terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Bancada evangélica faz tempestade com copo d’água

27.02.12 - Brasil

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Adital

A bancada evangélica no Congresso Nacional está fazendo tempestade com um copo d’água. Ficou irada por causa de uma suposta declaração do ministro Gilberto Carvalho. Segundo o site evangélico Gospelprime o motivo da tempestade teria sido uma declaração do ministro no Fórum Social Mundial, afirmando que o PT "precisa disputar as ideologias da classe C com os evangélicos, já que os pastores conseguem controlar a opinião desse grupo”.

Tal declaração mexeu com os ânimos de políticos evangélicos, alguns deles perdendo até mesmo a compostura e usando em seus pronunciamentos termos vulgares para identificar o ministro. Certos pastores, conhecidos por suas histerias na mídia, também perderam a compostura. Nesta hora se esqueceram de que a vulgaridade e a agressividade não condizem com a identidade dos discípulos de Cristo (Mt 5,21-26). Assim terminaram por "aposentar” o Evangelho no qual dizem acreditar. Ambos, políticos e pastores evangélicos, demonstraram a incapacidade de dialogar com o diferente numa sociedade pluralista e democrática. Revelaram com clareza intolerância, arrogância e fundamentalismo. Diante de pessoas que discordam de suas práticas ficam irritados e perdem a compostura.

Vamos partir do pressuposto de que o ministro tenha realmente dito a frase acima. No meu entender disse o óbvio. E por quê? Em primeiro lugar porque "disputar ideologias” numa sociedade democrática é normal, mesmo quando se trata de ideologias religiosas. Líderes religiosos não podem pretender que num país democrático e pluralista como o Brasil suas ideologias, suas posições e suas práticas não sejam questionadas, inclusive por membros do governo. Por que eles têm o direito de questionar o governo sobre determinadas questões e não aceitam que o governo os questione? Isso não faz parte do jogo democrático num país de diversidade cultural e religiosa? Aliás, diga-se de passagem, e com toda sinceridade, a praxe de certas lideranças evangélicas é agressiva, autoritária e desrespeitosa, como se presenciou recentemente em uma audiência pública sobre o projeto de lei que propõe punir a homofobia. Lideranças evangélicas que falaram na audiência deram uma demonstração de histeria descabida, agredindo violentamente os que pensam diferente deles. No pronunciamento deles faltou educação, civilidade e respeito. Queriam impor a todo custo impor suas ideias, usando da violência da palavra.

Esta mesma prática violenta e agressiva é usada pela maioria das lideranças evangélicas na disputa com outras igrejas e religiões para arrebanhar fiéis. Basta ligar a televisão e ver os programas religiosos evangélicos para perceber a arrogância e a pretensão com que falam. Falta humildade, virtude evangélica sem a qual ninguém é justificado (Lc 18,14). Além do mais há práticas agressivas de desrespeito às crenças dos outros. Tais práticas incluem gestos absurdos como o chute de imagens católicas e a invasão de tribos indígenas para destruir seus lugares e símbolos sagrados, chegando ao cúmulo de afirmar que o urucum, tinta usada pelos indígenas para pintar seus corpos, é a "bosta do diabo”.

É visível também a arrogância das lideranças evangélicas no controle dos fiéis. No passado essa prática arrogante foi adotada pela Igreja Católica, a qual fazia uso do medo do inferno, de excomunhões, índices de livros proibidos e até da Inquisição para tentar a todo custo controlar seus fiéis. Hoje ainda existem padres e bispos católicos usando de métodos parecidos, mas em número bem reduzido. Enquanto isso, entre as lideranças evangélicas, a prática do controle de fiéis tem se difundido muito nos últimos anos. Há exceções, mas a maioria deles usa desses truques para "amansar as ovelhas”.

Infelizmente boa parte dos pastores não tem formação teológica e bíblica suficiente. Conhece somente uma tradução portuguesa obsoleta da Bíblia, aquela antiga de João Ferreira de Almeida, escrita numa língua que não é mais falada por ninguém. Além disso, faz uma interpretação literal e fundamentalista da Palavra e, a partir disso, incute medo e gera obsessão nos crentes. Sem falar nas práticas de charlatanismo bem visíveis, especialmente em alguns programas televisivos, em que pares de meias, óleos, livros e objetos "milagrosos” são vendidos a preço de ouro. O marketing e o poder da mídia são usados para forçar os fiéis a adquirirem produtos ou a contribuir financeiramente com as igrejas.

Não vejo, portanto, porque tanto alarde a partir da fala do ministro. Penso que a bancada evangélica deveria se ocupar de outras coisas. Enquanto cristãos deveriam saber que o anúncio do Evangelho não se dá através de palavreados bonitos ou através de sermões histéricos. O anúncio da Boa Notícia se dá através do testemunho dos crentes. Jesus enviou seus discípulos para serem testemunhas dele nos "extremos da terra” (At 1,8) e não para serem lobistas de igrejas nos centros de poder. Note-se bem o detalhe: testemunhas nos "extremos da terra”.

A partir disso, a bancada evangélica deveria, por exemplo, cuidar melhor da elaboração de leis que pudessem beneficiar toda a sociedade brasileira, particularmente os pobres e excluídos, e não apenas os membros de suas igrejas. Gostaria de ver a bancada evangélica comprometida publicamente com a ética na aprovação de leis relacionadas ao salário mínimo, à saúde, à educação, ao desenvolvimento sustentável, aos direitos dos mais desprotegidos e das minorias de nossa sociedade. Gostaria de vê-la posicionando-se claramente ao lado dos indefesos, dos atuais "leprosos” da nossa sociedade, assim como fez Jesus no seu tempo e na sua terra. Desejaria vê-la exigindo melhores explicações para determinadas questões obscuras que envolvem inclusive pessoas de suas igrejas. A mídia tem noticiado casos de enriquecimento rápido de igrejas e de suas lideranças, aumento de patrimônio duvidoso, remessa ilegal de dinheiro para o exterior, aquisição rápida de redes de emissoras de televisão e de rádio, sem que fique clara a procedência do dinheiro.

A bancada evangélica seria mais cristã se, por exemplo, ao invés de brigar com o ministro, se posicionasse claramente pela punição de corruptos, de políticos de trajetória duvidosa, com vários processos na Justiça. Seria mais cristã se por ocasião da votação pela cassação de um colega corrupto manifestasse publicamente seu voto. Não vi tal posicionamento dos políticos evangélicos na recente votação pelo impeachment de uma deputada. Ao que tudo indica também eles engordaram a lista dos que pelo voto secreto absolveram a colega que foi pega com a "mão na botija”. Sem falar dos posicionamentos ambíguos de parlamentares evangélicos em situações como a dos "mensalões”. Segundo a mídia alguns deles estiveram diretamente envolvidos nesses escândalos. Falta-lhes acolher o mandato evangélico: "Diga apenas ‘sim’ quando é ‘sim’ e ‘não’ quando é ‘não’. O que você disser além disso, vem do Maligno” (Mt 5,37).

Procuro seguir com assiduidade as notícias do mundo político, acompanhando inclusive as TVs do Senado e da Câmara. Não tenho visto posicionamento firmes da bancada evangélica pedindo o afastamento e até a punição de políticos, inclusive evangélicos, processados por formação de quadrilha armada, de corrupção passiva, de desvio de dinheiro público e de lavagem de bens. Há, pois, muita coisa a ser esclarecida pela bancada evangélica e a irritação contra a fala do ministro não deve ser usada para jogar "para debaixo do tapete” todas essas interrogações que permanecem sem respostas.

O povo brasileiro está crescendo no conhecimento e na consciência crítica. Evangélicos, protestantes e católicos precisam se dar conta dessa realidade. Passou o tempo da aceitação passiva da manipulação religiosa. Estamos em tempos de trânsito religioso e de relativização da fé. Dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), realizada no ano passado pelo IBGE, revelaram que aumenta o número dos crentes que estão cortando os vínculos com suas igrejas. Este aumento dos cristãos sem igreja afeta também os evangélicos, os quais até bem pouco tempo atrás não sofriam tanto este impacto. E ao se verificar as razões do corte dos vínculos percebe-se com nitidez que as pessoas estão cansadas de tanto palavreado. Elas querem das lideranças de suas igrejas mais coisas concretas, mais respeito pela autonomia e pela liberdade, mais caridade, mais fidelidade real ao Evangelho. Polêmicas estéreis não interessam mais às pessoas sérias que ainda acreditam. Elas estão cansadas de tanto falatório inútil e oportunista.

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