que acabaram com o pós-carnaval. Lá chamam a Quarta-feira de Cinzas de "Recomeço", e emendam. E como gênero literário as crônicas da Quarta-feira de Cinzas também perderam toda a legitimidade. Viraram anacrônicas. Como esta, que ainda por cima está saindo na quinta.

Silêncio. Estou escrevendo sem saber o resultado da votação para as escolas do Rio. Fiquei impressionado com a Salgueiro, mas estou sempre predisposto a ficar impressionado com o Salgueiro. Mas desconfio que este ficará na história como o carnaval da parada da bateria da Mangueira. Quer dizer, a coisa mais memorável do carnaval de 2012 será o silêncio.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Felicidade suprema

Menalton Braff*



Às vezes vale a pena pensar sobre a vida. Não sobre o que temos ou não consumido, tampouco a respeito do que fizemos ou deixamos de fazer. São aspectos factuais que, mais do que ajudar em uma reflexão mais profunda, tornam-se barreiras ao pensamento abstrato, aquele em que vamos encontrar as verdadeiras significações. Chegamos quase à Ideia de Platão, mas aí já o terreno é extremamente perigoso e podemos nos enredar.

Erigir o consumo de bens materiais (principalmente) como o bem supremo de um ser humano é tirar-lhe toda a humanidade. Foto: Clayton de Souza/AE

Tentar entender o que é a felicidade talvez seja um dos caminhos para se chegar ao sentido da vida. É um assunto para o qual não há dona de álbum de pensamentos que não tenha uma resposta pronta: A felicidade não existe. Existem momentos felizes. Essa é uma verdade chocantemente inócua, pois não chega a pensar o que seja a felicidade como também não esclarece o que são tais momentos felizes.

Pois bem, o assunto me ocorre ao me lembrar de que vivemos em uma sociedade excessivamente consumista, sociedade em que a maioria considera-se feliz se pode comprar. Assim é o capitalismo: entranha-se em nossa consciência essa aparência de verdade fazendo parecer que os interesses de alguns sejam verdades inquestionáveis. O que é bom para mim tem de ser bom para todos. Isso tem o nome de ideologia, palavra tão surrada quão pouco entendida. E haja propaganda para que a máquina continue girando. Não sou contra o consumo, declaro desde já, mas contra o consumismo. Erigir o consumo de bens materiais (principalmente) como o bem supremo de um ser humano é tirar-lhe toda a humanidade.

Para Diógenes, filósofo contemporâneo de Aristóteles, a felicidade, a verdadeira realização de uma vida, consistia em alcançar o autodomínio e a liberdade espiritual. E Diógenes viveu o que pensou. Para tanto, vivia em um barril, desprezava a opinião do mundo e os bens materiais.

Leia também:
A felicidade a qualquer preço
Mate-se a vaca
Esnobar ou não, eis a questão

Conta-se que Diógenes saía à rua em pleno sol com uma lanterna na mão. Indagado sobre o que fazia, costumava responder que estava à procura de um homem, mas de um homem de verdade.

Mas eis que aparece Schopenhauer, aquele mesmo, o inimigo do Hegel, e desenvolve seu sistema filosófico quase todo sob a convicção de que o ser humano só pode ser infeliz. É o filósofo do pessimismo. Às vezes sinto-me tentado a pensar que o Schopenhauer, lá do século XIX, já vislumbrava nossa época, a sociedade do consumismo desenfreado. Ele afirmava que o desejo é a regência do mundo. E que desejamos aquilo que não temos. Portanto, somos infelizes. E se o desejo é satisfeito com a obtenção de seu objeto, novos objetos surgem em seu caminho. Esta insaciabilidade do ser humano é que o vai manter preso à infelicidade.

Bem, e a que chegamos? Enquanto alguém que circule melhor do que eu pela filosofia, que mal tangencio como curioso, vou continuar pensando que a vida não tem sentido, apenas existência. E isso, um pouco à maneira do Alberto Caeiro, para quem pensar é estar doente.

Depois de anos de silêncio, Geraldo Vandré concede entrevista

O Vermelho reproduz a seguir entrevista de Geraldo Vandré ao jornalista Geneton Moraes Neto, publicada em seu blog no portal G1. Acompanhe.


Vandré

Ficou fora dos acontecimentos, diz Vandré

A pergunta que todos gostariam de fazer é a mais simples possível: o que foi que aconteceu com Geraldo Vandré ?
Vandré : “Ficou fora dos acontecimentos (ri). Ficou fora dos acontecimentos. Acho melhor para ele. Tenho outras coisas para fazer. Estudei leis. Quando terminei meu curso de Direito aqui no Rio e fui me dedicar a uma carreira artística, já sabia que arte é cultura inútil. Mas hoje consegui ser mais inútil do que qualquer artista. Sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil do que isso ? Quando entrei na escola, para estudar, era a Universidade do Distrito Federal. Quando saí, era Universidade do Estado da Guanabara. Hoje, é Uerj, no Maracanã”.

Você se animaria a fazer uma temporada comercial,em teatros ?

Vandré : “Tenho uma prioridade: fazer a minha obra de língua espanhola. É uma obra popular. Além de tudo, o que quero fazer, antes de cantar canções populares no Brasil, é terminar uma série de estudos para piano, música erudita com vistas a composição de um poema sinfônico. Porque aí já é a subversão total. Não existe nada mais subversivo do que um subdesenvolvido erudito”.

O fato de a música “Caminhando” ter se tornado uma espécie de hino de protesto provoca o quê em você hoje: orgulho ou irritação ?

Vandré: “Estou tão distante de tudo. Mas não tenho o que corrigir em nada do que fiz. Tenho muito orgulho de tudo o que fiz. Protesto é coisa de quem não tem poder. Não faço canção de protesto. Fazia música brasileira. Canções brasileiras. A história de “protesto” tem muito a ver com a alienação denominatória, é o “protest song” norte-americano, a música country. Há algumas coincidências. Não concordo com a denominação “música de protesto”. Fiz música popular brasileira”.

Você teve uma divergência artística com os tropicalistas – entre eles, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Hoje, você ainda considera ruim a música que eles faziam na época ?
Vandré : “Com essa pergunta, eu me lembrei de uma reposta que o próprio Gil deu uma vez. Fiz uma pergunta a ele. Não me lembro qual foi. E ele disse: “Ah, faço qualquer coisa. Uma tem que dar certo”. Eu não faço qualquer coisa”.

Mas você mudou de opinião sobre os tropicalistas ou não ?
Vandré: “Parece que eles continuam na mesma. É o que me parece. Eu estou distante de tudo – não só do Tropicalismo como de tudo praticamente que se faz do Brasil”.

Em que país vive Geraldo Vandré ?
Vandré: “Vive num Brasil que não está aqui. Geraldo Vandré vive no Brasil. Eu até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a maioria dos brasileiros. A quase totalidade dos brasileiros não vive mais no Brasil. Vive num amontoado”.

Como é este Brasil de Geraldo Vandré ?
Vandré : “É o antes – de quarenta anos atrás. O país que o Brasil era quando fiz música para o Brasil não era este país de hoje. Não existia este processo de massificação. Dentro da minha própria carreira – profissionalmente falando – houve uma mudança ali no Maracanãzinho. Ali, houve a passagem do que eu fazia para um público de um teatro de setecentas ou no máximo mil e duzentas pessoas para um ginásio com trinta mil pessoas. E a televisão direto no ar. Já foi a massificação”.

O Brasil de quarenta anos atrás era melhor do que o Brasil de hoje ?
Vandré: “Eu fazia música para aquele país”.

E por que não fazer música para o Brasil de hoje ?
Vandré: “Porque o país é outro. O que existe é cultura de massa. Não é cultura artística brasileira. Não há praticamente espaço para a cultura artística. Se você considerar os outros autores, eles fazem coisas de vez em quando. Não têm uma carreira como tinham antigamente – nem Chico Buarque nem Edu Lobo, ninguém. A carreira que eles têm é uma carreira hoje muito segmentada”.

Você se considera, então, uma espécie de exilado que vive dentro do Brasil ?

Vandré: “Estou exilado até hoje. Ainda não voltei. Eu estou exilado e afastado das atividades que eu tinha até 1968 no Brasil. Eu me afastei. Não retornei”.

Por que é que você resolveu se afastar totalmente da carreira artística naquela época ?
Vandré: “Naquela época, já era assim: já era como hoje. Quando voltei, o Brasil já estava num processo de massificação em que o público para quem eu tinha escrito e para quem eu tinha composto praticamente já não existia, aquela classe média de quatro anos e meio antes. Estava muito confuso tudo.Fui esperando, fui vendo outras coisas. Isso foi de mal a pior – cada vez mais. Para você ter uma ideia: quando terminei o curso de Direito no Rio e me mudei para São Paulo, em 1961, para fazer uma carreira artística, não existia bóia-fria em São Paulo. Hoje, São Paulo é a terra do bóia-fria: todo mundo amontodo nas cidades. Vão aos campos para plantar e para colher e depois voltam para a cidades. Quando fui para São Paulo, a cidade tinha quatro milhões de habitantes. Hoje, são dezesseis milhões de amontoados. É um genocídio. Tiraram todo mundo dos campos para produzir e exportar…”

A decisão de interromper a carreira,então, foi – de certa maneira – um protesto contra o que você via como “massificação” da sociedade brasileira ?
Vandré: “Não. O que houve foi muito mais uma falta de motivo, uma falta de razão para cantar. Protesto,não: falta de razão, falta de porquê. Estou fazendo o que acho que devia fazer”.

O que é que chama a atenção do Geraldo Vandré no Brasil de hoje ? Que manifestação artística desperta interesse ?
Vandré: “A miséria aumentou. Se você pegar a letra de “Caminhando” – ” pelos campos, as fomes em grandes plantações/pelas ruas marchando indecisos cordões/ ainda fazem da flor seu mais forte refrão/ e acreditam nas flores vencendo o canhão” -, hoje é mais ainda. Hoje, as ruas estão muito mais cheias de indecisos cordões. O processo de massificação destruiu praticamente a urbe brasileira”.

Você se animaria a fazer uma canção como “Caminhando” hoje ?
Vandré:”Não existe isso. A gente nunca faz uma canção como uma outra. Aquela é uma canção. Cada uma é uma.A gente faz independentemente de animação. Quando decide fazer, faz”.

Você diria que o Brasil é um país ingrato ?
Vandré : “Não. De forma alguma. São coisas que ocorrem. Guerra é guerra.Não perdi (ri). Eu me lembrei agora de um poema muito bonito de Gonçalves Dias que aprendi com meu pai: “Não chores, meu filho, não chores/ Viver é lutar/ A vida,meu filho, é combate/é luta renhida/ que aos fracos abate e aos bravos só pode exaltar”.

Quando você se lembra hoje do Maracanãzinho inteiro cantando “Caminhando” que sentimento você tem ?
Vandré: “Aquilo foi muito bonito, muito bonito. Pena que eu não posso ver o VT. Estão guardando o VT não sei para quê.Quero ver o VT. Lá na sua estação eles devem ter. Procure lá. Consegue o VT para ver!” ( olhando para a câmera).

Você tem saudade daquela época ?

Vandré : “Saudades….Saudades…Um pouco. Mas também há tanta coisa para fazer que não dá muito tempo de sentir saudade”.

Você vive de quê hoje ? Você recebe direitos autorais ?

Vandré: “Nunca dependi de música para viver. Sou servidor público. Hoje, estou aposentado como servidor público federal”.

Você deixou de receber direitos autorais ?

Vandré: “Pagam o que querem. Não existe controle. Não existe critério. Se nós tivéssemos direito de autor, teríamos os direitos conexos, direitos de marcas, patentes, propriedade industrial. É um assunto complexo. Mas aí não seríamos subdesenvolvidos“.

Você foi o único grande nome daquela geração que não voltou aos palcos – entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque…
Vandré: “Eu não voltei. É uma boa pergunta: por que não voltei? Não mudou tudo ? Mas será que mudou ?As razões pelas quais me afastei continuam preponderantes no que que se apresenta como realidade brasileira”.

Se você fosse escrever um verbete numa enciclopédia sobre Geraldo Vandré qual seria a primeira frase ?
Vandré: “Criminoso (ri)”.

Por quê ?
Vandré : “O que você chama de governo ainda me tem como anistiado por haver cantado as canções que cantei. Fui demitido do serviço público por causa das canções. O que se apresenta como governo no Brasil até hoje cobra impostos sobre o “corpo de delito” que foram as canções que fiz. Deu para entender agora ? “.

Você foi punido pelo governo da época, perdeu o emprego público…
Vandré: “Fui demitido. Depois, retornei. Briguei, briguei, briguei..”

Em algum momento, você foi considerado “criminoso”…
Vandré: “Fui demitido por causa da canção. E essa canção que foi mltivo de minha demissão até hoje é…Voltei por força de um despacho dado com fundamento na Lei de Anistia, como se eu fosse criminoso. Anistia é para criminoso – condenado por sentença transitada em julgado, se ele aceitar. Porque ele pode não aceitar. Aceitar a anistia significa aceitar-se criminoso, beneficiário de anistia”.

Você acha que a grande injustiça foi esta : em algum momento você ser considerado um criminoso ?

Vandré: “Injustiça não é a palavra…”

Você teria cometido um “delito de opinião” …

Vandré: “Não. Era subversão mesmo, sob certos aspectos, porque não havia nada mais para fazer naquele instante. Não me lembro. Mas as Forças Armadas, propriamente ditas, entenderam muito melhor do que a sociedade civil. Nunca tive nenhum problema com as Forças Armadas propriamente. Sempre houve uma consideração e respeito entre nós”.

Hoje, você nega que tenha sido em algum momento um antimilitarista nos anos sessenta ?
Vandré: “Nunca fui antimilitarista. Nunca assumi tal posição. Fui lá e falei o que queria dizer, numa canção que foi dita e cantada no Brasil diante de todo mundo. A canção foi cantada para os soldados, também”.

O grande equívoco sobre Geraldo Vandré foi este : achar que você era antimilitarista ?
Vandré : “Não houve, na realidade, um grande equívoco. Houve uma grande manipulação porque, quanto mais proibido, mais sucesso fazia; mais se vendia; menos conta se prestava. É uma questão muito séria”.

Qual foi a última manifestação artística que despertou o interesse e a curiosidade de Geraldo Vandré no Brasil ?
Vandré: “Passei quatro anos e meio fora do Brasil. Quando voltei, havia uma coisa muito importante que era o Movimento Armorial. Havia o Quinteto Armorial e a Orquestra Armorial. A sonoridade era muito condensada. O resultado era importante. Para mim, foi a coisa mais importante que aconteceu nos últimos tempos. Não me lembro de outra coisa que tenha ido além daquilo”.

E da produção recente, alguma coisa chamou a atenção do Geraldo Vandré ?
Vandré: “Nada. Tiririca (ri). Dizem que vai ser o deputado mais votado de São Paulo. Está bom ?"

Você disse, numa discussão na época dos festivais: “A vida não se resume a festivais”. Hoje, tanto tempo depois dos festivais, qual é o principal interesse do Geraldo Vandré ?

Vandré : “São as outras coisas que não estão nos festivais. Minha vida funcional – de que cuidei até me aposentar; as minhas relações com a Força Aérea, o meu projeto de fazer estas gravações na América espanhola…Tenho muita coisa para fazer”.

Outro grande nome que se celebrizou como opositor do regime militar na música brasileira foi Chico Buarque de Holanda. Você acompanhou o que ele fez depois ?
Vandré: “Chico teve um caminho diferente do meu. Não chegou a parar. Produziu muito durante aquela época em que eu estava fora. Chico ficou aqui. Saiu e voltou, saiu e voltou. Passei quatro anos e meio fora. Quando voltei, fiz uma tentativa de apresentação num programa de televisão. Não vem ao caso qual, mas não gostei do que aconteceu: o jogo de pressões que se fez em volta. Recuei. Depois, passou-se um tempo. A própria Globo queria fazer um festival. Chegaram a me procurar. Não tive interesse em participar”.

O que é que a produção de Chico Buarque significa para você ?

Vandré: “Chico é uma pessoa muito talentosa, muito importante. Um grande artista”.

Você perdeu o contato com todos os seus companheiros de geração na música ?
Vandré: “Nunca fui muito enfronhado no meio artístico. Fazia minhas coisas. Voltava para minhas atividades extramusicais”.

É verdade que você ficou escondido na casa da família Guimarães Rosa antes de ir para o exílio ?
Vandré: “Eu saí de circulação. Depois que o tempo foi passando, as coisas vão ficando claras: as Forças Armadas propriamente ditas não tinham nada contra mim. Não tomaram nenhuma iniciativa contra mim. Quando fecharam o Congresso Nacional, no dia 13 de dezembro de 1968, eu estava indo para Brasília para fazer um espetáculo.Evidentemente, suspendemos o espetáculo. Vim de carro – guiando – até São Paulo. Eu estava à mão das Forças Armadas….Nunca deixei de estar. Mas claro que algo poderia acontecer: ao andar à toa pela rua, eu poderia de repente encontrar um “guardinha de trânsito” que quisesse fazer média. Há sempre alguém que quer tirar proveito de situações assim. Para evitar, saí de circulação. Durante um tempo, estive na casa de Dona Aracy (viúva de Guimarães Rosa – que tinha morrido meses antes). Fiquei lá porque, quando vinha para o Rio, como não tinha casa aqui, sempre ficava na casa de amigos e de pessoas conhecidas”.

Por que você tomou esta decisão tão drástica – de interromper uma carreira de tanto sucesso ?
Vandré: “Decidir sair do Brasil naquele ano de 1968. (N:Os mesmos agentes que prenderam Caetano Veloso e Gilberto em São Paulo,em dezembro de 1968, tentaram prender Geraldo Vandré. Mas, avisado por Dedé, à época mulher de Caetano Veloso, Geraldo Vandré conseguiu escapar a tempo) Eu tinha uma programação para fazer fora do Brasil. Tinha um contrato com a televisão Bavária,na Alemanha, para fazer um filme sobre Geraldo Vandré. Fui fazer. Passei um ano e meio pela Europa. Depois, voltei para o Chile – para onde eu tinha ido do Brasil. Havia muitos brasileiros lá ainda. De lá, fui para o Peru. Ganhamos um festival em Lima em 1972 com uma canção que era a única não cantada em espanhol. Era cantada em “brasileiro” mesmo. O Brasil não conhece a canção.Chama-se “Pátria Amada Idolatrada, Salve, Salve – Canção terceira”.

Você se lembra da letra ?
Vandré : “Eu me lembro. É uma canção que foi feita para ser cantada por um homem e uma mulher. Existe de caso pensado – coincidentemente – uma confusão de sentimentos entre a ideia da pátria e a ideia da mulher amada.O homem canta: “Se é pra dizer-te adeus/ pra não te ver jamais/Eu – que dos filhos teus fui te querer demais-/no verso que hoje chora para me fazer capaz da dor que me devora/quero dizer-te mais/ que além de adeus/ agora eu te prometo em paz levar comigo afora o amor demais”.

E a mulher, cuja imagem se confunde com a noção da pátria, responde:

“Amado meu sempre será quem me guardou no seu cantar/ quem me levou além do céu/além dos seus/e além do mais/ amado meu/ que além de mim se dá/não se perdeu nem se perderá”.

Os dois cantam juntos um para o outro. É um contraponto”.

Você foi constrangido a gravar, em 1973, um depoimento em que negava que fosse militante político. Qual foi o peso deste depoimento na decisão de Geraldo Vandré de interromper a carreira?
Vandré: “Nunca fui constrangido a declarar que não tive militância política. Nunca tive militância político-partidária. Nunca pertenci a nenhum partido. Nunca fui político profissional. Não fui obrigado a dizer que não era militante. Nunca fui militante político. Nesta contemporaneidade em que estamos, eu me lembrei de um professor de Filosofia que dizia: “O homem é um animal político”. Sou uma qualidade de animal político que não depende de eleição. Vamos estudar a diferença entre política e eleição ?”.

Que lembrança você guarda deste depoimento ? Você foi levado para uma sala do aeroporto de Brasília e gravou um depoimento em que – de certa maneira – renegava ….
Vandré (interrompendo) : “É um assunto que ficou muito confuso. Não me lembro exatamente. Gostaria de ver a declaração…”

Você gravou o depoimento quando voltou do Chile…
Vandré: “Gostaria de ver, porque houve montagens. Era gravação. O que foi para o ar não sei”

O depoimento criou espanto na época, porque – de certa maneira – era você negando a militância política…
Vandré: “Nunca fui militante. Se engajamento político é pertencer a um partido, nunca pertenci a nenhum. Nunca fui engajado politicamente”.

Você obrigado a gravar este depoimento ? Fazia parte do acordo para voltar para o Brasil ?

Vandré: “Queriam que eu fizesse uma declaração. Não me lembro o que foi que disse. Mas eu disse coisas que poderia dizer. O que eu disse era verdade. Não disse nada que não tenha querido dizer. A TV Globo deve ter isso. Procure lá…”

A gente procurou e não encontrou….
Vandré: “Pois é: somem com tudo. Que loucura essa…Por quê ? Veja se acha o vt do Maracanãzinho. É o que tem Tom Jobim. É o mesmo vt. A minha parte sumiu. Por quê ? Fizeram uma retrospectiva do Festival. Botaram o Festival no Maracanãzinho- Tom,Chico, todo mundo, Cynara e Cybele. Mas,na hora de botar o Geraldo Vandré, usaram um filme feito na Alemanha, em que eu estava de barba. Não é certo”…

Talvez tenham recolhido o filme…
Vandré: “Para mim, é muito difícil acreditar que a TV Globo tenha se desfeito do filme. Não acredito. Devem estar guardando muito bem guardado”

Só para esclarecer este episódio sobre o depoimento que você gravou quando voltou do exílio : que lembrança exatamente você tem ? Quem pediu a você para gravar este depoimento ?
Vandré: “Aquelas declarações foram feitas para uma pessoa que se me apresentava como da Polícia Federal. Fiz um depoimento aqui. Depois, disseram que eu tinha de ir para Brasília. Cheguei ao Brasil no dia 14 de julho. Dois meses depois, apareço como se estivesse chegando em Brasília. Aquilo foi uma manipulação. O depoimento foi gravado antes. Gravaram-me descendo do avião em Brasília. Tudo muito manipulado. É esta a história dos vts: normalmente, temos esta doença. Estou falando aqui. O que vai ser mostrado vai ser uma seleção que a estação vai fazer. Não vai ser o que estou dizendo. Isso é muito sério”.

Para encerrar o assunto: o depoimento teve um peso na decisão de interromper a carreira ? Você ficou incomodado com aquilo ?
Vandré: “Não. Eu estava chegando e vendo como estavam a coisas.Não tinha menor noção da realidade. Tive de passar por um processo de adaptação no retorno ao Brasil”.

O grande mistério que existe sobre Geraldo Vandré durante todas essas décadas é, afinal de contas, o que aconteceu com ele depois da volta do exílio: você foi maltratado fisicamente ?
Vandré: “Não.Não”

Se você tivesse a chance hoje de se dirigir a uma plateia de jovens num festival,o que é que você diria a eles ?

Vandré: “Vamos ter de dar um tempo aí, não é ?…” (rindo)

Um “tempo” de quantos anos ?
Vandré: “Não sei. Agora, vocês vão votar para presidente, deputado, senador. Estão ocupados com outras coisas. Estou por fora”.

Que papel você acha que vai caber a Geraldo Vandré na história da música popular brasileira moderna ?
Vandré: “Nunca fiz este tipo de avaliação”.

Que papel você espera ter ? Você se acha suficientemente reconhecido ?

Vandré: “Obtive o reconhecimento que procurei e quis”.

Você em algum momento se arrepende de ter interrompido a carreira ?
Vandré: “Não. Porque raramente me arrependo das coisas que faço. Calculo bem, reflito bem, meço bem : quando faço é para ficar feito mesmo. Não existe arrependimento não”.

Para efeito de registro histórico: você, primeiro, não se considera antimilitarista…
Vandré: “Não…”

Segundo: você não foi maltratado fisicamente durante o regime militar…

Vandré: “Não…”

Terceiro: você disse o que quis no depoimento que você foi forçado a gravar quando voltou do exílio…
Vandré: “E em quarto: há o Quarto Comando Aéreo Regional…Tenho uma canção para o “exército azul”, a Força Aérea…(ri e exibe o brasão da Aeronáutica, impresso numa espécie de cartão de visita que traz, no verso, a letra de “Fabiana“). A aviação é muito bonita. A loucura é a aviação. Porque a maior loucura do homem é voar. Conhece loucura maior do que esta ? Não existe”.

Como é que surgiu a fascinação de Geraldo Vandré pela aviação ?
Vandré: “Desde pequeno, desde criança”.

Você gostaria de ter sido aviador ?
Vandré: “É. Não fui aviador militar. Não sou piloto, mas – de certa forma – sou aviador, porque me ocupo de assuntos da aviação. Uma coisa é aviador, outra é piloto. Você pode ser piloto, co-piloto, rádio navegador, mecânico de bordo, médico aviador. Há vários caminhos – não necessariamente tem de ser piloto…”.

O fato de você ter composto uma música em homenagem à Força Aérea criou um certo espanto. Hoje, você se hospeda em hotéis da Aeronáutica, como este. Nós estamos num ambiente militar…
Vandré :”Relativamente, porque este é um instituto de direito privado…”

Houve alguma mudança na postura do Geraldo Vandré ou não em relação às Forças Armadas ?
Vandré : “O que houve foi o reconhecimento de uma parte da sociedade que nunca tinha tido oportunidade de saber realmente quais eram as minhas posições”.

Em que situação Geraldo Vandré voltaria a um palco hoje ?
Vandré:”Depende de onde. Tenho uma programação na qual investo meu tempo e minhas energias : gravar um disco no exterior, num país de língua espanhola. É minha prioridade. Depois, vou ver minha programação para o Brasil. Escrevi umas trinta canções originalmente em “americano de habla hispânica”. Quero gravar num país de música espanhola, com músicos de lá. Minha prioridade comercial é esta. Para o Brasil, por ora, o projeto é a canção da Força Aérea mesmo – e um projeto sinfônico. A canção se chama Fabiana porque nasceu na FAB – em sua honra e em seu louvor”.

Você, hoje, então prefere compor peças sinfônicas ?
Vandré: “Tenho estudado música. Compus uma série de estudos para piano – aproveitando da técnica de uma jovem pianista de São Paulo. Mas a música ganhou outras dimensões. Passou a ser física e matemática. Ritmos do coração. Fica mais complicado,mas, para mim, é música”.

Você tem planos de gravar a música que você fez em homenagem à FAB ?

Vandré: “Claro. Já fizemos uma apresentação numa festa da Força Aérea em torno das comemorações da Semana da Asa, em São Paulo, com um coral de trezentos infantes. Uma coisa muito bonita. Com o tempo, vamos ver quais são alternativas que se colocam”.

Você declarou algumas vezes : “Geraldo Vandré não existe mais….”

Vandré ( interrompendo) : “Não, não declarei. Eu disse que ele não canta no Brasil comercialmente. Apresentei uma canção para a Força Aérea do Brasil. Não canto comercialmente no Brasil porque os problemas todos que tive de enfrentar resultaram de especulações comerciais: vendas clandestinas, câmbio negro, tudo isso. Quanto mais se proibia,mais se vendia. A sociedade, às vezes, tem essa doença”.

Você canta “Disparada” hoje, em casa ?
Vandré : “Não. Faz tempo que não pego num violão. Tenho de voltar a estudar”.

Que instrumento, então, você toca ? Piano ?
Vandré :”Não. Não sou pianista. Toco de improviso alguma coisa”.

Pelo menos duas músicas que você compôs são conhecidíssimas até hoje: “Disparada” e “Caminhando”.

Vandré ( interrompendo) : “Pelo menos duas…”

Se você fosse escolher uma, que música você escolheria como típica da produção de Geraldo Vandré ?
Vandré: “Disparada” é mais brasileira, tem uma forma mais consequente com a tradição das formas da música popular : a moda de viola. “Caminhando” já é mais urbana. É uma crônica da realidade. É a primeira vez que fiz uma crônica. Deu no que deu. A realidade não estava muito querendo ser…”

Retratada…A obra-prima de Geraldo Vandré qual é ?
Vandré: “Todas são iguais. Para mim, são todas iguais. Isso de obra-prima é uma questão de seleção e de predileção do público, os meios de comunicação e os chamados formadores de opinião”.

Mas você deve ter uma predileção pessoal…
Vandré: “Não tenho. É tudo igual mesmo”.

As peças sinfônicas você compõe como ?
Vandré : “As melodias, algumas harmonias…Para escrever em notas convencionais, preciso da escrita de pessoas que estão muito mais afeitas a esta tarefa do que eu.Eu levaria anos para escrever uma partitura. Jamais escreveria como alguém que faz parte de uma orquestra, lê e escreve na hora, à primeira vista. Hoje,estou dedicado a preparar um poema sinfônico cuja abertura coralística será a Fabiana, a canção que fiz para a Força Aérea”.

Você hoje se animaria a fazer um espetáculo para o público brasileiro?
Vandré :”Não.Para o público brasileiro, só uma coisa muito especial”…

Em que situação você voltaria a se apresentar no Brasil ?
Vandré: “Chegamos a cogitar de fazer uma apresentação da Fabiana no Clube de Aeronáutica. É um dos projetos de que chegamos a nos ocupar. Mas até agora as coisas ficaram postergadas, porque o clube vai entrar em reforma. Vêm aí as Olimpíadas Militares. O clube vai ter de se adequar”.

Qual é a grande inspiração que você tem para compor essas peças sinfônicas ? O que é que motiva você a compor ?
Vandré: “Nunca dependi muito da palavra inspiração. Escolhia os temas. O fundamental para mim é a memória que tenho do que ouvia no cancioneiro popular, as músicas de desde a minha infância”.

O público brasileiro ainda vai ter chance de ver Geraldo Vandré cantando “Caminhando” e “Disparada” no palco ?
Vandré: “Isso é profecia. Não sou profeta”.

O que é que levou você a fazer uma música em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira, você, que era tido nos anos sessenta como antimilitarista ?
Vandré: “Era tido. Por quem ? Isso deveria ser perguntado para os que a mim me tinham como antimilitarista.Não sou militarista. Mas também não sou anti. Todos os países soberanos do mundo têm suas forças armadas. O que é que devemos fazer com as nossas ? Entregá-las para outras pessoas ? Vamos fazer isso ? Acho que não!

Chamo de “Fabiana” porque nasceu na FAB. Costumamos dizer assim: uma servidora da FAB é “fabiana”. A letra diz : “Desde os tempos distantes de criança numa força,sem par, do pensamento teu sentido infinito e resultado do que sempre será meu sentimento/todo teu/todo amor e encantamento/vertente.resplendor e firmamento/ Como a flor do melhor entendimento/a certeza que nunca me faltou/na firmeza do teu querer bastante/seja perto ou distante é meu sustento/ De lamentos não vive o que é querente do teu ser no passado e no presente/Do futuro direi que sabem gentes de todos os rincões e continentes/que só tu saber do meu querer silente/porque só tu soubeste, enquanto infante, das luzes do luzir mais reluzente pertencer ao meu ser mais permanente”.

O refrão é, coincidentemente, um contraponto de “vem/vamos embora/ que esperar não é saber” : “Vive em tuas asas todo o meu viver/ meu sonhar marinho / todo amanhecer”.

Termina a entrevista. Já são quase sete da noite. O Grande Solitário da MPB caminha em direção à escadaria que dá acesso à ala de hóspedes do hotel que funciona no Clube da Aeronáutica. Parte sozinho. Vai em companhia do único habitante do Brasil que Geraldo Vandré criou para si: o próprio Geraldo Vandré.

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