terça-feira, 18 de dezembro de 2012


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Hoje vou falar sobre o último grande filósofo da natureza. Chamava-se Demó-crito (aproximadamente 460-370 a.C.) e vinha da cidade portuária de Abdera, a norte do Mar Egeu. Se conseguiste responder à pergunta acerca das peças do Lego, não te será difícil compreender o projeto deste filósofo.
Demócrito concordava com os seus predecessores ao afirmar que as transformações observáveis na natureza não significavam que algo se alterasse realmente. Admitiu, portanto, que tudo tinha de ser composto de elementos pequenos e invisíveis, eternos e imutáveis. Demócrito de-signava estas pequenas partículas por átomos.
O termo “átomo” significa “indivisível”. Para De-mócrito, era fundamental afirmar que aquilo a partir do qual tudo é formado não pode ser dividido em partes cada vez menores. Se os átomos pudessem ser constantemente
divididos em partes cada vez menores, a natureza teria começado a fluir como uma sopa cada vez mais líquida.
Hoje em dia, a ciência descobriu que os átomos se dividiam em “partículas elementares” ainda menores. A essas partículas elementares chamamos prótons, nêutrons e elétrons. E talvez estas se deixem dividir em partículas ainda menores. Mas os físicos concordam em afirmar que tem de haver um limite. Têm de existir as partículas me-nores a partir das quais a natureza é formada.
Demócrito não tinha acesso aos aparelhos eletrôni-cos do nosso tempo. O seu único instrumento era a razão.
Com a sua teoria atomista, Demócrito pôs um ponto final provisório na filosofia da natureza grega. Es-tava de acordo com Heráclito quando pensava que, na natureza, tudo flui; porque as formas vêm e vão. Mas por detrás de tudo o que flui, há algo eterno e imutável que não flui: os átomos, segundo DemócritoMas enquanto os filósofos gregos procuravam en-contrar explicações naturais para os processos da nature-za, também se formava pouco a pouco uma ciência da história, cujo objetivo era encontrar causas naturais para o curso da história. Já não se atribuía aos desejos de vingan-ça dos deuses o fato de um Estado perder uma guerra. Os historiadores gregos mais conhecidos foram Heródoto (484-424 a. C.) e Tucídides (460-400 a.C.).
Os gregos acreditavam que os deuses eram respon-sáveis pelas doenças. Assim, as doenças contagiosas eram freqüentemente vistas como castigo dos deuses. Em con-trapartida, os deuses podiam tornar os homens saudáveis se lhes fossem oferecidos os sacrifícios devidos.
Esta idéia não é tipicamente grega. Antes de se de-senvolver, em tempos mais recentes, a ciência médica moderna, predominava a opinião segundo a qual cada doença tinha uma causa sobrenatural. A palavra “influen-za” (gripe), que ainda hoje é utilizada, significava origi-nalmente que alguém estava sob a “influência” nefasta dos astros.
Enquanto os filósofos gregos refletiam sobre a na-tureza, desenvolvia-se igualmente na Grécia uma ciência médica, que procurava encontrar explicações naturais para a saúde e para a doença.
Esta ciência médica grega foi supostamente fundada por “Hipócrates”, que nasceu cerca do ano 460 a.C. na ilha de Cós.
A proteção mais importante contra a doença residia,
segundo a tradição hipocrática, na moderação e numa vida saudável. Para um ser humano é natural estar bem; por isso, se se adoece, deve-se procurar o motivo num dese-quilíbrio físico ou psíquico.
A vida saudável reside na moderação, na harmonia e em “uma mente sã num corpo são”. Hoje ainda se fala acerca de “deontologia médica”.
Significa que um médico tem que exercer a sua pro-fissão seguindo determinadas normas éticas. Por exemplo, um médico não pode receitar drogas a pessoas saudáveis. Um médico está também sujeito a um segredo profissio-nal que lhe proíbe contar aquilo que um paciente lhe re-velou sobre a sua doença. Estas idéias vêm de Hipócrates. Os seus discípulos tinham de prestar um juramento ainda hoje conhecido como o juramento hipocrático
Refiro-me à filosofia da natureza, a verdadeira rup-tura com a concepção mítica do mundo. Vamos conhecer agora os três principais filósofos da Antiguidade. Cha-mam-se Sócrates, Platão e Aristóteles. Cada um destes filósofos marcou de uma certa maneira a civilização euro-péia
Sócrates (470-399 a.C.) é talvez a personagem mais enigmática de toda a história da filosofia. Não escreveu uma única linha.
Apesar disso, pertence ao número dos que exerce-ram maior influência no pensamento europeu. O fato de ser conhecido, mesmo por quem não possui muitos co-nhecimentos de filosofia, tem provavelmente a ver com a sua morte trágica.
Sabemos que nasceu em Atenas e que aí passou a sua vida, principalmente nas praças e nas ruas, onde con-versava com todo o tipo de gente. Achava que os campos e as árvores não lhe podiam ensinar nada.
Por vezes, ficava longas horas absorto em reflexão
profunda.
Ainda no seu tempo, era considerado uma pessoa enigmática e após a sua morte foi considerado o precursor das mais diversas orientações filosóficas. E precisamente por ser tão enigmático e ambíguo, variadíssimas orienta-ções o podiam reivindicar.
Sabe-se que era muito feio. Era pequeno e gordo, e tinha olhos salientes e um nariz achatado. Mas interior-mente, dizia-se, era um homem maravilhoso, nunca se poderia encontrar alguém igual a ele.
No entanto, foi condenado à morte devido à sua atividade filosófica.
Conhecemos a vida de Sócrates principalmente a-través de Platão, que era seu discípulo, também ele um dos maiores filósofos da história.
Platão escreveu muitos diálogos — ou conversas filosóficas — nas quais faz participar Sócrates.
Quando Platão põe as palavras na boca de Sócrates, não podemos dizer com certeza que Sócrates as tivesse verdadeiramente pronunciado.
Por isso, não é fácil distinguir a doutrina de Sócrates da de Platão. Este problema é válido, também, para mui-tas outras personalidades históricas que não deixaram fontes escritas. O exemplo mais famoso é obviamente Je-sus. Não podemos ter a certeza de que o “Jesus histórico” tenha dito, de fato, aquilo que Mateus ou Lucas puseram na sua boca.
Da mesma forma, permanecerá sempre um enigma aquilo que o “Sócrates histórico” disse realmente.
Quem era “realmente” Sócrates não é muito im-portante. É principalmente o seu retrato por Platão que inspira os pensadores ocidentais de há quase dois mil e
quatrocentos anos. No ano de 399 a.C. foi acusado de “corromper a juventude” e de “inventar novos deuses”. Por uma maioria apertada, foi declarado culpado por um júri de 500 membros.
Podia ter pedido clemência. Poderia, pelo menos,
ter salvado a sua vida, se estivesse disposto a deixar Ate-nas.
Mas se o tivesse feito, não teria sido Sócrates, por-que a própria consciência — e a verdade — eram mais importantes do que a vida. Insistia que só agira para o bem do Estado, mas, mesmo assim, foi condenado à morte. Pouco tempo depois, e em presença dos seus ami-gos mais próximos, bebeu uma taça de cicuta. Tanto Jesus como Sócrates eram já considerados pelos seus contemporâneos pessoas enigmáticas. Nenhum deles escreve a sua mensagem, por isso estamos completamente dependentes da imagem que os seus discípulos nos dão deles. Sabe-se, no entanto, que ambos eram mestres na arte de comunicar. Além disso, expressavam-se de uma forma clara, o que tanto poderia encantar como irri-tar.
E ambos acreditavam ser portadores de uma mensagem maior que eles mesmos. Desafiavam aqueles que detinham o poder na sociedade porque criticavam todas as formas de injustiça e de abuso de poder. E ainda: esta ati-vidade custou a ambos a vida.
Inclusivamente nos processos contra Jesus e Sócra-tes vemos claros paralelismos.
Ambos poderiam ter talvez pedido clemência e sal-vo assim as suas vidas. Mas acreditavam estar a trair as
suas convicções se não fossem até ao fim. E o fato de te-rem enfrentado a morte de cabeça erguida tornou-os dig-nos da confiança de todos, mesmo após a morte.
Se faço este paralelismo entre Jesus e Sócrates não é porque os ache semelhantes.
Queria apenas sublinhar que é impossível dissociar a sua mensagem da sua coragem.
Bem vinda a Atenas, Sofia. Com certeza, já cal-culaste que eu seria Alberto Knox. Se ainda não tinhas pensado nisso, repito apenas que o coelho branco ainda
está a ser retirado da cartola do universo. Estamos na A-crópole. Esta palavra significa: “cidadela” — ou propria-mente: “a cidade sobre as colinas”. Aqui em cima viveram homens desde a Idade da Pedra. Isso está relacionado com a posição privilegiada deste lugar. Era fácil defender este planalto de inimigos. Da Acrópole desfrutava-se de um belo panorama sobre um dos melhores portos do Me-diterrâneo. À medida que Atenas se expandia na planície, no sopé do planalto, a Acrópole foi utilizada como forta-leza e como área dos templos. Na primeira metade do sé-culo V a.C., rebentou uma guerra sangrenta contra os persas e, no ano de 480, o rei persa “Xerxes” fez saquear Atenas e incendiar todos os antigos edifícios de madeira da Acrópole. No ano seguinte, os persas foram derrota-dos, e iniciou-se então o período áureo de Atenas, Sofia.
A Acrópole foi reconstruída — mais imponente e bela que nunca — e tornou-se a partir de então exclusi-vamente zona dos templos.
Precisamente nesta altura, Sócrates andava pelas ru-as e pelas praças falando com os atenienses. Desta forma, pôde observar a reconstrução da Acrópole e a construção de todos os edifícios imponentes que aqui vemos. Que grande terreno de construção!
Por detrás de mim vês o templo maior. Chama-se Parténon — ou “morada das virgens” — e foi construído em honra da deusa “Atena”, a deusa protetora de Atenas.
Esta grande obra de mármore não apresenta ne-nhuma linha reta, todos os lados apresentam uma ligeira curvatura.
Assim, o edifício teria uma estrutura mais dinâmica.
Apesar de o templo ser de grandes dimensões, não parece tão pesado a quem o vê. Isso deve-se a uma ilusão
ótica. Mesmo as colunas estão ligeiramente curvadas para dentro e formariam uma pirâmide de mil e quinhentos metros de altura se fossem suficientemente compridas para se encontrarem num ponto acima do templo. A única coisa que havia no interior deste enorme edifício era uma estátua de Atena, com doze metros de altura. Devo ainda acrescentar que o mármore branco, que estava pintado de cores vivas, foi retirado de uma montanha a dezesseis quilômetros de distância...
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Platão (428-347 a.C.) tinha 29 anos quando Sócrates teve de beber a taça de cicuta. Fora discípulo de Sócrates por muito tempo e seguiu atentamente o processo instau-rado contra ele. Que Atenas pudesse condenar à morte o homem mais nobre da cidade não provocou nele apenas uma impressão indelével; isso iria determinar a orientação de toda a sua atividade filosófica.
Para Platão, a morte de Sócrates demonstrou muito claramente qual é a contradição que pode existir entre as condições de fato numa sociedade e o que é verdadeiro e ideal.
Platão, ao transcrever o discurso da Apologia de Sócrates, desempenhou uma importantíssima tarefa. Aí narrou tudo o que Sócrates expôs ao tribunal.
Com certeza recordas ainda que Sócrates não es-creveu nada pela sua própria mão.
Muitos pré-socráticos haviam-no feito, mas a maior parte dos seus textos não se conservou para a posteridade.
No que diz respeito a Platão, pensa-se que todas as suas obras principais se conservaram. (Além da Apologia de Sócrates, escreveu um conjunto de cartas e mais de trinta e cinco diálogos filosóficos). Se estes escritos se conservaram deve-se ao fato de Platão ter fundado perto de Atenas a sua própria escola filosófica, num pequeno bosque, que tinha o nome do lendário herói grego Aca-
demo. A escola de filosofia de Platão recebeu assim o nome de Academia (sinônimo também de universidade). (Desde então, foram abertas em todo o mundo milhares de academias. Falamos ainda de “acadêmicos” e de “disci-plinas acadêmicas”).
Na Academia de Platão lecionava-se filosofia, ma-temática e ginástica. Talvez o termo “lecionar” não seja o mais adequado. Na Academia de Platão também se usava o diálogo vivo. Não é por acaso que o diálogo tenha sido a sua forma privilegiada de escrita.
“O eternamente verdadeiro, eternamente belo e e-ternamente bom”
No início deste curso de filosofia, eu disse-te que, por vezes, vale a pena perguntar qual o projeto de um de-terminado filósofo. E por isso pergunto agora: o que é que Platão queria descobrir?
Para resumir em poucas palavras:
Platão interessava-se por um lado pela relação entre aquilo que é eterno e imutável e, por outro, por aquilo que “flui”. (Exatamente como os pré-socráticos!).
Dissemos que tanto os sofistas como Sócrates se tinham afastado das questões da filosofia da natureza e se tinham interessado mais pelos homens e pela sociedade. E isso está certo; mas tanto os sofistas como Sócrates se ocupavam também, de certa maneira, da relação que existe entre o que é eterno e constante — e aquilo que “flui”.
Preocupavam-se com esta questão quando se trata-va da moral humana e dos ideais ou virtudes da sociedade. Os sofistas achavam, grosso modo, que o conceito de jus-tiça e de injustiça variava de cidade-estado para cida-de-estado e de geração para geração. A questão da justiça e da injustiça seria, portanto, algo “fluido”. Sócrates não
podia aceitar isto. Acreditava em regras ou normas eternas e intemporais para o procedimento humano. Quando usamos apenas a nossa razão, segundo ele, podemos compreender todas essas normas imutáveis, porque a ra-zão humana é justamente algo eterno e imutável.
Estás a seguir-me, Sofia?
E agora vem Platão. Ele interessa-se tanto por a-quilo que é eterno e imutável na natureza — como por aquilo que na moral e na sociedade é eterno e imutável. Sim, para Platão trata-se de uma mesma coisa. Ele procura obter uma “realidade” própria que seja eterna e imutável. E na verdade é precisamente para isso que temos filóso-fos. Para eles não se trata de eleger a mulher mais bela do ano ou a verdura mais barata. (Por isso, eles nem sempre são populares!). Os filósofos procuram dar pouca atenção a essas coisas frívolas e efêmeras. Procuram mostrar o que é “verdadeiro” em si, “belo” em si, e “bom” em si.
Com isto, temos uma idéia dos contornos do pro-jeto filosófico de Platão. A partir de agora, consideramos uma coisa de cada vez. Vamos tentar compreender a visão deste pensador que deixou vestígios profundos em toda a filosofia européia posterior. “Aristóteles” (384-322 a.C.). Ele foi durante vinte anos aluno na Academia de Platão.
Aristóteles não era um ateniense. Era natural da Macedônia, mas foi para a Academia quando Platão tinha 61 anos. O pai era um médico reconhecido — ou seja, um cientista. Este pano de fundo já nos diz algo sobre o pro-jeto filosófico de Aristóteles.
O que  interessava acima de tudo era a natureza viva. Não foi apenas o último grande filósofo grego, foi também o primeiro grande biólogo da Europa.
Se quisermos formular tudo de um modo um tanto exagerado, podemos dizer que Platão es-tava tão concentrado nas formas ou “idéias” eternas que mal reparava nas transformações da natureza.
Aristóteles, pelo contrário, interessava-se precisa-mente pelas transformações — ou aquilo que nós hoje designamos por processos físicos.
Se quisermos exagerar ainda mais, podemos dizer
que Platão se afastava do mundo sensível e só distinguia passageiramente aquilo que vemos à nossa volta. (Ele que-ria sair da caverna! Queria olhar para o eterno mundo das idéias!). Aristóteles fazia exatamente o inverso: dirigia-se à natureza e estudava peixes e rãs, anêmonas e papoulas.
Podes dizer que Platão usou apenas o seu entendi-mento; Aristóteles, por seu lado, usou também os senti-dos.
Até na sua maneira de escrever encontramos claras diferenças. Enquanto Platão era poeta e criador de mitos, os textos de Aristóteles são secos e pormenorizados como uma enciclopédia. Em compensação, na origem de muitas coisas acerca das quais ele escreve, há estudos naturalistas intensivos.
Na Antiguidade são referidos mais de 170 títulos que Aristóteles terá escrito. Hoje, conservam-se 47 textos. Não se trata de livros acabados. A maior parte dos textos de Aristóteles são constituídos por apontamentos para as lições. Mesmo no tempo de Aristóteles, a filosofia era principalmente uma atividade oral. A importância de A-ristóteles para a cultura européia não reside apenas no fato de ele ter criado a linguagem técnica que ainda hoje as di-versas ciências utilizam. Ele foi o grande sistemático que fundou e ordenou as diversas ciências.
Como Aristóteles escreveu sobre todas as ciências, vou tratar apenas de algumas das áreas mais importantes.
Dado que falei tanto de Platão, deves saber primei-ro como é que Aristóteles argumenta contra a teoria das idéias de Platão. Depois, vamos ver como é que ele con-cebe a sua própria filosofia da natureza. Aristóteles reca-pitulou aquilo que os filósofos da natureza antes dele dis-seram. Vamos ver como é que ele ordena os nossos con-
ceitos e funda a lógica como ciência. Por fim, vou falar ainda um pouco da visão de Aristóteles acerca do homem e da sociedade. Se aceitares estas condições, só precisamos arregaçar as mangas e começar.
“Não há idéias inatas”
Tal como os filósofos anteriores, também Platão queria encontrar algo eterno e imutável no meio de todas as transformações. Deste modo, encontrou as idéias per-feitas, que são superiores ao mundo sensível. Além disso, para Platão, estas idéias eram mais reais do que todos os fenômenos na natureza.
Primeiro, vinha a idéia “cavalo” — em seguida, to-dos os cavalos do mundo sensível, que galopavam como cópias na parede de uma caverna. Logo, a idéia “galinha” veio antes da galinha e do ovo


Deste modo, não há na natureza limites verdadei-ramente definidos. Vemos uma passagem gradual de plantas mais simples para plantas mais complexas, de ani-mais simples para animais complexos. No cimo desta es-cala está o homem — que, segundo Aristóteles, reúne to-da a vida da natureza. O homem cresce e alimenta-se, tal como as plantas, tem sensações e a capacidade de se mo-ver, tal como os animais, mas, além disso, tem uma carac-terística muito particular, que só o homem possui: a capa-cidade de pensar racionalmente.
Deste modo, o homem possui uma centelha da ra-zão divina, Sofia. Sim, eu disse “divina”. Em alguns pas-sos, Aristóteles explica que tem de haver um Deus que deu origem a todos os movimentos da natureza. Deste modo, Deus representa o vértice absoluto na escala da natureza.
Aristóteles acreditava que os movimentos das estre-las e dos planetas regiam os movimentos aqui na terra. Mas tinha de haver algo que movesse os corpos celestes. A esse algo chamava Aristóteles “o primeiro motor” ou Deus. O primeiro motor não se move, mas é a primeira causa dos movimentos dos corpos celestes e, conseqüen-temente, de todos os movimentos na natureza. “Política”
A idéia de que o homem não deve levar nada ao ex-tremo, na vida, está também patente na visão aristotélica
da sociedade. Aristóteles afirmava que o homem é um “ser social”. Na sua opinião, sem a sociedade à nossa volta não somos verdadeiros homens. A família e a cidade sa-tisfazem as necessidades vitais mais básicas como a ali-mentação e o calor, o casamento e a educação dos filhos. Todavia, a forma mais elevada de comunidade humana só pode ser, para Aristóteles, o Estado.
Com isto coloca-se a questão: como é que o Estado deveria ser organizado? (Ainda te recordas do Estado pla-tônico dos filósofos?). Aristóteles menciona várias formas boas de governo. Uma delas é a “monarquia” — significa que há um único chefe supremo do Estado. Para que esta forma de Estado seja boa, não pode degenerar em “tira-nia”, caso em que um único soberano governa o Estado em seu próprio proveito. Uma outra forma boa de Estado é a “aristocracia”. A aristocracia é o governo de um grupo restrito de indivíduos. Esta forma de Estado tem de se precaver para não degenerar numa oligarquia, um regime no qual apenas são salvaguardados os interesses de poucas pessoas.
Uma terceira forma de Estado é a “democracia”. Mas também esta forma de Estado tem o seu lado contrá-rio.
Uma democracia pode facilmente degenerar numa “oclocracia” que significa governo da multidão. (Mesmo que Hitler não se tivesse tornado chefe de Estado da A-lemanha, muitos pequenos nazis teriam podido estabele-cer uma terrível “oclocracia”). Isto era Platão, Sofia.
“A concepção da mulher”
Finalmente, temos de dizer algo acerca da opinião de Aristóteles sobre a mulher. Infelizmente, não era tão animadora como a de Platão.
Aristóteles pensava que algo faltava à mulher. Ela é um “homem incompleto”. Na reprodução, a mulher é passiva e receptora, enquanto o homem é ativo e doador. Por isso, segundo Aristóteles, a criança herdava apenas as características do homem.
Todas as características da criança estavam contidas no sêmen do homem. A mulher é como o terreno que recebe e conserva a semente, enquanto o homem é o pró-prio “semeador”. Ou, dito de uma forma verdadeiramente aristotélica: o homem dá a “forma”, a mulher dá a “maté-ria”. É surpreendente e lamentável que um homem tão perspicaz como Aristóteles se pudesse enganar de tal A concepção aristotélica da mulher é particularmente grave porque se tornou predominante durante a Idade Média, e não a de Platão.
Deste modo, também a Igreja herdou uma concep-ção da mulher para a qual não há justificação nenhuma na Bíblia.
Jesus não era de modo algum inimigo das mulheres!
Por agora não digo mais nada! Mas continuarás a ter notícias minhas.
Após ter lido duas vezes o capítulo acerca de Aris-tóteles, Sofia meteu de novo as folhas no envelope ama-relo e olhou ao seu redor. Viu logo que estava tudo de-sarrumado. No chão, havia livros e “dossiês”. Do armário saíam camisas, meias e “jeans”. Em cima da cadeira, junto à escrivaninha, estavam vestidos sujos, misturados.
Sofia sentiu um impulso irresistível de “arrumar”.
Em primeiro lugar, despejou todas as gavetas do armário.
Pôs os vestidos no chão. Era importante começar tudo do princípio. Assim, deu-se ao trabalho de dobrar
cuidadosamente todas as peças de vestuário, e de as colo-car nas prateleiras. No armário havia sete prateleiras. Sofia reservou uma para as cuecas e para as camisolas, outra para meias e uma para calças. Deste modo encheu por ordem todas as prateleiras do armário. Nunca teve dúvi-das sobre o lugar de cada peça de roupa. As coisas que deviam ser lavadas colocou — as num saco de plástico que encontrara na prateleira do fundo.
Só uma única peça de roupa lhe dava problemas. Era uma meia branca comprida, normalíssima. O proble-ma não era apenas o fato de a segunda meia faltar. A meia nunca pertencera a Sofia.
Observou a meia branca durante alguns minutos. Não havia nenhum nome escrito.
Mas Sofia tinha uma forte suspeita de quem era a dona.
Atirou-a para a prateleira mais alta juntamente com o saco de peças de Lego, a fita de vídeo e o lenço de seda vermelho.
Era a vez do chão. Sofia separou livros e “dossiês”, revistas e cartazes — exatamente como o seu professor de filosofia tinha descrito no capítulo sobre Aristóteles. Quando o chão já estava despachado, fez primeiro a cama, e em seguida passou à escrivaninha.
No fim de tudo, pôs as folhas sobre Aristóteles num monte ordenado. Pegou num “dossiê” vazio e num furador, furou as folhas e juntou-as por ordem no “dossi-ê”. Colocou o “dossiê” no armário, junto à meia branca. Mais tarde, iria à toca buscar a caixa dos biscoitos.
A partir daí, devia haver ordem nas coisas. Sofia não pensava apenas nas coisas do quarto.
Sofia refletiu um bom bocado antes de começar a escrever. Poderia aproveitar alguma coisa do que apren-dera com Alberto Knox? Tinha de aproveitar, porque há muitos dias que não olhava para o livro de religião. Mal tinha começado a escrever, as frases brotaram.
Sofia escreveu que podemos saber que a Lua não é um queijo e que no seu lado oculto também há crateras, que tanto Sócrates como Jesus foram condenados à mor-te, que todos os homens têm de morrer mais tarde ou mais cedo, que os grandes templos da Acrópole foram construídos cerca do ano 400 a.C. após as guerras contra os Persas e que o oráculo grego mais famoso era o de Delfos. Como exemplos daquilo em que podemos acredi-tar, Sofia escreveu que, nos outros planetas, há vida ou não, que Deus existe ou não, que há vida após a morte ou não, e que Jesus era filho de Deus ou apenas um homem inteligente. “De qualquer modo, não podemos saber de onde vem o mundo” escreveu ela, por fim.
Alexandre Magno era rei da Macedônia. Aristóteles também vinha da Macedônia, e durante algum tempo chegou mesmo a ser professor do jovem Alexandre. Ale-xandre alcançou a última e decisiva vitória sobre os persas e, através das suas inúmeras campanhas, criou um império vastíssimo que compreendia a Grécia, o Egito, a Pérsia e se estendia até à Índia.
Começa então uma época nova na história da hu-manidade, caracterizada pelo desenvolvimento de uma comunidade internacional em que a cultura e a língua gre-gas desempenham um papel dominante. Este período, que durou cerca de três séculos, é denominado “Helenismo”, termo que designa tanto um período histórico como a su-premacia da cultura grega nos três grandes reinos helenís-ticos — a Macedônia, a Síria e o Egito.
A partir do ano 50 antes de Cristo, Roma assumiu a hegemonia política e militar. A nova potência conquistou, uns a seguir aos outros, todos os reinos helenísticos e, a partir de então, a cultura romana e a língua latina domina-ram desde a Espanha, a ocidente, até ao interior da Ásia. Começa então o período romano também designado por “Antiguidade tardia”.
Mas deves reparar numa coisa: antes de os Roma-nos conquistarem o mundo helenístico, Roma tinha-se tornado uma província cultural grega. Deste modo, a cul-
tura grega — e a filosofia grega — teriam ainda um papel importante depois do declínio político da Grécia.
“Religião, filosofia e ciência”
O Helenismo foi marcado pelo desaparecimento das fronteiras entre os diversos países e culturas. Anteri-ormente, Gregos, Romanos e Egípcios, Babilônios, Sírios e Persas tinham venerado os seus deuses dentro do que geralmente chamamos uma “religião nacional”. Nesta fase as diversas culturas misturaram-se e fundiram-se num grande caldeirão que continha idéias religiosas, filosóficas e científicas de todo o tipo.
Podemos dizer que a ágora urbana foi substituída pela arena mundial. Também a ágora antiga foi animada por vozes que ofereciam as suas diversas mercadorias, e diferentes pensamentos e idéias.
A novidade era que as ágoras eram agora invadidas por mercadorias e idéias de todo o mundo. Por isso, as vozes soavam em diversas línguas diferentes.
Já referimos que as concepções gregas se difundi-ram muito para além dos antigos territórios gregos. A par-tir de então, deuses orientais eram também adorados em toda a região do Mediterrâneo.
Nasceram várias religiões novas cujos deuses e concepções religiosas provinham de diversas culturas an-tigas.
Este fenômeno é designado por fusão de religiões ou “sincretismo”.
Anteriormente, os homens sentiam-se vinculados ao seu próprio povo e à sua própria cidade-estado. Como essas fronteiras e divisões eram cada vez mais postas de
parte, muitos sentiram dúvidas e insegurança em relação à sua concepção de vida. A Antiguidade tardia foi marcada, em geral, pelas dúvidas religiosas, pela desagregação cul-tural e pelo pessimismo.
“O mundo está velho”, dizia-se.
As novas religiões que surgiram então tinham duas características em comum: fundavam-se em doutrinas que aspiravam a libertar os homens da angústia da morte; além disso, muitas destas doutrinas eram secretas. Seguindo os seus preceitos e participando em determinados rituais, o homem podia esperar obter a imortalidade da alma e uma vida eterna. O conhecimento acerca da verdadeira nature-za do universo podia ser tão importante para a salvação da alma como os rituais.
Eram as novas religiões, Sofia. A filosofia caminha-va também no sentido da “salvação” e da serenidade no que diz respeito à vida. A visão filosófica não tinha apenas um valor em si mesma, como ainda devia libertar os ho-mens da angústia da morte e do pessimismo. Desta forma, apagaram-se os limites entre a religião e a filosofia.
De um modo geral, podemos dizer que a filosofia do Helenismo não foi particularmente original. Não apa-receu nenhum outro Platão ou Aristóteles. Em vez disso, os três grandes filósofos atenienses tornaram-se uma im-portante fonte de inspiração para diversas correntes filo-sóficas, das quais vou falar sucintamente.
“A ciência” do Helenismo também estava influen-ciada pela mistura de diversas experiências culturais. A cidade de Alexandria, no Egito, tinha um papel chave como ponto de encontro do Oriente e do Ocidente. En-quanto Atenas continuava a ser a capital da filosofia, com as escolas filosóficas deixadas por Platão e Aristóteles, Alexandre Magno era rei da Macedônia. Aristóteles também vinha da Macedônia, e durante algum tempo chegou mesmo a ser professor do jovem Alexandre. Ale-xandre alcançou a última e decisiva vitória sobre os persas e, através das suas inúmeras campanhas, criou um império vastíssimo que compreendia a Grécia, o Egito, a Pérsia e se estendia até à Índia.
Começa então uma época nova na história da hu-manidade, caracterizada pelo desenvolvimento de uma comunidade internacional em que a cultura e a língua gre-gas desempenham um papel dominante. Este período, que durou cerca de três séculos, é denominado “Helenismo”, termo que designa tanto um período histórico como a su-premacia da cultura grega nos três grandes reinos helenís-ticos — a Macedônia, a Síria e o Egito.
A partir do ano 50 antes de Cristo, Roma assumiu a hegemonia política e militar. A nova potência conquistou, uns a seguir aos outros, todos os reinos helenísticos e, a partir de então, a cultura romana e a língua latina domina-ram desde a Espanha, a ocidente, até ao interior da Ásia. Começa então o período romano também designado por “Antiguidade tardia”.
Mas deves reparar numa coisa: antes de os Roma-nos conquistarem o mundo helenístico, Roma tinha-se tornado uma província cultural grega. Deste modo, a cul-
tura grega — e a filosofia grega — teriam ainda um papel importante depois do declínio político da Grécia.
“Religião, filosofia e ciência”
O Helenismo foi marcado pelo desaparecimento das fronteiras entre os diversos países e culturas. Anteri-ormente, Gregos, Romanos e Egípcios, Babilônios, Sírios e Persas tinham venerado os seus deuses dentro do que geralmente chamamos uma “religião nacional”. Nesta fase as diversas culturas misturaram-se e fundiram-se num grande caldeirão que continha idéias religiosas, filosóficas e científicas de todo o tipo.
Podemos dizer que a ágora urbana foi substituída pela arena mundial. Também a ágora antiga foi animada por vozes que ofereciam as suas diversas mercadorias, e diferentes pensamentos e idéias.
A novidade era que as ágoras eram agora invadidas por mercadorias e idéias de todo o mundo. Por isso, as vozes soavam em diversas línguas diferentes.
Já referimos que as concepções gregas se difundi-ram muito para além dos antigos territórios gregos. A par-tir de então, deuses orientais eram também adorados em toda a região do Mediterrâneo.
Nasceram várias religiões novas cujos deuses e concepções religiosas provinham de diversas culturas an-tigas.
Este fenômeno é designado por fusão de religiões ou “sincretismo”.
Anteriormente, os homens sentiam-se vinculados ao seu próprio povo e à sua própria cidade-estado. Como essas fronteiras e divisões eram cada vez mais postas de
parte, muitos sentiram dúvidas e insegurança em relação à sua concepção de vida. A Antiguidade tardia foi marcada, em geral, pelas dúvidas religiosas, pela desagregação cul-tural e pelo pessimismo.
“O mundo está velho”, dizia-se.
As novas religiões que surgiram então tinham duas características em comum: fundavam-se em doutrinas que aspiravam a libertar os homens da angústia da morte; além disso, muitas destas doutrinas eram secretas. Seguindo os seus preceitos e participando em determinados rituais, o homem podia esperar obter a imortalidade da alma e uma vida eterna. O conhecimento acerca da verdadeira nature-za do universo podia ser tão importante para a salvação da alma como os rituais.
Eram as novas religiões, Sofia. A filosofia caminha-va também no sentido da “salvação” e da serenidade no que diz respeito à vida. A visão filosófica não tinha apenas um valor em si mesma, como ainda devia libertar os ho-mens da angústia da morte e do pessimismo. Desta forma, apagaram-se os limites entre a religião e a filosofia.
De um modo geral, podemos dizer que a filosofia do Helenismo não foi particularmente original. Não apa-receu nenhum outro Platão ou Aristóteles. Em vez disso, os três grandes filósofos atenienses tornaram-se uma im-portante fonte de inspiração para diversas correntes filo-sóficas, das quais vou falar sucintamente.
“A ciência” do Helenismo também estava influen-ciada pela mistura de diversas experiências culturais. A cidade de Alexandria, no Egito, tinha um papel chave como ponto de encontro do Oriente e do Ocidente. En-quanto Atenas continuava a ser a capital da filosofia, com as escolas filosóficas deixadas por Platão e Aristóteles,
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“Misticismo”
Uma experiência mística é uma experiência de uni-dade com Deus ou com o “mundo espiritual”. Muitas re-ligiões afirmam que entre Deus e a Criação há um abismo; mas o místico sente que esse abismo não existe. Os mís-ticos e as místicas sentem uma “fusão com Deus”.
Sucede que aquilo a que geralmente chamamos “eu” não é o nosso verdadeiro eu. Por breves momentos, po-demos ter a experiência de uma identificação com um eu maior. Alguns chamam-lhe Deus, outros “mundo espiri-tual”, “natureza absoluta” ou “universo”. Na fusão, o mís-tico sente que “se perde a si mesmo”, desaparece ou per-
de-se em Deus, tal como uma gota de água “se perde” quando se mistura no oceano. Um místico indiano disse outrora o seguinte:
“Quando eu existia, Deus não existia. Agora, Deus existe e eu já não existo.”
O místico cristão “Angelus Silesius” (1624-1677) afirmou: “A gota torna-se oceano quando atinge o ocea-no, a alma torna-se Deus quando alcança Deus”.
Talvez estejas a pensar que não é muito agradável “a idéia de se perder a si mesmo”. Compreendo o que pensas, Sofia, mas o importante é que aquilo que tu perdes é inferior em relação ao que ganhas. Perdeste quanto à forma que possuis de momento, mas ao mesmo tempo compreendes que na realidade és algo infinitamente maior. És todo o universo. És a alma do mundo, Sofia. És Deus. Se tens de renunciar a ti mesma como Sofia Amundsen, podes consolar-te com a idéia de que um dia perderás o teu “eu quotidiano”. O teu verdadeiro eu — que só podes descobrir quando consegues libertar-te a ti mesma — é, para os místicos, um fogo maravilhoso que arde eterna-mente.
Mas uma experiência mística deste gênero nem sempre vem por si mesma. Muitas vezes, o místico tem de percorrer uma via de purificação e de iluminação para poder encontrar Deus. Essa via consiste numa vida sim-ples e na meditação. De repente, o místico atinge então a sua meta e pode exclamar: “eu sou Deus” ou “Eu sou Tu!”.Encontramos em todas as grandes religiões correntes místicas, e aquilo que os místicos escrevem sobre a sua experiência mística revela notáveis semelhanças, apesar das diferenças culturais. Só quando o místico tenta dar uma interpretação religiosa ou filosófica à sua experiência
mística é que o ambiente cultural se torna manifesto.
Na “mística ocidental” — ou seja, no judaísmo, no cristianismo e no islamismo — o místico afirma sentir o encontro com um Deus pessoal. Apesar de Deus estar presente na natureza e na alma humana, está além deste mundo. Na “mística oriental” — ou seja, no hinduísmo, no budismo e na religião chinesa — o místico experimen-ta uma fusão total com Deus ou com a “alma do mundo”. “Eu sou a alma do mundo”, poderá dizer o místico, ou “eu sou Deus”.
Porque Deus não só está presente no mundo, como não está em qualquer outro lugar.
Antes de Platão, havia fortes correntes místicas, principalmente na Índia. “Swami Vivekananda”, que con-tribuiu para a difusão do hinduísmo no Ocidente, afirmou: “Tal como certas religiões do mundo afirmam que um homem que não acredita num Deus pessoal transcendente é ateu, nós afirmamos que um homem que não acredita em si mesmo é ateu. Não acreditar na grandeza da própria alma é aquilo que chamamos ateísmo”.
Uma experiência mística também pode ser impor-tante do ponto de vista da ética.Um presidente da Índia, “Radhakrishnan”, afirmou um dia: “Deves amar o teu próximo como a ti mesmo, porque tu és o teu próximo. Só uma ilusão te leva a pensar que o teu próximo é um outro em relação a ti mesmo”.
Homens que não pertençam a nenhuma religião também podem relatar experiências místicas. De repente, vivem algo a que chamam “consciência cósmica” ou “sen-timento oceânico”. Sentem-se arrancados ao tempo e vêem o mundo “do ponto de vista da perspectiva da eter-nidadVimos como os filósofos do Helenismo assimilaram os antigos filósofos gregos, e como alguns foram funda-dores de seitas religiosas. Plotino prestou homenagem a Platão como se se tratasse de um redentor da humanidade.
Mas, como sabemos, no mesmo período nasceu um outro redentor fora do âmbito cultural greco-romano. Re-firo-me a Jesus de Nazaré. Vamos ver neste capítulo como o cristianismo foi penetrando no mundo greco-romano — mais ou menos como o mundo de Hilde começou lenta-mente a penetrar no nosso mundo.
Jesus era judeu, e os judeus pertencem à cultura se-mítica. Os gregos e os romanos pertencem à cultura in-do-européia. Podemos constatar que a civilização européia tem duas raízes. Antes de observarmos melhor como é que o cristianismo se mistura lentamente com a cultura greco-romana, vamos tratar dessas duas raízes.
“Os indo-europeus”
Designamos por “indo-europeus” todos os países e culturas onde se falam línguas indo-européias. Pertencem
a este grupo todas as línguas européias, exceto as línguas ugrofínicas (lapão, finlandês, estônio e húngaro) e basco. A maior parte das línguas indianas e iranianas pertencem à família lingüística indo-européia.
Há cerca de quatro mil anos, os primeiros in-do-europeus viviam provavelmente na região do mar Ne-gro e do mar Cáspio. Pouco depois, essas tribos in-do-européias começaram a migrar para o Sudeste, para o Irão e para a índia; para o Sudoeste, para a Grécia, Itália e Espanha; para Oeste, através da Europa Central, para In-glaterra e França; para Noroeste, para a Escandinávia; e para o Norte, para a Europa de Leste e Rússia. Por toda a parte, os indo-europeus foram-se misturando com as cul-turas anteriores, se bem que a religião e a língua in-do-européias desempenhassem um papel dominante.
Tanto os antigos escritos indianos védicos como a filosofia grega e inclusivamente a mitologia de “Snorri” estão, portanto, escritos em línguas aparentadas. Este pa-rentesco não se limita às línguas. As línguas aparentadas correspondem geralmente a idéias aparentadas. Por isso podemos falar de uma “cultura indo-européia”.
A cultura dos Indo-europeus era principalmente caracterizada pela crença em vários deuses diferentes, ou seja, pelo “politeísmo”. Encontramos em toda a área in-do-européia nomes de deuses, muitos termos religiosos importantes e expressões semelhantes. Vou dar alguns exemplos:
Os antigos hindus veneravam o deus “Dyaus”. Em grego, este deus chama-se “Zeus”, em latim “Júpiter” (na realidade “Iovpater”, ou seja, “pai Iov”), e em antigo nór-dico “Tyr”. Os nomes Dyaus, Zeus, Iov e Tyr são, por-tanto, diferentes variantes da mesma palavra.
Talvez ainda te lembres que os Vikings no Norte da Europa veneravam deuses a que chamavam “ases”. Tam-bém encontramos este termo para “deuses” no conjunto do âmbito indo-europeu. Em antigo hindu (sânscrito), os deuses chamam-se “asura”, em antigo persa “ahura”. Uma outra palavra para deus em sânscrito é “deva”, em persa “daeva”, em latim “deus” e em antigo nórdico “tivurr”.
No Norte da Europa havia ainda um grupo próprio de divindades da fertilidade (por exemplo, Njõrd, Freyr, Freyja). Estas divindades eram designadas “vanes”. Esta palavra é aparentada com o nome da deusa latina da ferti-lidade “Vênus”. Em sânscrito há o termo aparentado “va-ni”, que significa “prazer” ou “desejo”.
Determinados mitos apresentam em toda a área in-do-européia um claro parentesco. Quando Snorri fala a-cerca dos antigos deuses nórdicos, alguns mitos fazem recordar mitos hindus que foram narrados dois ou três mil anos antes. Obviamente, os mitos de Snorri estão relacio-nados com a natureza nórdica e os indianos com a natu-reza indiana. Mas muitos dos mitos têm um núcleo que aponta para uma origem comum.
Este núcleo é claramente visível nos mitos sobre as poções da imortalidade e sobre a luta dos deuses contra as forças do caos.
Inclusivamente no próprio pensamento vemos cla-ras conexões entre as culturas indo-européias. Uma seme-lhança típica reside no fato de conceberem o mundo co-mo um combate eterno entre as forças do bem e as forças do mal. Por isso, os indo-europeus procuraram predizer qual seria o futuro do mundo.
Podemos afirmar que não é por acaso que a filoso-fia grega nasceu justamente no âmbito da cultura in-
do-européia. As mitologias indiana, grega e nórdica apre-sentam claros princípios de um pensamento filosófico ou “especulativo”. Os indo-europeus procuravam ter conhe-cimento da evolução do mundo. Podemos inclusivamente seguir em toda a área indo-européia um termo preciso pa-ra “conhecimento” ou “saber” de cultura para cultura. Em sânscrito, este termo é “vidya”. Esta palavra é idêntica à palavra grega “idea”, que como sabes, desempenha um papel importante na filosofia de Platão.
Do latim conhecemos a palavra “video”, que para os romanos significava simplesmente “ver”. (Só nos nos-sos dias é que “ver” é quase sinônimo de fixar o tela da televisão). Do inglês conhecemos as palavras “wise” e “wisdom” (sabedoria), em alemão “weise” e “Wissen”.
Em norueguês temos a palavra “viten”. A palavra norueguesa “viten” tem, portanto, as mesmas raízes que a palavra indiana “vidya”, a grega “idea” e a latina “video”.
Em traços largos, podemos verificar que a visão era o sentido mais importante para os indo-europeus. Entre os indianos e entre os gregos, entre os iranianos e os ger-manos, a literatura é caracterizada por grandes visões cósmicas. (Temos de novo a palavra “visão”, que vem do verbo latino “video”.) Além disso, era costume nas cultu-ras indo-européias produzir pinturas e esculturas dos deu-ses e dos acontecimentos mitológicos.
Finalmente, os indo-europeus tinham uma “con-cepção cíclica da história”. Significa que para eles a histó-ria decorre circularmente — ou em “ciclos” — tal como as estações do ano alternam entre Verão e Inverno. Não há um verdadeiro começo nem um verdadeiro fim da his-tória. Trata-se de civilizações diversas que nascem e pere-cem na alternância constante entre nascimento e morte.
Ambas as grandes religiões orientais — hinduísmo e budismo — são de origem indo — européia. O mesmo é válido para a filosofia grega, e vemos claros paralelismos entre o hinduísmo e o budismo por um lado e a filosofia grega por outro. Ainda hoje o hinduísmo e o budismo estão fortemente influenciados pela reflexão filosófica. Freqüentemente se põe em evidência que no hinduísmo e no budismo o divino está presente em tudo (panteísmo) e que o homem pode alcançar a unidade com Deus através do conhecimento religioso. (Tu lembras-te de Plotino, Sofia!). Para isso, é geralmente necessária uma grande concentração e meditação. No Oriente, a passividade e o recolhimento são um ideal religioso. Na Grécia, era fre-qüente pensar-se que o homem tinha de viver uma vida de ascese — ou retiro religioso — para libertar a sua alma. Alguns elementos da vida monástica medieval remontam a essas concepções do mundo greco-romano.
Em muitas culturas indo-européias a crença na “metempsicose” era também muito importante; assim, no hinduísmo, o objetivo de cada crente é ser libertado um dia da migração das almas. E sabemos que Platão também acreditava na migração das almas.
”.
As três religiões ocidentais — judaísmo, cristianis-mo e islamismo — têm uma base semítica. O “Alcorão”, o texto sagrado do islamismo, e o “Antigo Testamento” estão escritos em línguas semíticas aparentadas. Uma das palavras do Antigo Testamento para “Deus” tem a mesma raiz lingüística que o “Alá” dos muçulmanos. (A palavra “alá” significa simplesmente “Deus”).
No cristianismo, o quadro é mais complicado. O cristianismo também tem uma base semítica. Mas o “No-vo Testamento” foi escrito em grego, e quando a teologia cristã foi formulada, recebeu a influência das línguas grega e latina, e conseqüentemente da filosofia grega.
Sabemos que os indo-europeus acreditavam em muitos deuses. Os semitas adotaram muito cedo a crença num único Deus, que é designada por “monoteísmo”. No judaísmo, no cristianismo e no islamismo a existência de um só Deus é uma idéia fundamental.
Uma outra característica semítica é a concepção li-near da história. Significa que a história era vista linear-mente. Deus criou o mundo, e nesse momento começou a história, que terminará no dia do “juízo final”, quando Deus julgar os vivos e os mortos.
Uma característica importante das três grandes reli-giões ocidentais é precisamente o papel da história. Deus intervém na história e esta existe apenas para que Deus realize a sua vontade no mundo. Tal como outrora Deus conduziu Abraão à Terra Prometida, dirige a vida dos homens através da história até ao dia do juízo, momento em que todo o mal do mundo será destruído.
Devido à importância da ação divina na história, os semitas ocupam-se da historiografia desde há muitos mi-lhares de anos. As raízes históricas estão no centro dos seus escritos religiosos.
Ainda hoje, a cidade de Jerusalém é um importante centro religioso para judeus, cristãos e muçulmanos. Isto diz alguma coisa acerca da base histórica comum a estas três religiões. Existem em Jerusalém importantes sinago-gas (judias), igrejas (cristãs) e mesquitas (muçulmanas). Por isso é tão trágico que esta cidade se tenha tornado um pomo de discórdia — que os homens se matem aos mi-lhares, porque não conseguem chegar a acordo acerca de quem deve ter o domínio da “cidade eterna”.
Esperemos que a ONU consiga um dia que Jerusa-lém se torne um ponto de encontro religioso das três reli-giões!
(Sobre esta parte prática do curso de filosofia não vamos dizer mais nada por enquanto. Deixamos isso ao pai de Hilde. Tu sabes que ele é observador da ONU no Líbano, não é verdade? Para ser mais preciso, posso reve-lar-te que ele presta serviço como major. Se começas a entrever uma relação, é porque é correta. Por outro lado, não quero antecipar o curso dos acontecimentos).
Caracterizamos a visão como o sentido mais im-portante para os indo-europeus. É espantoso o importan-te papel que a audição desempenha na área semítica. Não é por acaso que o ato de fé judaico começa com as pala-vras “Ouve, Israel!”. No Antigo Testamento, lemos como os homens “ouviam” as palavras do Senhor, e os profetas judeus iniciavam as suas predições com a fórmula “assim falou Jeová” (deus). No cristianismo, também se dá im-portância a “ouvir” a palavra de Deus. As cerimônias reli-
giosas hebraicas, cristãs e muçulmanas são caracterizadas principalmente pela leitura em voz alta dos textos sagra-dos.
Mencionei também que os indo-europeus produ-ziam imagens e esculturas dos seus deuses. Para os semi-tas, era proibido representar Deus.
Isto significa que eles não podiam produzir imagens ou esculturas de Deus nem de tudo o que fosse sagrado.
Também no Antigo Testamento se afirma que os homens não podem criar nenhuma imagem de Deus. Esta norma é ainda hoje válida para o islamismo e para o juda-ísmo.
No islamismo, existe uma aversão geral pela foto-grafia e pela arte plástica. Os homens não devem competir com Deus em “criar” algo.
Mas na Igreja Cristã há muitas imagens de Deus e de Jesus, talvez estejas a pensar.É verdade, Sofia, e isso é precisamente um exemplo do fato de o cristianismo ter sido influenciado pelo mundo greco-romano.
(Na Igreja Ortodoxa — ou seja, na Grécia e na Rússia — existe ainda uma proibição de criar imagens es-culpidas, isto é, esculturas e crucifixos com cenas da histó-ria bíblica).
Ao contrário das grandes religiões orientais, as três religiões ocidentais defendem uma separação entre Deus e a sua Criação. O fim não é a libertação da reencarnação, mas ser-se libertado do pecado e da culpa. Além disso, a vida religiosa baseia-se mais na oração, no sermão e na leitura da Bíblia do que na concentração e na meditação.
“Israel”
Agora, não quero entrar em concorrência com o teu professor de religião, cara Sofia, mas vamos ainda obser-var rapidamente a influência hebraica no cristianismo.
Tudo começou quando Deus criou o mundo. Podes ler na primeira página da Bíblia como isso sucedeu. Mas depois, os homens insurgiram-se contra Deus. O castigo não foi apenas a expulsão de Adão e Eva do paraíso. A morte também surgiu no mundo.
A desobediência dos homens em relação a Deus representa o fio condutor de toda a Bíblia. Se continuar-mos a folhear o “Gênesis”, podemos ler acerca do dilúvio e da arca de Noé. Depois lemos que Deus fez um pato com Abraão e o seu povo. Este pato estabelecia que A-braão e o seu povo respeitariam os mandamentos de Deus. E Deus prometeu proteger os sucessores de Abra-ão. Mais tarde, este pato foi renovado, quando “Moisés” recebeu as Tábuas da Lei no monte Sinai (a lei mosaica!). Isto aconteceu cerca de 1200 a.C. Nessa época, os israeli-tas tinham vivido muito tempo no Egito como escravos, mas com a ajuda de Deus o povo foi reconduzido a Israel.
Cerca do ano 1000 a.C., muito antes de existir algo que se chamasse filosofia grega — ouvimos falar de três grandes reis em Israel.
O primeiro foi “Saul”, seguiu-se-lhe “David”, e a-pós David veio “Salomão”. Todo o povo israelita estava unido num reino e, principalmente no reinado do rei Da-vid, viveu um período de prosperidade política, militar e cultural. Quando os reis eram consagrados, eram ungidos pelos sacerdotes. Por isso, tinham o título de Messias, que significa “o ungido”. No contexto religioso, os reis eram
vistos como intermediários entre Deus e o povo. Por isso, os reis podiam ser igualmente designados por “filhos de Deus”, e o país por “reino de Deus”.
Mas o período de esplendor não durou muito. O reino foi dividido em duas partes: “reino do Norte” (Isra-el) e o “reino do Sul” (Judéia). No ano de 722 a.C., o reino do Norte foi ocupado pelos assírios e perdeu toda a im-portância política e religiosa. No Sul, as coisas não corre-ram muito melhor. O reino do Sul foi conquistado pelos babilônios no ano 586 a.C..
O templo de Jerusalém foi destruído, e uma grande parte do povo foi levada para a Babilônia. Este “cativeiro babilônico” só terminou no ano de 539 a.C.. O povo pôde regressar a Jerusalém e reconstruir o grande templo.
Mas até ao início da nossa era, os judeus estiveram sempre sob domínio estrangeiro.
Os judeus perguntavam-se porque é que o reino de David fora destruído e porque é que desgraças após des-graças se abatiam sobre o povo.
Deus tinha prometido proteger Israel. Mas o povo também prometera observar os mandamentos divinos. Por fim, difundiu-se a idéia de que Deus castigara Israel devido à desobediência.
A partir aproximadamente de 750 a.C. surgiu uma série de “profetas” que anunciaram o castigo de Deus so-bre Israel, porque o povo não observava os mandamentos do Senhor. “Um dia, Deus julgará Israel”, diziam. Esses profetas são designados por “profetas do dia do juízo”.
Cedo surgiram também profetas que profetizavam que Deus salvaria uma parte do povo e enviaria um “prín-cipe da paz”, ou um rei da paz, da estirpe de David. Este príncipe da paz deveria erigir de novo o antigo reino de
David e assegurar ao povo um futuro feliz.
“O povo que caminha na escuridão, verá uma grande luz”, afirmou o profeta Isaías, “aqueles que habi-tam na terra da sombra da morte, sobre eles brilhará a luz”.
Esses profetas são designados por “profetas da sal-vação”.
Vou ser mais conciso: o povo de Israel viveu feliz sob o reinado do rei David.
Quando as coisas começaram a correr pior para os israelitas, os profetas profetizaram a vinda de um novo rei da estirpe de David. Este “Messias”, ou “filho de Deus”, havia de “salvar” o povo, restaurar Israel como potência, e construir um “reino de Deus”.
“Jesus”
Bom, Sofia. Parto do princípio de que me estejas a seguir. As palavras-chave são “Messias”, “Filho de Deus”, “salvação” e “Reino de Deus”. De início, tudo isto tinha um significado político. Mesmo na época de Jesus, muitos imaginavam o novo messias como chefe político, militar e religioso do mesmo calibre que o rei David. O salvador era, portanto, visto principalmente como libertador na-cional, o qual poria fim ao sofrimento dos judeus sob o domínio romano.
Mas também se levantaram outras vozes. Já dois séculos antes do nascimento de Cristo, outros profetas tinham anunciado que o messias prometido seria o re-dentor de todo o mundo. Ele não libertaria apenas os isra-elitas do jugo estrangeiro, mas libertaria todos os homens do pecado e da culpa — e também da morte. A esperança
numa salvação neste sentido da palavra também estava difundida em todo o mundo helenístico.
E veio então Jesus. Ele não é o único que surge como o messias prometido e, tal como outros, usa as pa-lavras “filho de Deus”, “reino de Deus”, “Messias” e “salvação”. Deste modo, parte das antigas profecias. Vai para Jerusalém e é venerado pelas massas como salvador do povo.
Assim, faz lembrar os antigos reis que eram entro-nizados através de um “ritual de elevação ao trono” ca-racterístico. Ele também é ungido pelo povo. “O tempo está completo”, afirma, “o reino de Deus chegou”.
É importante notar tudo isto. Mas agora tens de prestar muita atenção: Jesus distinguia-se dos outros que se apresentavam como messias por afirmar muito clara-mente não ser um chefe militar ou político. A sua tarefa era muito maior. Anunciava a salvação e
o perdão de Deus para todos os homens, por isso podia andar entre os homens e dizer: “Os teus pecados são-te perdoados.” Pronunciar isto era inaudito. Por isso, também não foi preciso muito tempo para os escribas le-vantarem protestos contra Jesus. Por fim, empenharam-se também na preparação do seu suplício.
Vou explicar melhor: muitos homens no tempo de Jesus esperavam um messias que havia de restabelecer o reino de Deus com grande poder e esplendor (isto é, com a espada e com a lança). A expressão “reino de Deus” está presente como fio condutor na mensagem de Jesus — aliás com um significado muito mais alargado. Jesus apre-sentava o reino de Deus como amor pelo próximo, solici-tude para com os fracos e perdão para todos os que erra-ram.
Encontramos aqui uma modificação drástica no significado de uma expressão antiga e em parte militar. Os homens esperavam um líder militar que proclamasse o reino de Deus. Chega então Jesus de túnica e sandálias e explica que o reino de Deus ou o “Novo Testamento” significa: “Deves amar o próximo como a ti mesmo.” Além disso, ele afirmou que devemos amar os nossos ini-migos. Se nos dão uma bofetada, não devemos pagar na mesma moeda, mas apresentar a outra face.
E devemos perdoar — não sete vezes, mas setenta vezes sete. Durante a sua vida, Jesus mostrou que não desdenhava falar com prostitutas, publicanos corruptos e indivíduos politicamente subversivos.
Mas ele ainda vai mais longe: afirma que um filho que dissipou toda a herança — ou um publicano corrupto que extraviou dinheiro — é perante Deus justo desde que se dirija a Ele e peça perdão, porque tal é a generosidade de Deus na Sua graça.
Mas ele vai ainda mais longe — e agora tens de te segurar: Jesus dizia que esses “pecadores” eram perante Deus mais justos —, e mereciam preferencialmente o seu perdão — do que aqueles que se orgulhavam da sua pró-pria virtude.
Jesus insistia em que nenhum homem pode julgar por si se é digno do perdão de Deus. Não nos podemos salvar a nós mesmos. (Muitos gregos acreditavam nisto!). Quando Jesus apresenta as suas severas exigências éticas no “sermão da montanha” não era apenas porque quisesse mostrar a vontade de Deus. Ele quer também mostrar que nenhum homem é justo perante Deus. O perdão de Deus é ilimitado, mas devemos dirigir-nos a ele pela oração para obtermos o perdão.
Deixo a cargo do teu professor de religião mais es-clarecimentos acerca da personalidade de Jesus e da sua mensagem. Não é uma tarefa fácil. Espero que ele tam-bém vos possa esclarecer como Jesus foi um homem úni-co. De um modo genial, ele usa a linguagem do seu tempo e dá simultaneamente às idéias antigas um conteúdo com-pletamente novo e mais vasto. Não admira que ele tenha sido crucificado. A sua radical mensagem de salvação pu-nha a nu tantos interesses e jogos de poder que tinha de ser afastado.
No caso de Sócrates, vimos como pode ser perigo-so apelar à razão dos homens.
No caso de Jesus vemos como pode ser perigoso pedir um amor incondicional pelo próximo e um perdão igualmente incondicional. Ainda hoje vemos como Esta-dos poderosos vacilam se são postos perante pedidos simples de paz, amor e alimento para os pobres e perdão para os inimigos do Estado.
Sabes ainda como Platão ficou contrariado pelo fato de o homem mais justo de Atenas ter de pagar com a vida. Para o cristianismo, Jesus é o único homem justo que al-guma vez viveu. Porém, foi condenado à morte. Para o cristianismo, ele morreu pela humanidade. E isso é fre-qüentemente designado como a “paixão” de Cristo. Jesus foi o “servo sofredor” que assumiu a culpa de todos os pecados dos homens para nos reconciliar com Deus e nos salvar da Sua punição.
“Israel”
Agora, não quero entrar em concorrência com o teu professor de religião, cara Sofia, mas vamos ainda obser-var rapidamente a influência hebraica no cristianismo.
Tudo começou quando Deus criou o mundo. Podes ler na primeira página da Bíblia como isso sucedeu. Mas depois, os homens insurgiram-se contra Deus. O castigo não foi apenas a expulsão de Adão e Eva do paraíso. A morte também surgiu no mundo.
A desobediência dos homens em relação a Deus representa o fio condutor de toda a Bíblia. Se continuar-mos a folhear o “Gênesis”, podemos ler acerca do dilúvio e da arca de Noé. Depois lemos que Deus fez um pato com Abraão e o seu povo. Este pato estabelecia que A-braão e o seu povo respeitariam os mandamentos de Deus. E Deus prometeu proteger os sucessores de Abra-ão. Mais tarde, este pato foi renovado, quando “Moisés” recebeu as Tábuas da Lei no monte Sinai (a lei mosaica!). Isto aconteceu cerca de 1200 a.C. Nessa época, os israeli-tas tinham vivido muito tempo no Egito como escravos, mas com a ajuda de Deus o povo foi reconduzido a Israel.
Cerca do ano 1000 a.C., muito antes de existir algo que se chamasse filosofia grega — ouvimos falar de três grandes reis em Israel.
O primeiro foi “Saul”, seguiu-se-lhe “David”, e a-pós David veio “Salomão”. Todo o povo israelita estava unido num reino e, principalmente no reinado do rei Da-vid, viveu um período de prosperidade política, militar e cultural. Quando os reis eram consagrados, eram ungidos pelos sacerdotes. Por isso, tinham o título de Messias, que significa “o ungido”. No contexto religioso, os reis eram
vistos como intermediários entre Deus e o povo. Por isso, os reis podiam ser igualmente designados por “filhos de Deus”, e o país por “reino de Deus”.
Mas o período de esplendor não durou muito. O reino foi dividido em duas partes: “reino do Norte” (Isra-el) e o “reino do Sul” (Judéia). No ano de 722 a.C., o reino do Norte foi ocupado pelos assírios e perdeu toda a im-portância política e religiosa. No Sul, as coisas não corre-ram muito melhor. O reino do Sul foi conquistado pelos babilônios no ano 586 a.C..
O templo de Jerusalém foi destruído, e uma grande parte do povo foi levada para a Babilônia. Este “cativeiro babilônico” só terminou no ano de 539 a.C.. O povo pôde regressar a Jerusalém e reconstruir o grande templo.
Mas até ao início da nossa era, os judeus estiveram sempre sob domínio estrangeiro.
Os judeus perguntavam-se porque é que o reino de David fora destruído e porque é que desgraças após des-graças se abatiam sobre o povo.

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