sábado, 3 de novembro de 2007

A CULTURA CAIPIRA

É preciso pensar no caipira

como um homem que manteve

a herança portuguesa nas

suas antigas formas

A cultura caipira não é e nunca foi um reino separado, uma espécie de cultura primitiva

independente, como a dos índios. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil e

portanto, veio na maior parte de fora, sendo sob diversos aspectos sobrevivência do

modo de ser, pensar e agir do português antigo.

Quando um caipira diz "pregunta", "a mó que", "despois", "vassuncê", "tchão (chão)",

"dgente (gente)" não está estragando por ignorância a língua portuguesa; mas apenas

conservando antigos modos de falar que se transformaram na mãe-pátria e aqui.

Até o famoso "erre retroflexo", o "erre de Itur" ou "Tieter", que se pensou devido a

influência do índio, viu-se depois que pode ter vindo de certas regiões de Portugal.

Como veio o desafio, a fogueira de São João, o compadrio, a dança de São Gonçalo, a

Festa do Divino, a maioria das crendices, esconjuros, hábitos e concepções.

É preciso pensar no caipira como um homem que manteve a herança portuguesa nas suas

formas antigas. Mas é preciso também pensar na transformação que ele sofreu aqui, fazendo

do velho homem rural brasileiro o que ele é. "Tabareu", "matuto", "capiau", "caipira",

o que mais haja, ele é produto e ao mesmo tempo agente muito ativo de um grande processo

de diferenciação cultural própria. Na extensa gama dos tipos sertanejos brasileiros ,

poderia ser considerado "caipira" o rural tradicional do sudoeste e porções do oeste,

fruto de uma adaptação da herança fortemente misturada com a indígena, às condições físicas

e sociais do Novo-Mundo.

Nessa linha de formação social e cultural, o caipira se define como um homem rústico

de evolução muito lenta, tendo por fórmula de equilíbrio a fusão intensa da cultura

portuguêsa com a aborígene e conservando a fala, os usos, as técnicas, os cantos,

as lendas que a cultura da cidade ia destruindo, alterando essencialmente ou caricaturando

Em compensação, no quadro de sua cultura o caipira pode ser extraordinário. É capaz, por

exemplo, de sentir e conhecer a fundo o mundo natural, usando-o com uma sabedoria e

eficácia que nenhum de nós possui.

O nosso caipira, do ancestral português herdou com a língua e a religião a maioria dos

costumes e crenças; do ancestral índio herdou a familiaridade com o mato, o faro na caça,

a arte das ervas, o ritmo do bate-pé (que noutros lugares chama-se cateretê), a caudalosa

eloquência do cururu.

O cururu e a dança da Santa Cruz são dois exemplos muito bons de encontro de culturas.

Parece terem sido elaborados sob influência dos jesuítas, que aproveitaram as danças

indígenas e o gosto do Índio pelo discurso e o desafio para enxertar a doutrina cristã.

Nada mais caipira que o cururu e a dança de Santa Cruz, que só existem em áreas de forte

impregnação originária dos antigos piratininganos. E nada mais misturado de elementos

portugueses e indígenas como tanta coisa que observamos nas catiras, nas histórias, nas

técnicas do homem rural pobre e isolado de velha origem paulista. Na primeira metade do

século, o caipira ainda era espoliado e miserável na maioria dos casos, porque com a passar

do tempo e do progresso, quem permaneceu caipira foi a parte da velha população rural

sujeita às formas mais drásticas de expropriação econômica, confinada, e quase compelida

a ser o que fôra, quando a lei do mundo a levaria a querer uma vida mais aberta e farta,

teoricamente possível.

Foi então que o caipira se tornou cada vez mais espetáculo, assunto de curiosidade e

divertimento do homem da cidade, que, instalado na sua civilização e querendo ressaltar

este "previlégio", usava aquele irmão para provar como ele tinha prosperado.

A tarefa, portanto, é procurar o que há nele de autêntico. Autêntico, não tanto no sentido

do impossível do originalmente puro, porque em arte tudo está mudando sempre; mas no

sentido de buscar os produtos que representam o modo de ser e a técnica poético-musical

do caipira como ele foi e como ainda é, não como querem que ele seja.

Por Antônio Cândido

Ensaista e Crítico literário emérito

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