terça-feira, 18 de dezembro de 2012


Deus tinha prometido proteger Israel. Mas o povo também prometera observar os mandamentos divinos. Por fim, difundiu-se a idéia de que Deus castigara Israel devido à desobediência.
A partir aproximadamente de 750 a.C. surgiu uma série de “profetas” que anunciaram o castigo de Deus so-bre Israel, porque o povo não observava os mandamentos do Senhor. “Um dia, Deus julgará Israel”, diziam. Esses profetas são designados por “profetas do dia do juízo”.
Cedo surgiram também profetas que profetizavam que Deus salvaria uma parte do povo e enviaria um “prín-cipe da paz”, ou um rei da paz, da estirpe de David. Este príncipe da paz deveria erigir de novo o antigo reino de
David e assegurar ao povo um futuro feliz.
“O povo que caminha na escuridão, verá uma grande luz”, afirmou o profeta Isaías, “aqueles que habi-tam na terra da sombra da morte, sobre eles brilhará a luz”.
Esses profetas são designados por “profetas da sal-vação”.
Vou ser mais conciso: o povo de Israel viveu feliz sob o reinado do rei David.
Quando as coisas começaram a correr pior para os israelitas, os profetas profetizaram a vinda de um novo rei da estirpe de David. Este “Messias”, ou “filho de Deus”, havia de “salvar” o povo, restaurar Israel como potência, e construir um “reino de Deus”.
“Jesus”
Bom, Sofia. Parto do princípio de que me estejas a seguir. As palavras-chave são “Messias”, “Filho de Deus”, “salvação” e “Reino de Deus”. De início, tudo isto tinha um significado político. Mesmo na época de Jesus, muitos imaginavam o novo messias como chefe político, militar e religioso do mesmo calibre que o rei David. O salvador era, portanto, visto principalmente como libertador na-cional, o qual poria fim ao sofrimento dos judeus sob o domínio romano.
Mas também se levantaram outras vozes. Já dois séculos antes do nascimento de Cristo, outros profetas tinham anunciado que o messias prometido seria o re-dentor de todo o mundo. Ele não libertaria apenas os isra-elitas do jugo estrangeiro, mas libertaria todos os homens do pecado e da culpa — e também da morte. A esperança
numa salvação neste sentido da palavra também estava difundida em todo o mundo helenístico.
E veio então Jesus. Ele não é o único que surge como o messias prometido e, tal como outros, usa as pa-lavras “filho de Deus”, “reino de Deus”, “Messias” e “salvação”. Deste modo, parte das antigas profecias. Vai para Jerusalém e é venerado pelas massas como salvador do povo.
Assim, faz lembrar os antigos reis que eram entro-nizados através de um “ritual de elevação ao trono” ca-racterístico. Ele também é ungido pelo povo. “O tempo está completo”, afirma, “o reino de Deus chegou”.
É importante notar tudo isto. Mas agora tens de prestar muita atenção: Jesus distinguia-se dos outros que se apresentavam como messias por afirmar muito clara-mente não ser um chefe militar ou político. A sua tarefa era muito maior. Anunciava a salvação e
o perdão de Deus para todos os homens, por isso podia andar entre os homens e dizer: “Os teus pecados são-te perdoados.” Pronunciar isto era inaudito. Por isso, também não foi preciso muito tempo para os escribas le-vantarem protestos contra Jesus. Por fim, empenharam-se também na preparação do seu suplício.
Vou explicar melhor: muitos homens no tempo de Jesus esperavam um messias que havia de restabelecer o reino de Deus com grande poder e esplendor (isto é, com a espada e com a lança). A expressão “reino de Deus” está presente como fio condutor na mensagem de Jesus — aliás com um significado muito mais alargado. Jesus apre-sentava o reino de Deus como amor pelo próximo, solici-tude para com os fracos e perdão para todos os que erra-ram.
Encontramos aqui uma modificação drástica no significado de uma expressão antiga e em parte militar. Os homens esperavam um líder militar que proclamasse o reino de Deus. Chega então Jesus de túnica e sandálias e explica que o reino de Deus ou o “Novo Testamento” significa: “Deves amar o próximo como a ti mesmo.” Além disso, ele afirmou que devemos amar os nossos ini-migos. Se nos dão uma bofetada, não devemos pagar na mesma moeda, mas apresentar a outra face.
E devemos perdoar — não sete vezes, mas setenta vezes sete. Durante a sua vida, Jesus mostrou que não desdenhava falar com prostitutas, publicanos corruptos e indivíduos politicamente subversivos.
Mas ele ainda vai mais longe: afirma que um filho que dissipou toda a herança — ou um publicano corrupto que extraviou dinheiro — é perante Deus justo desde que se dirija a Ele e peça perdão, porque tal é a generosidade de Deus na Sua graça.
Mas ele vai ainda mais longe — e agora tens de te segurar: Jesus dizia que esses “pecadores” eram perante Deus mais justos —, e mereciam preferencialmente o seu perdão — do que aqueles que se orgulhavam da sua pró-pria virtude.
Jesus insistia em que nenhum homem pode julgar por si se é digno do perdão de Deus. Não nos podemos salvar a nós mesmos. (Muitos gregos acreditavam nisto!). Quando Jesus apresenta as suas severas exigências éticas no “sermão da montanha” não era apenas porque quisesse mostrar a vontade de Deus. Ele quer também mostrar que nenhum homem é justo perante Deus. O perdão de Deus é ilimitado, mas devemos dirigir-nos a ele pela oração para obtermos o perdão.
Deixo a cargo do teu professor de religião mais es-clarecimentos acerca da personalidade de Jesus e da sua mensagem. Não é uma tarefa fácil. Espero que ele tam-bém vos possa esclarecer como Jesus foi um homem úni-co. De um modo genial, ele usa a linguagem do seu tempo e dá simultaneamente às idéias antigas um conteúdo com-pletamente novo e mais vasto. Não admira que ele tenha sido crucificado. A sua radical mensagem de salvação pu-nha a nu tantos interesses e jogos de poder que tinha de ser afastado.
No caso de Sócrates, vimos como pode ser perigo-so apelar à razão dos homens.
No caso de Jesus vemos como pode ser perigoso pedir um amor incondicional pelo próximo e um perdão igualmente incondicional. Ainda hoje vemos como Esta-dos poderosos vacilam se são postos perante pedidos simples de paz, amor e alimento para os pobres e perdão para os inimigos do Estado.
Sabes ainda como Platão ficou contrariado pelo fato de o homem mais justo de Atenas ter de pagar com a vida. Para o cristianismo, Jesus é o único homem justo que al-guma vez viveu. Porém, foi condenado à morte. Para o cristianismo, ele morreu pela humanidade. E isso é fre-qüentemente designado como a “paixão” de Cristo. Jesus foi o “servo sofredor” que assumiu a culpa de todos os pecados dos homens para nos reconciliar com Deus e nos salvar da Sua punição.
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Se uma hora dura cem anos, sim. Podemos pen-sar que Jesus nasceu à meia-noite. Paulo iniciou as suas viagens missionárias pouco antes da meia noite e meia e morreu um quarto de hora mais tarde, em Roma. Até às três horas, a Igreja Cristã era mais ou menos proibida, e no ano de 313 d.C. o cristianismo foi reconhecido como religião no Império Romano.
Isso sucedeu sendo imperador Constantino, que só foi batizado anos mais tarde no leito de morte. No ano de 380, o Cristianismo tornou-se a religião do Estado de todo o Império Romano.
— Mas o Império Romano não entrou em deca-dência nessa altura?
— Sim, já estava a ruir por todos os lados. Estamos perante uma das mais importantes transformações cultu-rais da história. No século IV, Roma foi ameaçada tanto pelas tribos que se aproximavam vindas do Norte como por conflitos internos. No ano de 330, o imperador Constantino transferiu a capital do Império Romano para Constantinopla, cidade que ele próprio fundara à entrada do mar Negro. A nova cidade foi considerada a partir de então como a “segunda Roma”. No ano de 395, o Impé-rio Romano foi dividido — passou a haver o “Império Romano do Ocidente”, com Roma no centro, e o “Impé-rio Romano do Oriente”, cuja capital era a cidade de Constantinopla. Em 410, Roma foi saqueada por tribos bárbaras, e em 476 todo o Império Romano do Ocidente caiu. O Império Romano do Oriente conservou-se até ao ano de 1453, quando os turcos conquistaram Constanti-
nopla.
Uma outra data que devemos fixar é o ano de 529. Nesse ano, a Academia de Platão em Atenas foi encerrada. E nesse mesmo ano, foi fundada a Ordem Beneditina, a primeira grande ordem monástica. Deste modo, o ano de 529 foi o ano em que a Igreja Cristã im-pediu a expansão da filosofia grega. A partir dessa altura, os conventos detinham o monopólio do ensino, da refle-xão e da meditação.
Por “Idade Média”, entendemos na realidade o tempo que medeia entre duas outras épocas. Esta expres-são surgiu no Renascimento. Nessa época, a Idade Média era tida como uma longa “noite de mil anos” que tinha obscurecido a Europa entre a Antiguidade e o Renasci-mento. Ainda hoje utilizamos a expressão “medieval” pe-jorativamente para tudo o que nos parece dogmático e retrógrado. Mas houve também quem tivesse visto a Idade Média como o “crescimento milenar”. Foi na Idade Mé-dia, por exemplo, que se formou o ensino público. Muito cedo surgiram as primeiras escolas nos mosteiros.
No século XII, nasceram as escolas nas catedrais, e a partir do século XIII foram fundadas as primeiras uni-versidades. Ainda hoje, as disciplinas estão divididas em diversos grupos ou “faculdades”, como na Idade Média.
— Mas mil anos é muito tempo.
— O cristianismo precisava de tempo para ser acei-te pelo povo. Além disso, durante a Idade Média nasceram as diferentes nações — com cidades e castelos, a música e a poesia populares. O que seriam as lendas e as canções populares sem a Idade Média? Sim, o que seria a Europa sem a Idade Média? Uma província romana? Mas a resso-nância de nomes como Noruega, Inglaterra ou Alemanha reside precisa-mente no abismo extraordinário a que cha-mamos Idade Média. Nesta profundidade há muitos pei-xes graúdos, mesmo que não os possamos encontrar.
Mas Snorri era um homem da Idade Média. E Olaf, o Santo. E Carlos Magno. Para não falar de Romeu e Juli-eta, os Nibelungos, a Branca de Neve ou os gigantes das florestas norueguesas.
E ainda um conjunto de príncipes esplêndidos e reis majestosos, cavaleiros corajosos e belas donzelas, anôni-mos pintores de vitrais e geniais construtores de órgãos. E não mencionei os monges, os cruzados e as bruxas.
— Também ainda não falaste dos sacerdotes.
— Tens razão. O cristianismo só chegou à Noruega após a mudança do milênio, mas seria um exagero se a-firmássemos que a Noruega se tornou um país cristão a-pós a batalha de Stiklestad. Antigas concepções pagãs co-existiam com a doutrina cristã, e muitos destes elementos pré-cristãos misturavam-se com os costumes cristãos. Nas festas de Natal norueguesas, por exemplo, coabitam ainda hoje costumes cristãos e costumes nórdicos antigos. Sub-siste a antiga norma segundo a qual os cônjuges tendem a assemelhar-se cada vez mais. Apesar disso, temos de sub-linhar que o cristianismo se tornou por fim a religião do-minante, pelo que, a Idade Média é considerada um perí-odo dominado por uma “cultura unitária cristã”.
— Então não foi apenas um período obscuro e triste?
— Os primeiros cem anos a seguir ao ano 400 trouxeram, de fato, uma decadência cultural. A época ro-mana foi notável pelo seu alto grau de civilização, com grandes cidades que dispunham de redes públicas de es-gotos, termas públicas e bibliotecas. Para não falar da ar-quitetura grandiosa. Toda esta cultura se desmoronou du-rante os primeiros séculos da Idade Média. O mesmo su-cedeu com o comércio e a economia baseados na moeda. Na Idade Média, a economia de subsistência e o paga-mento em gêneros surgiram de novo. O feudalismo ca-racterizou a economia. Feudalismo significa que alguns grandes senhores possuíam a terra que os camponeses tinham de cultivar para ganhar o seu sustento. Durante o primeiro século, a densidade populacional também baixou fortemente.
Roma fora na Antiguidade uma cidade com mais de um milhão de habitantes. Já no século VII, a população da antiga metrópole estava reduzida a quarenta mil habitan-tes. Uma população modesta caminhava entre os restos dos opulentos edifícios da época áurea da cidade. Quando os homens precisavam de materiais de construção, havia suficientes ruínas antigas de que se podiam servir, motivo de grande desgosto para os arqueólogos atuais, que teriam preferido que os homens da Idade Média tivessem deixa-do em paz os monumentos antigos.
— À medida que o tempo passa, sabe-se sempre mais.
— A época de Roma como potência política termi-nara por volta de finais do século IV. Mas depressa o bis-po de Roma se tornou o chefe de toda a Igreja católica
romana. Recebeu o nome de “papa” — ou “pai” — e, por fim, foi considerado o representante de Jesus na terra. Por isso, durante quase toda a Idade Média, Roma foi a capital da Igreja. E não havia muitas pessoas que ousassem “ele-var a sua voz contra Roma”. Mas, pouco a pouco, os reis e os príncipes dos novos Estados nacionais ganharam tanto poder que alguns deles tinham coragem para se o-porem ao forte poderio da Igreja.
Sofia fixava o erudito monge.
— Disseste que a Igreja encerrou a Academia de Platão em Atenas. Os filósofos gregos foram todos esque-cidos posteriormente?
— Só em parte. Havia quem conhecesse alguns es-critos de Aristóteles, e quem conhecesse alguns de Platão. Mas o antigo Império Romano dividiu-se progressiva-mente em três espaços culturais distintos. Na Europa O-cidental difundiu-se uma cultura cristã de língua latina, com a capital em Roma. Na Europa Oriental, formou-se uma cultura cristã de língua grega, com a capital em Constantinopla. Mais tarde, Constantinopla recebeu o nome grego de Bizâncio. Falamos, portanto, da “Idade Média bizantina”, por oposição à “Idade Média católica romana”. Mas também o Norte de África e o Médio Ori-ente tinham pertencido ao Império Romano. Estas regiões desenvolveram na Idade Média uma cultura muçulmana de língua árabe. A seguir à morte de Maomé, no ano de 632, o Médio Oriente e o Norte de África foram conquis-tados para o Islã.
Em seguida, também a Espanha foi anexada ao domínio cultural islâmico. O Islã obteve, por exemplo, os seus lugares sagrados em Meca, Medina, Jerusalém e Bag-dad. Do ponto de vista histórico-cultural é importante
reparar que os árabes também tomaram a antiga cidade helenística de Alexandria. Herdaram, assim, uma grande parte da ciência grega. Durante toda a Idade Média, os árabes detiveram o papel primordial nas ciências como a matemática, a química, a astronomia e a medicina. Ainda hoje utilizamos “algarismos árabes”. Em algumas áreas, a cultura árabe era superior à cultura cristã.
— Eu gostava de saber o que é que se passou com a filosofia grega.
— Consegues imaginar um rio que por algum tem-po se reparte em três cursos distintos antes de se juntarem novamente numa grande corrente?
— Estou a imaginar.
— Então também consegues imaginar como a cul-tura greco-romana foi transmitida, em parte, através da cultura católica romana no Ocidente, em parte através da cultura romana no Oriente e em parte através da cultura árabe, no Sul. Mesmo que simplifiquemos muito, pode-mos dizer que o neoplatonismo sobreviveu no Ocidente, Platão no Oriente e Aristóteles no Sul, entre os árabes. É importante o fato de todos os três cursos terem confluído numa corrente no final da Idade Média, no norte de Itália. Na Espanha, os árabes contribuíam com influências ára-bes, a Grécia e Bizâncio com influências gregas. E começa então o Renascimento, inicia-se o “renascer” da cultura antiga. De certo modo, a cultura antiga sobrevivera à lon-ga Idade Média.
— Compreendo.
— Mas não nos devemos antecipar ao curso dos acontecimentos. Primeiro, vamos conversar um pouco acerca da filosofia da Idade Média
A filosofia de Aristóteles também pres-supunha que Deus existe — ou uma primeira causa que põe em movimento todos os processos naturais. Mas não descreve Deus mais detalhadamente. Aí, temos de nos basear na Bíblia e na mensagem de Jesus.
— Mas é mesmo verdade que Deus exista realmen-te?
— Isso é obviamente discutível. Mas, ainda hoje, a maior parte das pessoas admitiria que pelo menos a nossa razão não pode provar que Deus não existe. S. Tomás foi mais longe. Acreditava poder provar a existência de Deus com base na filosofia de Aristóteles.
— Nada mau! — Segundo ele, com a razão também podemos re-conhecer que tudo tem de ter uma “primeira causa”. Deus, para S. Tomás, revelou-se aos homens por meio da Bíblia e por meio da razão. Logo, há uma teologia “reve-lada” e uma teologia “natural”. O mesmo se passa no do-mínio da moral. Podemos ler na Bíblia como é que deve-mos viver segundo a vontade de Deus. Mas Deus também nos dotou de uma consciência que nos habilita a distinguir o justo do injusto numa base “natural”. Também existem “duas vias” para a vida moral. Podemos saber que não devemos maltratar os ou-tros mesmo que não tenhamos lido na Bíblia que devemos tratar os outros como gostaríamos de ser tratados por eles. Mas, também neste caso, os mandamentos da Bíblia são a norma mais segura. — Acho que estou a perceber — disse então Sofia. — Da mesma forma, podemos saber que há uma trovoa-da quando vemos o relâmpago e ouvimos o trovão. — É isso. Mesmo que sejamos cegos, podemos ou-vir o trovão. E mesmo que sejamos surdos, podemos ver a trovoada. É óbvio que o melhor é poder ver e ouvir. Mas não há nenhuma contradição entre aquilo que vemos e o que ouvimos. Pelo contrário — as duas impressões enriquecem-se mutuamente. — Compreendo.
— Deixa-me dar mais um exemplo. Quando lês um romance — por exemplo — “Vitória” de Knut Hamsun.1
1 Knut Hamsun (1859-1952) — Escritor norueguês, autor de “Fome” (1890), “Pan” (1894), “Vitória” (1898) e “Frutos da Terra” (1917). Re-cebeu em 1920 o Prêmio Nobel da Literatura.
— De fato, já o li... — ...não descobres também alguma coisa acerca do autor, só porque lês o romance escrito por ele?
— Pelo menos posso partir do princípio de que há um autor que escreveu o livro. — Podes saber algo mais acerca dele?
— Acho que tem uma concepção bastante român-tica do amor.
— Ao leres esse romance — uma criação de Ham-sun —, também ficas a saber qualquer coisa acerca do próprio Hamsun. Mas não podes esperar informações muito pessoais sobre o autor. Podes, por exemplo, saber através de “Vitória” que idade tinha o autor quando o es-creveu, onde morava ou quantos filhos tinha?
— Claro que não.
— Mas uma biografia acerca de Knut Hamsun for-nece-te esse tipo de informações. Só numa biografia — ou autobiografia — podes conhecer melhor a pessoa do au-tor.
— Sim, é verdade.
— A relação entre a Criação de Deus e a Bíblia é mais ou menos assim. Se observarmos a natureza, pode-mos saber que Deus existe. Pode mos ver que ele gosta de flores e de animais, de outra forma não os teria criado. Mas só encontramos informações acerca de Deus na Bí-blia — ou seja, na autobiografia de Deus.
— Esse é um exemplo inteligente.
— Mm... Pela primeira vez, Alberto mergulhou nos seus pensamentos e não deu resposta.
— Isso tem alguma coisa a ver com Hilde? — per-guntou Sofia.
— Nós nem sequer sabemos se Hilde existe.
— Mas descobrimos aqui e ali vestígios dela. Pos-tais e um lenço de seda, uma carteira verde, uma meia... Alberto acenou afirmativamente.
— E parece depender do pai de Hilde o número de pistas que quer deixar. Mas, até agora, só sabemos que existe uma pessoa que escreve os postais. Acho que ele devia também escrever qualquer coisa acerca de si mesmo. Mas ainda havemos de voltar a falar sobre isso.
— São doze horas. Eu tenho mesmo de voltar para casa antes do fim da Idade Média.
— Vou concluir dizendo em poucas palavras como é que S. Tomás de Aquino adotou a filosofia de Aristóte-les em todos os domínios que não colidiam com a teologia da Igreja. Isso é válido para a sua lógica, a sua filosofia do conhecimento e ainda para a sua filosofia da natureza. Ainda te lembras do modo como Aristóteles descreveu uma escala ascendente da vida, desde as plantas e os ani-mais, até ao homem? Sofia acenou afirmativamente.
— Já Aristóteles acreditava que esta escala remetia para um Deus que representava uma espécie de vértice máximo da existência. Este esquema era facilmente adap-tável à teologia cristã. S. Tomás acreditava num grau de existência crescente, desde as plantas e os animais até aos homens, dos homens até aos anjos, e dos anjos até Deus. O homem, tal como os animais, possui um corpo com órgãos dos sentidos, mas o homem também possui uma razão que pensa. Os anjos não têm corpo nem órgãos dos sentidos, mas em vez disso têm uma inteligência direta e imediata. Não precisam de “discorrer”, como os homens, não precisam fazer deduções. Sabem tudo o que os ho-mens podem saber, mas não precisam avançar progressi-vamente às apalpadelas como nós. Uma vez que os anjos
não têm corpo, nunca vão morrer. Não são eternos como Deus, visto que também eles foram criados por Deus, mas não têm um corpo do qual poderiam ser separados, e por isso nunca hão de morrer.
— Isso soa maravilhosamente.
— Mas acima dos anjos reina Deus, Sofia. Ele pode ver e saber tudo numa única visão de conjunto.
— Nesse caso, também nos está a ver agora.
— Sim, talvez nos esteja a ver. Mas não “agora”. Para Deus, o tempo não existe como para nós. O nosso “agora” não é o “agora” de Deus. O fato de passarem al-gumas semanas para nós não significa que também pas-sem para Deus.
— Mas isso é inquietante! — exclamou Sofia, colo-cando a mão na boca.
Alberto olhou para ela, e Sofia explicou:
— Recebi novamente um postal do pai de Hilde. Escreveu qualquer coisa assim: “Se passa uma semana ou duas para Sofia, não significa que passe o mesmo tempo para nós.” É quase o mesmo que disseste sobre Deus!
Sofia viu que o rosto no capuz castanho se contor-ceu num veemente trejeito.
— Ele devia ter vergonha!
Sofia não percebeu o que Alberto queria dizer com aquilo. Talvez fosse apenas uma maneira de falar. E pros-seguiu:
— Infelizmente, S. Tomás de Aquino também a-dotou a concepção aristotélica da mulher. Talvez ainda te lembres que, para Aristóteles, a mulher era uma espécie de homem imperfeito. Ele achava ainda que os filhos apenas herdavam as características do pai, porque a mulher era passiva, enquanto o homem era ativo. Segundo S. Tomás,
estas reflexões estavam de acordo com as palavras da Bí-blia — onde está escrito, por exemplo, que a mulher foi criada da costela do homem.
— Que absurdo!
— Talvez seja importante acrescentar que os meca-nismos de ovulação nos mamíferos só foram descobertos em 1827. Por isso, talvez não fosse de surpreender que o homem fosse considerado aquele que fornece a forma e dá a vida na reprodução. Podemos também notar que para S. Tomás a mulher só era inferior ao homem enquanto criatura física. Para ele, a alma da mulher é tão importante como a do homem. No céu, há igualdade entre os sexos, muito simplesmente porque já não há diferenças corporais entre os sexos.
— Mas isso é um fraco consolo. Na Idade Média não havia filósofas?
— Na Idade Média, a Igreja era fortemente domi-nada pelos homens. Mas isso não significa que não tenha havido pensadoras. Uma delas era “Hildegard von Bin-gen... Sofia arregalou os olhos:
— Ela tem alguma coisa a ver com Hilde?
— Que perguntas fazes! Hildegard viveu entre 1098 e 1179 como freira na Renânia. Era mulher, mas, no en-tanto, foi pregadora, escritora, médica, botânica e cientis-ta. Foi um exemplo de que na Idade Média as mulheres eram freqüentemente mais práticas — e mesmo mais ci-entíficas — que os homens.
— Eu perguntei se ela tem alguma coisa a ver com Hilde!
— Existe uma antiga concepção cristã e hebraica segundo a qual Deus não é apenas homem. Ele também tem um lado feminino ou “natureza maternal”. Porque
também a mulher foi criada à imagem de Deus. Em grego, este lado feminino de Deus chamava-se “Sophia”. “So-phia” ou “sofia” significa “sabedoria
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O Renascimento também trouxe consigo uma nova “concepção de Deus”. À medida que a filosofia e a ciência se separavam da teologia, surgiu uma nova religio-sidade cristã. Começou então o Renascimento com a sua nova concepção do homem, e isso também foi importante para a prática religiosa. Mais importante do que a relação com a Igreja como instituição, tornou-se a relação pessoal do indivíduo com Deus.
— A oração da noite, por exemplo?
— Sim, isso também. Na Igreja Católica da Idade Média, a liturgia latina da Igreja e as suas orações tinham formado a verdadeira coluna vertebral do culto religioso. Apenas sacerdotes e monges liam a Bíblia, porque esta só existia em latim. Mas durante o Renascimento a Bíblia foi traduzida do hebraico e do grego para as línguas popula-res. Isso foi importante para a “Reforma...
— “Martinho Lutero...
— Sim, Lutero foi importante, mas ele não foi o único reformador. Também havia reformadores da Igreja que, apesar de pertencerem à Igreja Católica Romana, queriam agir. Um deles foi “Erasmo de Roterdã”.
— Lutero rompeu com a Igreja Católica porque não queria pagar indulgências?
— Sim, também, mas tratava-se de algo muito mais importante. Para Lutero, o homem não precisava de fazer o desvio pela Igreja ou pelos seus sacerdotes para obter o perdão de Deus. E o perdão de Deus não estava depen-dente de uma quantia para a indulgência paga à Igreja. O chamado tráfico de indulgências também foi proibido na Igreja Católica em meados do século XVI.
— De certeza que Deus se alegrou com isso.
— Lutero distanciou-se de um modo geral de mui-tos costumes religiosos e dogmas que a Igreja desenvol-vera na Idade Média. Ele queria voltar ao cristianismo ori-ginal tal como o encontramos no Novo Testamento. “A-penas as Escrituras” — afirmava ele. Com este mote, Lu-tero queria regressar “às fontes” do cristianismo, tal como os humanistas do Renascimento queriam voltar às fontes antigas da arte e da cultura. Ele traduziu a Bíblia para o alemão e criou assim a base para a língua escrita do ale-mão padrão. Cada qual poderia ler a Bíblia e, de certo modo, ser o seu próprio pastor.
— Como assim? Isso não vai demasiado longe?
— Ele achava que os sacerdotes não ocupam ne-nhuma posição privilegiada em relação a Deus. As comu-nidades luteranas também empregavam pastores por ra-zões práticas, e eles celebravam o serviço religioso e reali-zavam as tarefas religiosas diárias. Mas ele achava que o homem não alcança o perdão de Deus e a remissão dos seus pecados pelos rituais eclesiásticos. A salvação é dada ao homem totalmente “grátis”, apenas através da fé, afir-mava ele. Ele chegara a esta conclusão por meio da sua leitura da Bíblia.
— Lutero também era um homem típico do Renas-cimento?
— Sim e não. Um traço típico do Renascimento era a importância que se dava ao indivíduo e à sua relação pessoal com Deus. Ele aprendeu grego com trinta e cinco anos e lançou-se à morosa tarefa de traduzir a Bíblia para o alemão. O fato de a língua popular substituir o latim também era típico do Renascimento. Mas Lutero não era um humanista como Ficino ou Leonardo da Vinci. Alguns
humanistas, como Erasmo de Roterdã, criticaram-no de-vido à sua concepção demasiado negativa do homem. Lu-tero sublinhou nomeadamente que o homem estava com-pletamente corrompido pelo pecado original e a humani-dade só podia ser salva através da graça divina. Porque a recompensa do pecado é a morte.
— Isso é realmente um pouco triste.Alberto Knox levantou-se. Tirou o berlinde da mesa e pô-lo no bolso do peito.
— Já passa das quatro! — exclamou Sofia.
— E a próxima grande época na história da huma-nidade é o Barroco. Mas vamos guardar isso para um ou-tro dia, querida Hilde. .-O que é que disseste? Sofia le-vantou-se de um pulo — Então foi um lapso.
— Mas os lapsos têm sempre um motivo.
— Talvez tenhas razão.
Certamente o pai de Hilde já nos anda a colocar pa-lavras na boca. Acho que ele se aproveita da situação quando nós estamos cansados. Nessa altura, não podemos defender-nos com tanta facilidade.
— Tu disseste que não és o pai de Hilde. Juras-me que isso é verdade? Alberto acenou afirmativamente.
— Mas então eu sou Hilde?
— Estou cansado, Sofia. Tens de compreender. Já estamos aqui há mais de duas horas e eu falei durante quase todo o tempo. Não tens de ir para casa jantar?
Sofia teve a sensação de que ele a queria pôr na rua.
A caminho da saída, perguntava-se incessantemente porque é que ele tivera aquele lapso. Alberto vinha atrás dela. Debaixo de uma pequena fila de cabides, onde esta-vam pendurados muitos fatos estranhos que pareciam tra-Não, tudo é produto de processos mecânicos — inclusivamente os nossos pensamentos e sonhos. No sé-culo XIX, materialistas alemães afirmaram que os proces-sos de pensamento se comportam em relação ao cérebro tal como a urina em relação aos rins e a bílis em relação ao fígado.
— Mas a urina e a bílis são materiais. Os pensa-mentos não. — Estás a dizer uma coisa importante. Posso contar-te uma história que diz o mesmo. Certa vez, um cosmonauta e um neurocirurgião russos discutiam sobre religião. O cirurgião era cristão, o cosmonauta não. “Eu já estive várias vezes no espaço”, gabava-se o cosmonauta, “mas não vi nem Deus nem anjos”. “E eu já operei mui-tos cérebros inteligentes”, respondeu o cirurgião, “e tam-bém não encontrei em lado algum um único pensamen-to”.
— O que não significa que os pensamentos não e-xistam.
— Não. Apenas esclarece que os pensamentos são algo completamente diferente de tudo o que pode ser amputado ou dividido em partes cada vez menores. Por exemplo, não é fácil remover uma alucinação com uma operação. Um importante filósofo do século XVII, cha-mado “Leibniz”, referiu que a grande diferença entre tudo o que é feito de “matéria” e tudo o que é feito de “espíri-to” consiste precisamente no fato de a matéria poder ser dividida em partes cada vez menores. Mas a alma não po-de ser cortada em pedaços.
— Pois não, que tipo de faca se usaria?Alberto a-banou a cabeça. Depois, apontou para a mesa entre ambos e afirmou:
— Os dois filósofos mais importantes do século
XVII foram Descartes e Espinosa. Também eles se preo-cuparam com questões como a relação entre alma e corpo. Vamos observar mais pormenorizadamente estes filóso-fos.
— Conta. Mas, se não estivermos despachados até às sete, tenho de telefonar à minha mãe.
CAPÍTULO XVIII: DESCARTES
...ele queria remover todos os velhos materiais do terreno de constru-ção....
Alberto levantara-se e despira a capa vermelha. Pô-la numa cadeira e voltou a sentar-se confortavelmente no sofá.
— “René Descartes” nasceu em 1596 e viveu em vários países da Europa ao longo da vida. Já na sua ju-ventude, sentia o forte desejo de tomar conhecimento da natureza do homem e do universo. Mas depois de ter es-tudado filosofia tornou-se consciente principalmente da sua própria ignorância.
— Mais ou menos como Sócrates?
— Sim, mais ou menos assim. Tal como Sócrates, estava convencido de que só a razão nos pode dar conhe-cimento seguro. Nunca podemos confiar no que está es-crito em livros antigos. Nem sequer podemos confiar no que os nossos sentidos nos transmitem.
— Platão era da mesma opinião. Ele achava que só a razão nos pode dar um saber sólido.
— Exato. De Sócrates e Platão, através de S. Agos-tinho, há uma linha direta até Descartes. Todos eles eram racionalistas convictos. Para eles, a razão era a única fonte segura de conhecimento. Após muitos estudos, Descartes reconheceu que não era forçoso confiar no saber transmi-tido na Idade Média. Podes fazer uma comparação com Sócrates, que não confiava nas concepções mais difundi-das com que se defrontava na ágora em Atenas. E o que é que se faz neste caso, Sofia? Sabes responder-me?
— Começa-se a filosofar por si mesmo.
— Exato. Descartes decidiu então viajar pela Eu-ropa — tal como Sócrates, que passou a vida em diálogo com homens de Atenas. Ele próprio relata que a partir dessa altura só queria procurar o saber que podia encon-trar em si mesmo ou “no grande livro do mundo”. Por isso, entrou para o exército e pôde permanecer em diver-sos locais da Europa Central. Mais tarde, passou alguns anos em Paris. Em Maio de 1629, viajou para os Países Baixos, onde viveu durante quase vinte anos, enquanto trabalhava nos seus escritos filosóficos. Em 1649, a rainha Cristina convidou-o a viver na Suécia. MA idéia de um Deus é, segundo Descartes, uma idéia
inata que nos foi implantada ao nascermos — “tal como a marca que o artista imprimiu na sua obra”, como ele es-creve.
— Mas mesmo que eu tenha uma idéia de um cro-cofante, isso não significa que existam crocofantes.
— Descartes teria dito que o conceito de “croco-fante” não implica que ele exista. Mas o conceito de “ser perfeito” implica que este ser exista. Para Descartes isto é tão certo como o fato de a idéia de círculo implicar que todos os pontos do círculo estão à mesma distância do centro do círculo. Logo, não podes falar de um círculo se ele não preenche estes requisitos. E também não podes falar de um ser perfeito se lhe falta a mais importante de todas as qualidades, a existência.
— É um modo de pensar muito especial.
— Isto é um modo de pensar claramente “raciona-lista”. Tal como Sócrates e Platão, Descartes via uma co-nexão entre pensa-mento e existência. Quanto mais evi-dente uma coisa é para o pensa-mento, mais certa é a sua existência.
—Até aqui, ele reconheceu que é um ser pensante, e que existe um ser perfeito.
— E, a partir destas certezas, prossegue. Todas as idéias q ue temos da realidade exterior — por exemplo, Sol e Lua —, podiam também ser apenas visões oníricas. Mas a realidade exterior também tem algumas caracterís-ticas que podemos conhecer com a razão. Por exemplo, as relações matemáticas, ou seja, aquilo que pode ser medido, o comprimento, a altura e a profundidade. Estas “propri-edades quantitativas” são tão claras para a razão como o fato de eu ser um ser pensante. “Propriedades qualitati-vas” como cor, cheiro e sabor estão por seu lado relacio-
nadas com os nossos sentidos e não descrevem nenhuma realidade exterior.
— Então afinal a natureza não é um sonho?
— Não. E, neste ponto, Descartes recorre nova-mente à nossa idéia de um ser perfeito. Se a nossa razão conhece algo muito clara e distintamente — que é o caso das relações matemáticas na realidade exterior — é porque é assim mesmo. Um Deus perfeito não faria pouco de nós. Descartes recorre a Deus como garantia de que aqui-lo que conhecemos com a nossa razão corresponde a uma coisa real.
— Está bem. Ele descobriu que é um ser pensante, que Deus existe e ainda que existe uma realidade exterior.
— Mas entre a realidade exterior e a realidade das idéias há uma diferença essencial. Descartes pressupõe que existem duas formas diferentes de realidade — ou duas “substâncias”. Uma substância é o “pensamento” ou a alma, a outra a “extensão” ou a matéria. A alma é apenas consciente, não ocupa espaço e, por isso, também não pode ser dividida em partes menores. A matéria, por seu lado, é extensa, ocupa espaço e pode ser dividida em par-tes cada vez menores — mas não é consciente. Descartes afirma que ambas as substâncias provêm de Deus, porque apenas Deus existe independentemente de todas as outras coisas. Mas mesmo provindo pensamento e extensão de Deus, as duas substâncias são completamente indepen-dentes uma da outra. O pensamento é livre na sua relação com a matéria — e vice-versa: os processos materiais o-peram de forma totalmente independente do pensamento.
— E assim, a Criação ficou dividida em dois.
— Exato. Dizemos que Descartes é “dualista”, e isso significa que ele traça uma clara linha de separação
entre a realidade espiritual e a realidade em extensão. Por exemplo, apenas o homem tem alma. Os animais perten-cem totalmente à realidade em extensão. A sua vida e os seus movimentos são puramente mecânicos. Descartes via os animais como uma espécie de autômatos complexos. Em relação à realidade em extensão, ele tem dela uma concepção mecanicista — tal como os materialistas.
— Mas eu duvido muito que Hermes seja uma má-quina ou um autômato. Certamente, Descartes nunca gostou de um animal. E em relação a nós? Também so-mos autômatos?
— Sim e não. Descartes chegou à conclusão de que o homem é um ser duplo que pensa e ocupa espaço. O homem tem uma alma e um corpo extenso. S. Agostinho e S. Tomás de Aquino já tinham afirmado algo semelhan-te. Acreditavam que o homem tem corpo tal como os animais, mas também espírito como os anjos. Para Des-cartes, o corpo é um mecanismo muito sofisticado. Mas o homem tem também alma que pode operar independen-temente do corpo. Os processos corporais não têm essa liberdade, seguem as suas próprias leis. Mas aquilo que pensamos com a razão não acontece no corpo. Acontece na alma, que é independente da realidade extensa. Eu posso ainda acrescentar que Descartes não queria excluir a possibilidade de também os animais pensarem. Mas, se possuírem essa faculdade, também tem de existir neles a mesma divisão entre pensamento e extensão.
— Já falamos sobre isso. Quando eu decido correr para o ônibus, todo o “autômato” se põe em movimento. E se perco o ônibus, vêm-me as lágrimas aos olhos.
— Nem Descartes podia contestar que existe sem-pre esse efeito recíproco entre alma e corpo. Enquanto a
alma está no corpo, segundo ele, está ligada ao corpo a-través de um órgão do cérebro muito especial, uma glân-dula, na qual se dá uma reação constante entre o espírito e a matéria. Deste modo, segundo Descartes, a alma pode ser permanentemente confundida com os sentimentos e sensações que têm a ver com as necessidades do corpo. O objetivo é transmitir à alma a ordem: Seja qual for a gra-vidade das minhas dores de barriga, a soma dos ângulos num triângulo é sempre cento e oitenta graus. Deste mo-do, o pensamento pode elevar-se acima das necessidades do corpo e proceder “racionalmente”. Deste ponto de vista, a alma é totalmente independente do corpo. As nossas pernas podem ficar velhas e fracas, as nossas costas tortas, e os nossos dentes podem cair — mas dois mais dois serão sempre quatro, enquanto ainda houver razão em nós. Porque a razão não fica velha e caduca. Os nos-sos corpos é que envelhecem. Para Descartes, a própria razão é a alma. Paixões e humores inferiores como a con-cupiscência e o ódio estão estreitamente ligados às fun-ções corporais — e conseqüentemente à realidade extensa.
— Eu não me conformo com o fato de Descartes ter comparado o corpo com uma máquina ou um autô-mato.
— O motivo da comparação é o fato de as pessoas, no tempo de Descartes, estarem completamente fascina-das com as máquinas e os mecanismos dos relógios, que aparentemente funcionavam por si mesmos. A palavra “autômato” designa precisamente algo que se move por si mesmo. Mas eles moverem-se por si era apenas uma ilu-são. Por exemplo, os homens construíram nessa época um relógio astronômico e deram-lhe corda. Descartes acentua que estes mecanismos artificiais são compostos muito
simplesmente por poucas partes, em comparação com as quantidades de ossos, músculos, nervos, artérias e veias que compõem os corpos de homens e animais. Mas por-que é que Deus não havia de produzir um corpo animal ou humano com base nas leis mecânicas?
— Hoje fala-se muito de “inteligência artificial”.
— Estás a pensar nos nossos autômatos atuais. Construímos máquinas que por vezes nos podem con-vencer realmente da sua inteligência. Essas máquinas te-riam certamente posto Descartes em pânico. Talvez ele se interrogasse se a razão humana é realmente tão livre e au-tônoma como ele tinha pensado. Há filósofos que pensam que a vida espiritual humana é tão pouco livre como os processos corporais. A alma de um homem é infinita-mente mais complexa do que qualquer programa de computador, mas há também quem pense que em princí-pio somos tão pouco livres como esses programas. Mas olha para aqui, Sofia. Quero mostrar-te uma coisa.
As
Espinosa pertencia à comunidade judaica de Amsterdã, mas foi ex-comungado devido às suas supostas heresias.
Poucos filósofos da época moderna foram tão es-carnecidos e perseguidos por causa dos seus pensamentos como este homem. Tentaram inclusivamente assassiná-lo, só por ter criticado a religião oficial. Ele achava que ape-nas dogmas rígidos e rituais exteriores mantinham o cris-tianismo e o judaísmo vivos. Foi o primeiro a fazer uma interpretação “histórico — crítica” da Bíblia.
— Tens que explicar isso melhor.
— Ele contestou que a Bíblia fosse inspirada por Deus até à menor palavra. Quando lemos a Bíblia, segun-do ele, temos de ter em conta a época em que teve ori-
gem. Esta leitura “crítica” permite-nos reconhecer uma série de contradições entre os diversos Livros e Evange-lhos da Bíblia. Sob a superfície dos textos do Novo Tes-tamento encontramos Jesus, o qual podemos designar por porta-voz de Deus. A mensagem de Jesus significava pre-cisamente uma libertação do judaísmo rígido. Jesus anun-ciou uma “religião racional”, para a qual o amor era o va-lor mais elevado. Espinosa refere-se aqui tanto ao amor a Deus como ao amor ao próximo.
Mas também o cristianismo se cristalizara rapida-mente em dogmas e rituais rígidos.
— Eu compreendo que essas idéias fossem muito indigestas para as igrejas e para as sinagogas.
— Quando a situação se tornou mais grave, Espi-nosa foi inclusivamente abandonado pela família. Queriam deserdá-lo por heresia. O paradoxo disto era que poucas pessoas tinham defendido tão energicamente a liberdade de opinião e a tolerância religiosa como Espinosa. As nu-merosas oposições com que teve de lutar levaram-no por fim a escolher uma vida tranqüila, inteiramente dedicada à filosofia.
Ganhava o seu sustento a polir vidros óticos. Al-gumas destas lentes, como disse, foram adquiridas por mim.
— Impressionante.
— O fato de ele viver de polir lentes é quase simbó-lico. Os filósofos devem ajudar os homens a ver a reali-dade segundo uma perspectiva nova. E é fundamental pa-ra a filosofia de Espinosa o desejo de ver as coisas sob a “perspectiva da eternidade”.
— A perspectiva da eternidade?
— Sim, Sofia. Achas que poderias conseguir ver a
tua própria vida num contexto cósmico? Nesse caso, teri-as de certo modo de te ver a ti mesma e à tua vida com os olhos semicerrados...
— Hm... não é fácil.
— Pensa que és apenas uma partícula minúscula de toda a vida da natureza. Fazes parte de um todo muito grande.
— Acho que percebo o que queres dizer.
— Também consegues entender isso? Consegues abarcar toda a natureza de uma só vez — sim, todo o u-niverso — num único relance?
— Depende. Talvez eu precise de um par de vidros óticos.
— E eu não estou apenas a pensar no universo in-finito.
Penso também num espaço de tempo infinito. Há trinta mil anos vivia um menino na Renânia. Era uma par-tícula minúscula de toda a natureza, um pequeno encres-par num mar infinitamente grande. Assim, também tu vi-ves uma parte minúscula da vida da natureza.
Entre ti e esse jovem não há nenhuma diferença.
— Em todo o caso, eu vivo agora.
— Pois, era sobre isso que eu queria que refletisses. Mas quem és tu daqui a trinta mil anos?
— Isso é que era a heresia?
— Bom, Espinosa não disse apenas que tudo o que existe é natureza. Ele colocou também um sinal de igual entre Deus e a natureza. Ele via Deus em tudo o que e-xiste e tudo o que existe em Deus.
— Então era panteísta.
— Sim. Para Espinosa, Deus não é alguém que cri-ou outrora o mundo e está desde então junto à sua Cria-
ção.
Não, Deus “é” o mundo. Ele refere o discurso de Paulo no areópago. “Porque nele vivemos, nele nos mo-vemos e existimos” dissera Paulo. Mas vamos prosseguir no pensamento de Espinosa. A sua obra mais importante chama-se “A Ética Demonstrada Segundo o Método Geométrico”.
— Ética... e método geométrico?
— Isso soa talvez um pouco estranho aos nossos ouvidos.
Por ética, os filósofos entendem a teoria de como devemos conduzir-nos para termos uma vida feliz. Neste sentido, falamos, por exemplo, acerca da ética de Sócrates ou de Aristóteles. Apenas na nossa época a ética foi de certo modo reduzida a algumas regras segundo as quais podemos viver sem pisarmos os pés dos nossos próximos.
— Porque pensarmos na nossa própria felicidade é tido como egoísmo?
— É mais ou menos assim. Quando Espinosa utili-za a palavra ética, ela pode ser traduzida igualmente por arte de viver ou conduta moral.
— Mas então... “Arte de viver demonstrada segun-do o método geométrico”?
— O método geométrico diz respeito à linguagem ou à forma de exposição. Ainda te lembras que Descartes queria aplicar o método matemático à reflexão filosófica. Por isso, ele entendia uma reflexão filosófica que é for-mada a partir de deduções exatas.
Espinosa situa-se na mesma tradição racionalista. Na sua ética, queria demonstrar como a vida humana é dirigida pelas leis da natureza. Para isso, temos de nos li-bertar dos nossos sentimentos e sensações, porque só as-
sim podemos encontrar a tranqüilidade e sermos felizes,
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percebemos.
— Sim e não. Essa é a segunda questão a que Locke procura dar resposta. Ele explicou em primeiro lugar de onde retiramos as nossas idéias e opiniões. Mas, em se-guida, pergunta também se o mundo é realmente tal como o percebemos. É que isso não é nada evidente, Sofia. Não devemos precipitar-nos. É a única coisa proibida a um verdadeiro filósofo.
— Estou muda como um peixe.
— Locke fazia a distinção entre o que designava por qualidades “primárias” e “secundárias”. Reconhecia assim a sua dívida perante os grandes filósofos — inclu-indo Descartes — que o tinham precedido.
— Explica-me isso!
— Por “qualidades primárias”, ele entende a di-mensão, o peso, a forma, o movimento e o número das coisas. Nestas qualidades, podemos ter a certeza de que os sentidos reproduzem as qualidades reais das coisas. Mas também percebemos outras qualidades das coisas. Dize-mos que uma coisa é doce ou amarga, verde ou vermelha, quente ou fria. A isto, Locke chama “qualidades secundá-rias”. E essas impressões sensíveis — como cor, cheiro, sabor ou som — não reproduzem qualidades reais que residem nas próprias coisas. Reproduzem apenas o efeito das qualidades exteriores nos nossos sentidos.
— Justamente, gostos não se discutem.
— Exato. Sobre as qualidades primárias — como extensão e peso — podemos estar todos de acordo, por-que residem nas próprias coisas. Mas as qualidades se-cundárias — como cor e sabor — podem variar de animal para animal e de pessoa para pessoa, dependendo da na-tureza das sensações de cada indivíduo.
— Quando Jorunn come uma laranja, faz exata-mente a mesma cara que outras pessoas quando comem um limão. Geralmente, nunca consegue comer mais do que um gomo. “É ácida”, diz ela. E, normalmente, eu a-cho que exatamente a mesma laranja é doce e saborosa.
— E nenhuma das duas tem razão, mas também nenhuma está errada. Vocês descrevem apenas o efeito desta laranja nos vossos sentidos. O mesmo se passa com a experiência das cores. Admitamos, por hipótese, que um certo tom de vermelho não te agrada. Se Jorunn tiver comprado um vestido justamente dessa cor, talvez deves-ses guardar a tua sensibilidade para ti mesma. Vocês têm uma sensibilidade diferente em relação a esta tonalidade, mas o vestido não é bonito nem feio.
— Mas todos estão de acordo em que uma laranja é redonda.
— Sim, se tens uma laranja redonda, não a podes ver como se fosse cúbica. Podes achá-la doce ou ácida, mas não podes “achar” que pesa oito quilos se pesa ape-nas duzentas gramas. Podes talvez “acreditar” que pesa vários quilos, mas, nesse caso, estás completamente enga-nada. Quando várias pessoas têm de adivinhar o peso de um objeto, há sempre uma que está mais perto da verdade do que as outras. Isso também se aplica ao número de coisas. Ou há novecentas e oitenta e seis ervilhas no fras-co ou não. O mesmo se passa com o movimento. O carro está em movimento, ou está parado.
— Compreendo.
— No que diz respeito à “realidade extensa”, Locke tem a mesma opinião que Descartes, isto é, ela apresenta certas qualidades que o homem pode compreender com o seu entendimento.
— Estar de acordo com isso também não é difícil.
— Em outros domínios, Locke também admite o que designa por conhecimento “intuitivo” ou “demons-trativo”. Ele considerava, por exemplo, que certas regras fundamentais da ética são dadas a todos.
Assim ele defende a chamada “concepção do direito natural” e isso é uma característica racionalista. Uma outra característica racionalista clara é o fato de Locke achar que é inerente à razão humana saber que Deus existe.
— Talvez tivesse razão.
— Em quê?
— Em dizer que Deus existe.
— Sim, é concebível. Mas ele não deixa que isso se-ja simplesmente uma questão de fé. Ele acha que o co-nhecimento que o homem tem de Deus tem origem na razão humana. “Isso” é uma característica racionalista. Devo acrescentar que ele defendia a liberdade de opinião e a tolerância. Defendia também a igualdade de direitos de ambos os sexos. Segundo ele, a posição subordinada da mulher tinha sido criada pelos seres humanos. E, por isso, podiam transformá-la.
— Estou totalmente de acordo.
— Locke foi um dos primeiros filósofos da época moderna que se preocupou com a questão dos papéis dos sexos. Ele foi posteriormente muito importante para o seu homônimo John Stuart Mill, que por sua vez foi muito importante na luta pela igualdade de direitos entre os se-xos. Locke manifestou muito cedo idéias liberais que fo-ram retomadas durante o Iluminismo francês do século XVIII. Por exemplo, foi ele o primeiro a defender o cha-mado “princípio da separação dos poderes...
— Isso significa que o poder do Estado está repar-
tido em diversas instituições.
— Ainda te lembras de que instituições se trata?
— Há o poder legislativo, ou o parlamento. Depois há o judicial, ou os tribunais. Por fim, há o executivo, ou o governo.
— Essa tripartição provém do filósofo iluminista francês “Montesquieu”. Locke realçara que o poder legis-lativo e o executivo tinham de estar separados se se qui-sesse evitar a tirania. Ele foi contemporâneo de Luís XIV, que reunira todo o poder em si. “Eu sou o Estado”, afir-mou ele. Era um monarca absoluto, e hoje diríamos que governava de modo arbitrário. Locke defendia, pelo con-trário, que para garantir um Estado de direito, os repre-sentantes do povo têm de criar leis, que são em seguida implementadas pelo rei e pelo governo.
CAPÍTULO XXI: HUME
...então lançai-o à fogueira...
Alberto olhava fixamente para a mesa entre os dois. Por fim voltou-se e olhou pela janela.
— O céu está a ficar nublado — afirmou Sofi-a.-Sim, está carregado.
— Vais falar agora de Berkeley? — Ele foi o se-gundo dos três empiristas britânicos. Mas uma vez que em muitos aspectos ele é um caso à parte, vamos concen-trar-nos primeiro em David Hume, que viveu entre 1711 e 1776. A sua filosofia é hoje tida como a mais importante filosofia empírica. Ele também foi de importância essenci-al por ter inspirado o grande filósofo Immanuel Kant para a sua própria filosofia.
— E não tem importância o fato de a filosofia de Berkeley me interessar muito mais?
— Isso não tem importância, não. Hume cresceu perto de Edimburgo, na Escócia, e a família queria fazer dele um jurista. Mas ele afirmava sentir “uma insuperável aversão a tudo menos à filosofia e ao conhecimento em geral”.
Viveu, como os grandes pensadores franceses “Voltaire” e “Rousseau”, em plena época do Iluminismo e realizou longas viagens pela Europa, antes de se fixar no-vamente em Edimburgo. A sua obra mais importante, Tratado Sobre a Natureza Humana, foi publicada quando Hume tinha vinte e oito anos. Ele mesmo afirmou que já tivera a idéia para esse livro aos quinze anos.
— Estou a ver que tenho de me apressar.

Na época de Hume, estava muito difundida a i-déia de que existem anjos. Por anjo, entendemos uma fi-gura humana com asas. Alguma vez viste um ser desses, Sofia? — Não.
— Mas já viste uma figura humana?
— Que pergunta tão boba.
— E também já viste asas?
— Claro, mas nunca num homem.
— Segundo Hume, os “anjos” são uma idéia com-plexa. Esta idéia é constituída por duas experiências dife-rentes que não estão juntas na realidade, mas foram liga-das na fantasia humana. Por outras palavras, a idéia é falsa e deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de fazer uma arrumação em todos os nossos pensamentos e idéias. Tal como Hume afirmou: “Pegando ao acaso em qualquer volume acerca de teologia ou filosofia da escola, devemos perguntar: Contém algum raciocínio abstrato acerca da grandeza ou dos números? Não. Contém algum raciocínio sobre fatos e sobre a realidade baseado na experiência? Não. Então, lançai-o à fogueira porque só contém ilusão e aparência.”
— Bastante drástico. — Mas há o mundo, Sofi-a.Mais fresco e nítido nos seus contornos do que anteri-ormente. Hume queria regressar ao modo como uma cri-ança vê o mundo — antes de idéias e reflexões ocuparem espaço na mente. Não disseste que muitos filósofos, dos quais ouviste falar, vivem no seu próprio mundo e que o mundo real te interessa mais?
— Sim, mais ou menos isso. — Hume poderia ter dito exatamente o mesmo. Mas observemos mais exata-mente o seu raciocínio.
— Estou a ouvir.
— Hume verifica em primeiro lugar que o homem possui por um lado “impressões”, e por outro “idéias”. Por impressão, ele entende a sensação imediata da reali-dade exterior. Por idéia ele entende a recordação dessa sensação.
— Exemplos, por favor.
— Se te queimas num fogão quente, tens uma im-pressão imediata. Mais tarde, podes recordar que te quei-maste. É a isso que Hume chama idéia. A diferença é que a impressão é mais forte e viva do que a recordação poste-rior da impressão. Podes dizer que a impressão sensível é o original e a idéia ou recordação a cópia pálida. Porque, afinal, a impressão é a causa direta da idéia que é conser-vada na mente.
— Até agora estou a acompanhar bem.
— Mais adiante, Hume sublinha que tanto uma im-pressão como uma idéia podem ser ou “simples ou com-plexas”. Ainda te lembras que em Locke falamos de uma maçã. A experiência imediata de uma maçã é também uma impressão complexa. Assim, a idéia de uma maçã é tam-bém uma idéia complexa.
— Desculpa a interrupção, mas isso é muito im-portante?
— Se é! Apesar de os filósofos se terem preocupa-do com uma série de problemas aparentes, não podes a-gora desistir quando se trata de construir um raciocínio. Hume teria certamente dado razão a Descartes quanto à importância de se construir um raciocínio a partir da base.
— Para Hume, a questão é que, por vezes, pode-mos juntar coisas sem que exista um objeto composto correspondente na realidade. Assim, surgem idéias falsas de coisas que não existem na natureza. Já mencionamos os anjos. E, antes disso, já se tinha falado de crocofantes. Um outro exemplo é o Pégaso, um cavalo com asas. Em todos estes exemplos, temos de reconhecer que a nossa mente fez uma construção no vazio. Retirou as asas de uma impressão e os cavalos de outra. Todos os elementos foram percebidos uma vez e por isso entraram no palco da mente como impressões verdadeiras. No fundo, a mente não inventou nada. A mente agarrou na tesoura e na cola e construiu idéias falsas.
— Entendo. E agora também compreendo que isso pode ser importante.
— Ainda bem. Hume quer examinar cada idéia e descobrir se ela é composta de um modo que não encon-tramos na realidade. Ele pergunta: em que impressões tem origem esta idéia? Em primeiro lugar, ele tem que deter-minar de que idéias simples é composto um conceito. Deste modo, obtém um método crítico para analisar as idéias humanas. E é assim que quer organizar os nossos pensamentos e idéias.
— Tens um ou dois exemplos?
— Na época de Hume, muitas pessoas tinham uma idéia clara do paraíso. Talvez ainda te lembres que Des-cartes explicara que idéias claras e evidentes em si podiam ser uma garantia de que existe uma correspondência na realidade.
— Como já disse, não sou esquecida.
— É-nos imediatamente claro que “paraíso” é uma idéia extrema-mente complexa. Vou referir apenas alguns
elementos: no “paraíso” há um “portão de pérolas”, há “estradas de ouro” e “exércitos de anjos” — e assim por diante. Mas ainda não examinamos tudo nos seus ele-mentos particulares. Porque também “portão de pérolas”, “estradas de ouro” e “exércitos de anjos” são idéias com-postas. Só quando verificamos que a nossa idéia complexa de paraíso é constituída por idéias simples como “pé-rola”, “portão”, “estrada”, “ouro”, “figura vestida de branco” e “asa”, é que podemos perguntar se já tivemos de fato alguma vez “impressões simples” corresponden-tes.
— E temos. Mas depois montamos todas as im-pressões simples numa ilusão.
— Sim, Exato, porque quando sonhamos, usamos, por assim dizer, tesoura e cola. Mas Hume sublinha que toda a matéria, a partir da qual formamos as nossas ilu-sões, chega à nossa mente na forma de impressões sim-ples. Uma pessoa que nunca tenha visto ouro também não poderá imaginar nenhuma estrada de ouro. — Ele é muito esperto. E quanto a Descartes e a sua idéia clara de Deus?
— Hume também tem uma resposta para isso. Di-gamos que imaginamos Deus como um ser infinitamente inteligente, sábio e bom. Temos então uma idéia complexa que é constituída por algo infinitamente sábio, infinita-mente inteligente e infinitamente bom. Se nunca tivésse-mos tido a experiência da inteligência, sabedoria e bonda-de, nunca poderíamos ter esse conceito de Deus. Talvez a nossa idéia de Deus implique que ele seja um pai severo, mas justo — ou seja, uma idéia que é composta por “se-vero”, “justo” e “pai”. A partir de Hume, muitos críticos da religião apontaram precisamente para este fato: a saber, que esta idéia de Deus pode provir do modo como vía-
mos o nosso próprio pai quando éramos crianças. A idéia de um pai teria levado à idéia de um pai do céu, conforme dizem alguns.
— Talvez seja verdade. Mas eu nunca aceitei que Deus fosse forçosa-mente um homem. Em compensação, a minha mãe diz por vezes “Graças a Deusa”, ou uma coisa do gênero.
— Hume quer atacar todas as concepções e idéias que não provêm de impressões sensíveis correspondentes. Ele afirmava que queria afugentar a bagunça sem sentido que dominara durante tanto tempo o pensamento metafí-sico e o desacreditara. Mas também usamos conceitos complexos no quotidiano sem nos questionarmos se pos-suem de fato legitimidade. É o caso da idéia de um eu ou de um núcleo da personalidade. Esta idéia constituía o fundamento da filosofia de Descartes. Era a idéia clara e evidente sobre a qual edificou toda a sua filosofia.
— Espero que Hume não tenha negado que eu sou eu. Senão falava por falar.
— Sofia, se há uma coisa que eu quero que tu a-prendas neste curso de filosofia, é que não podes tirar conclusões precipitadas.
— Continua.
— Não, tu podes usar o método de Hume para a-nalisares o que entendes pelo teu “eu”.
— Então tenho de perguntar primeiro se a idéia do eu é simples ou complexa. — E a que conclusão chegas?
— Tenho de admitir que me sinto bastante com-plexa. Por exemplo, sou bastante bem humorada. É difícil decidir-me em relação a certas coisas. Além disso, posso gostar e não gostar da mesma pessoa.
— Nesse caso, a tua idéia do eu é complexa.
Um agnóstico é uma pessoa que não sabe se Deus existe. Ao receber a visita de um amigo no leito de morte, o amigo perguntou-lhe se acreditava na vida após a morte. Diz-se que Hume respondeu que também era pos-sível que um bocado de carvão atirado ao fogo não ardes-se.
— Ah...
— A resposta foi típica da sua incondicional ausên-cia de preconceitos. Ele apenas aceitava como verdade aquilo de que tinha experiências sensíveis seguras. Deixava todas as outras possibilidades abertas. Ele não rejeitou nem a crença em Cristo nem a crença em milagres. Mas em ambos os casos se trata justamente de “fé” e não de “razão”. Podes dizer que a última ligação entre fé e saber foi desfeita com a filosofia de Hume.
— Disseste que ele não negou categoricamente os milagres.
— Mas isso também não significa que tenha acredi-tado em milagres. Ele sublinha que os homens têm uma forte necessidade de acreditar naquilo a que hoje chama-ríamos “acontecimentos sobrenaturais”. Mas todos os mi-lagres que se narram aconteceram muito longe de nós ou há muito tempo. Hume recusava os milagres simplesmen-te porque não tinha visto nenhum. Mas ele também não viu que não pode haver milagres.
— Tens que ser mais preciso.
— Hume caracteriza um milagre como uma ruptura das leis da natureza. Mas também não podemos afirmar que “percebemos” as leis da natureza. Vemos que uma pedra cai no chão quando a largamos, e se não caísse também o veríamos.
— Eu chamaria a isso um milagre — ou algo so-brenatural.
— Acreditas então em duas naturezas, uma nature-za e uma “natureza” sobrenatural. Não estarás a voltar ao absurdo nebuloso dos racionalistas?
— Talvez, mas acho que a pedra cai sempre ao chão quando a largamos.
— E por quê?
— Estás a ser insistente.
— Eu não sou insistente, Sofia. Para um filósofo, nunca é errado fazer perguntas. Talvez estejamos a falar do ponto mais importante da filosofia de Hume. Respon-de agora: como é que podes ter tanta certeza de que a pe-dra cai sempre ao chão?
— Eu vi-o tantas vezes que tenho a certeza.
— Hume diria que viste muitas vezes uma pedra cair ao chão, mas nunca viste que “cairá sempre”. Nor-malmente diz-se que a pedra cai ao chão devido à lei da gravitação. Mas nós nunca vimos essa lei. Só vimos que as coisas caem.
— Não é a mesma coisa?
— Não é bem a mesma coisa. Disseste que achas que a pedra vai cair ao chão porque viste isso muitas ve-zes. É precisamente esse o problema de Hume. Estás tão habituada a que uma coisa se siga à outra que esperas que, cada vez que deixas cair uma pedra, suceda o mesmo. Deste modo, surgem idéias daquilo a que chamamos “leis constantes da natureza”.
— Ele quer dizer que se pode pensar que a pedra não caia ao chão?
— Ele estava tão convencido como tu de que a pe-dra vai cair ao chão sempre, mas diz que não percebeu
“porque é que” é assim.
— Não nos afastamos das crianças e das flores?
— Não, muito pelo contrário. Podes consultar as crianças como testemunhas para as asserções de Hume. Quem te parece que ficaria mais surpreendido se uma pe-dra ficasse no ar uma ou duas horas — tu ou uma criança de um ano?
— Eu ficaria mais surpreendida.
— E por que, Sofia?
— Provavelmente porque eu compreendo melhor do que uma criança pequena que isso não seria natural.
— E porque é que a criança não entenderia?
— Porque ainda não aprendeu o que é a natureza.
— Ou porque a natureza não se tornou para ela uma coisa habitual.
— Eu percebo o que queres dizer. Hume queria le-var as pessoas a tomarem mais atenção.
— Agora, dou-te a seguinte tarefa: se tu e uma cri-ança pequena vêem juntas um grande ilusionista — que, por exemplo, põe alguma coisa suspensa no ar —, qual das duas se divertiria mais durante o espetáculo?
— Eu diria que era eu.
— E por quê? — Porque eu compreenderia o que estava errado.
— Está bem. A criança não se alegra por ver as leis da natureza violadas porque ainda não as conhece.
— Também podes dizê-lo dessa maneira.
— Ainda estamos a tratar do cerne da filosofia em-pírica de Hume. Ele teria acrescentado que a criança ainda não se tornou escrava das suas expectativas. A criança pequena tem menos preconceitos que tu. Resta saber se a criança não é também o maior filósofo. Uma criança não
tem opiniões preconcebidas. E isso, minha querida Sofia, é a primeira virtude em filosofia. A criança vive o mundo tal como ele é, sem acrescentar às coisas mais do que o que vê.
— Eu nunca gosto de ter preconceitos.
— Quando Hume trata do poder do hábito, refe-re-se à chamada “lei da causalidade”. Esta lei diz que tudo o que acontece tem que ter uma causa. Hume usa como exemplo duas bolas de bilhar. Se lanças uma bola de bilhar preta contra uma bola branca parada, o que é que aconte-ce à bola branca?
— Quando a preta toca na branca, esta move-se.
— Sim, e porque é que faz isso?
— Porque foi atingida pela bola preta.
— Neste caso, dizemos que o choque da bola preta é a “causa” do movimento da bola branca. Mas não po-demos esquecer que só podemos dizer que uma coisa é totalmente certa quando a experienciamos.
— Eu já experienciei isso várias vezes. Jorunn tem uma mesa de bilhar na cave.
— Hume afirma que tu apenas viste que a bola pre-ta atinge a branca e que a branca rola pela mesa. Tu não conheceste pela experiência a causa pela qual a bola bran-ca rola. Conheceste pela experiência que um aconteci-mento se segue ao outro temporalmente, mas não que o segundo acontecimento sucede “por causa” do primeiro.
— Isso não é um pouco sofístico?
— Não, é importante. Hume sublinha que a expec-tativa de que uma coisa se siga à outra não está nos obje-tos, mas na nossa consciência. Uma criança pequena não teria esbugalhado os olhos se uma bola tivesse atingido a outra e ambas ficassem totalmente imóveis. Quando fa-
lamos de “leis da natureza”, ou de “causa e efeito”, esta-mos na realidade a falar dos hábitos humanos e não do que é racional. As leis da natureza não são nem racionais nem irracionais, “são”, simplesmente. A expectativa de a bola de bilhar branca ser posta em movimento quando a preta choca contra ela, não é uma idéia inata. Nós nasce-mos sem quaisquer expectativas sobre o mundo ou sobre o comportamento das coisas. O mundo é como é e nós apreendemo-lo progressivamente pela experiência.
— Tenho de novo a sensação de que isso não é as-sim tão importante.
— Pode ser importante se as nossas expectativas nos levam a conclusões precipitadas.
Hume não contesta que há leis da natureza cons-tantes, mas uma vez que não podemos ter experiência das leis da natureza, podemos tirar as conclusões erradas.
— Podes dar-me exemplos?
— O fato de eu ver um conjunto de cavalos pretos não significa que todos os cavalos sejam pretos.
— Tens toda a razão.
— E mesmo que durante toda a minha vida tenha visto apenas corvos pretos não significa que não haja corvos brancos. Para um filósofo e para um cientista, po-de ser importante provar que não existem corvos brancos. Quase podes dizer que a caça ao corvo branco é a tarefa mais importante da ciência.
— Compreendo.
— Quando se trata da relação de causa e efeito, muitos imaginam o relâmpago como causa do trovão, porque o trovão se segue sempre ao relâmpago.
Este exemplo não é muito diferente do das bolas de bilhar. Mas será o relâmpago realmente a causa do trovão? Não, na realidade relampeja e troveja exatamente ao mesmo tempo.
— Porque relâmpago e trovão são efeitos de uma descarga elétrica. Mesmo que vejamos sempre que o tro-vão se segue ao relâmpago, não significa que o relâmpago seja a causa do trovão. Na realidade há um terceiro fator que provoca os dois.
— Compreendo.
— Um empirista do nosso século, “Bertrand Rus-sell”, deu um exemplo um pouco mais grotesco: um pin-tinho que tem a experiência de receber todos os dias co-mida quando o avicultor passa pela capoeira, tirará a con-clusão de que há uma relação entre a passagem do avicul-tor pela capoeira e a comida no comedouro.
— Mas um dia o pintinho não é alimentado, pois não?
— Um dia, o avicultor passa pela capoeira e tor-ce-lhe o pescoço.
— Que horror!
— O fato de as coisas se seguirem umas às outras no tempo não significa necessariamente que exista um nexo causal. Impedir os homens de tirar conclusões preci-pitadas é uma das tarefas mais importantes da filosofia. Além disso, conclusões precipitadas podem levar a muitas formas de superstição.
— Como assim?
— Vês um gato preto andar pela rua. Um pouco mais tarde nesse dia tropeças e partes um braço. Mas isso não significa que haja um nexo causal entre os dois acon-tecimentos. Em contextos científicos também é impor-tante não se tirar conclusões muito rápidas. Apesar de muitas pessoas ficarem sãs depois de terem tomado um
determinado remédio, isso não significa que o remédio as curou. Por isso, precisamos de um grande grupo de con-trolo de pessoas que acreditam receber o mesmo remédio quando na realidade recebem farinha com água. Se estas pessoas são curadas, tem de haver um terceiro fator que as cura — por exemplo, a confiança na eficácia deste remé-dio.
— Acho que começo a perceber o que é o empi-rismo.
— Em relação à ética e à moral, Hume também se opôs ao pensamento racionalista. Os racionalistas acha-vam que era inerente à razão humana a distinção entre o justo e o injusto. Esta concepção do direito natural apare-ceu-nos em muitos filósofos de Sócrates a Locke. Mas Hume não acredita que seja a razão a determinar aquilo que dizemos e fazemos.
— Então é o quê?
— Os nossos “sentimentos”.
Quando decides ajudar um necessitado, são os teus sentimentos que te levam a isso, não a tua razão.
— E se eu não tiver vontade nenhuma de ajudar?
— Também nesse caso tudo depende dos teus sen-timentos. Não ajudar um necessitado não é racional nem irracional, mas pode ser maldoso.
— Mas tem de haver um limite algures. Toda a gente “sabe” que não é correto matar uma pessoa.
— Segundo Hume, todos os homens têm sensibili-dade para o bem-estar dos outros. Temos, portanto, uma capacidade de compaixão. Mas nada disso tem a ver com razão.
— Não sei se estou de acordo.
— Nem sempre é assim tão irracional assassinar
uma pessoa, Sofia. Quando se quer atingir alguma coisa, pode até ser uma grande ajuda.
— Isso é demais! Eu discordo!
— Nesse caso, podes tentar explicar-me porque é que não se deve matar uma pessoa importuna.
— A outra pessoa também ama a vida. Por isso não a podes matar.
— Isso é uma demonstração lógica?
— Não faço idéia.
— O que tu fizeste foi, de uma “frase descritiva” — “a outra pessoa também ama a vida” deduzir uma “frase normativa” — “por isso não a podes matar”. Do ponto de vista puramente lógico, isso é um absurdo. Poderias da mesma forma deduzir, do fato de muitas pessoas fugirem aos impostos, que tu também devias fazer o mesmo. Hu-me explicou que nunca se pode deduzir “proposições de dever” de “proposições de realidade”. Contudo, isso su-cede com muita freqüência — inclusivamente em artigos de jornais, programas de partidos e discursos no parla-mento. Queres que dê alguns exemplos?
— Sim.
— “Cada vez mais pessoas preferem viajar de avião. Por isso, é preciso construir mais aeroportos.” Achas este argumento convincente?
— Não, isso é um absurdo. Temos que pensar também no ambiente. Eu acho que devíamos antes cons-truir novas vias férreas.
— Ou então, diz-se: “a ampliação dos campos pe-trolíferos aumentará o nível de vida do país em dez por cento. Por isso, temos que explorar o mais depressa pos-sível novos campos petrolíferos”.
— Que absurdo! Nesse caso, também temos que
pensar no ambiente. Além disso, o nível de vida na No-ruega já é suficientemente elevado.
— Por vezes, diz-se também: “Esta lei foi delibera-da pelo parlamento, e por isso todos os cidadãos do país têm que agir de acordo com ela”. Mas muitas vezes, seguir essas leis vai contra as convicções mais profundas de um povo.
— Compreendo.
— Verificamos, portanto, que não podemos provar com a nossa razão o modo como devemos proceder. Um comportamento consciente da responsabilidade não signi-fica que temos de apurar a nossa razão, mas que temos de apurar os nossos sentimentos pelo bem— estar dos ou-tros. Para Hume, não era irracional preferir a destruição de todo o mundo a uma arranhadela no dedo.
— Que afirmação horrível!
— É ainda mais horrível se baralhares as cartas. Sa-bes que os nazis assassinaram milhões de judeus. O que é que dirias que não estava certo nestes homens, a razão ou os sentimentos?
— Antes de mais, alguma coisa estava errada com os seus sentimentos.
— Muitos deles tinham uma idéia muito clara do que estavam a fazer. Por detrás das resoluções sem senti-mentos pode justamente ocultar-se um calculismo extre-mamente frio. Depois da guerra, muitos nazis foram con-denados, mas não por terem sido irracionais. Foram con-denados pela sua crueldade. Sucede também que pessoas que não sabem bem o que estão a fazer são absolvidas apesar do seu crime. Dizemos que “não estão em plena posse das faculdades mentais no momento do crime” ou “não estão em plena posse das faculdades por tempo ili-
mitado”. Mas ainda ninguém foi absolvido por falta de sentimentos.
— Pois não, era melhor!
— Mas não precisamos sequer de recorrer aos e-xemplos mais grotescos. Quando, após uma cheia, muitos homens precisam de ajuda, são os nossos sentimentos que decidem se intervimos. Se nós fôssemos insensíveis e dei-xássemos esta decisão à “razão fria”, talvez refletíssemos que é bom se alguns milhões de homens morressem, num mundo que sofre já de excesso demográfico.
— Fico furiosa com o fato de alguém poder pensar assim.
— E nesse caso não é a tua razão que fica furiosa.
— Obrigada, já chega. “George Berkeley” era um bispo irlandês que viveu entre 1685 e 1753 — começou Alberto, e em segui-da calou-se por muito tempo.
— Berkeley era um bispo irlandês... — Sofia reto-mou o fio.
— Mas também era filósofo...
— Sim?
— Ele acreditava que a filosofia e a ciência do seu tempo constituíam uma ameaça para a concepção cristã do mundo. Além disso, via o materialismo, cada vez mais difundido, como uma ameaça à crença cristã de que Deus cria e mantém vivas todas as coisas na natureza.
— Sim?
— Ao mesmo tempo Berkeley era um dos empiris-tas mais coerentes.
— Ele achava que não podemos saber mais acerca do mundo do que o que sentimos?
— Não apenas isso. Berkeley achava que as coisas no mundo são exatamente como nós as sentimos, mas não são “coisas”.
— Tens de explicar isso melhor.
— Ainda te lembras que Locke tinha apontado para o fato de nós não podermos dizer nada sobre as “quali-dades secundárias” das coisas. Não podemos afirmar que uma maçã é verde e ácida. Somos “nós” que sentimos essa maçã desse modo. Mas Locke dissera também que as “qualidades primárias” — como solidez, peso e gravidade — pertencem de fato à realidade exterior à nossa volta. Esta realidade exterior tem, portanto, uma “substância” física.
— Eu continuo a ter uma memória boa. E pensava que Locke tinha apontado uma diferença importante.
— Ah, Sofia, se fosse só isso!
— Continua!
— Para Locke — como para Descartes e Espinosa — o mundo físico era uma realidade.
— Sim?
— E é precisamente isso que Berkeley põe em dú-vida e para isso ele recorre a um empirismo conseqüente. Ele afirma que a única coisa que existe é o que nós senti-mos. Mas não sentimos “matéria” ou “substância”. Não sentimos as coisas como “coisas” palpáveis. Quando pressupomos que aquilo que sentimos tem uma “substân-cia” subjacente, estamos a tirar conclusões precipitadas. Não temos nenhuma prova empírica para essa afirmação.
— Que absurdo! Observa isto. Sofia bateu com o punho na mesa.
— Au! — exclamou, tal foi a força com que bateu — Isto não é uma prova de que a mesa é uma mesa ver-dadeira e é matéria ou substância?
— O que é que sentiste?
— Uma coisa dura.
— Tiveste uma clara percepção sensível de uma coisa dura, mas não sentiste a verdadeira “matéria” da mesa. Da mesma forma, podes sonhar que bates em algo duro, mas no teu sonho não há nada duro, pois não?
— No sonho não.
— Além disso, uma pessoa pode ser persuadida de que “sente” todas as coisas. Uma pessoa pode ser hipno-tizada e sentir calor e frio, carícias suaves e socos duros.
— Mas se não era a mesa que era dura, o que me levou a senti-la?
— Segundo Berkeley, é a “vontade” ou “espírito”. Ele também achava que todas as nossas idéias têm uma
causa exterior à nossa consciência, mas que esta causa não é de natureza material. Ela é, segundo Berkeley, espiritual.
Sofia voltou a roer as unhas. Alberto prosseguiu.
— Segundo Berkeley, a minha alma pode ser causa dos meus pensa-mentos — como quando sonho —, mas só uma outra vontade ou espírito pode ser causa das idéias que constituem o nosso mundo material.
Tudo vem do espírito, “que realiza tudo em tudo e através do qual tudo subsiste”, afirma ele.
— E que espírito é esse?
— Berkeley está naturalmente a pensar em Deus. Ele achava que nós poderíamos afirmar que sentimos a existência de Deus mais clara-mente do que a de qualquer homem.
— Mas não é óbvio que existimos?
— Bom... tudo o que vemos e sentimos é, segundo Berkeley, um efeito do poder de Deus. É que Deus está intimamente presente na nossa consciência e provoca nela toda a multiplicidade de idéias e sensações às quais esta-mos constantemente expostos. Toda a natureza à nossa volta e toda a nossa existência residem em Deus. É a úni-ca causa de tudo o que existe.
— Para dizer a verdade, estou espantada.
— “Ser ou não ser” não é toda a questão. A questão é também “o que” nós somos. Somos realmente pessoas de carne e osso? O nosso mundo é constituído por coisas reais — ou estamos apenas rodeados pela consciência? Sofia começou mais uma vez a roer as unhas. Alberto prosseguiu:
— Berkeley não põe apenas a realidade material em dúvida. Ele duvida também de que o tempo e o espaço tenham uma existência absoluta ou autônoma. Mesmo a
experiência do tempo e do espaço pode residir apenas na nossa consciência. Uma ou duas semanas para nós não têm de ser uma ou duas semanas para Deus...
— Disseste que para Berkeley este espírito, no qual tudo repousa, é o Deus cristão.
— Sim, foi o que eu disse. Mas para nós...
— Sim?
— ...para nós esta vontade ou espírito que realiza tudo pode ser também o pai de Hilde.
Sofia emudeceu. A sua expressão parecia um grande ponto de inter-rogação. E, simultaneamente, uma coisa tornou-se clara.
— Acreditas nisso? — perguntou.
— Não consigo ver nenhuma outra possibilidade. Esta é talvez a única explicação possível para tudo o que presenciamos. Estou a pensar nos diversos postais e notí-cias que surgiram nos mais diversos locais. Estou a pensar no fato de Hermes falar de repente e estou a pensar nos meus lapsos involuntários.
— Eu...
— A idéia de eu te ter chamado Sofia, Hilde! Eu sempre soube que tu não te chamavas Sofia.
— O que estás a dizer? Estás a enlouquecer de vez!
— Sim, tudo gira e gira, minha filha. Como um planeta que gira vertiginosamente à volta de um sol in-candescente.
— E esse sol é o pai de Hilde?
— Podes dizer isso.

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